Trump e as dificuldades dos analistas

Não recordo outro momento da história recente no qual os analistas políticos se mostrem tão claramente incapazes de interpretar os acontecimentos e, sobretudo isso, de lhes antecipar as consequências. Pior ainda que a primeira, a segunda versão da presidência Trump confronta-se com escolhas erráticas, medidas tomadas por impulso, sobreposição afirmativa do ego ao interesse coletivo, incapacidade para promover uma ideia clara e lhe dar sequência, narcisismo doentio, perversão de regras básicas da sociabilidade e da diplomacia por troca com comportamentos sempre inesperados e agressivos, muitos deles a raiar a arruaça. Isto é, atitudes doentias, de um foro cada vez mais claramente patológico, assumidas por quem governa a nação militar e economicamente mais poderosa do planeta. Nesta condições, todo o juízo crítico do analista, que não é um adivinho, é sempre arriscado, com tendência para se concentrar nas meras hipóteses e para se tornar falível cinco minutos depois. Algo novo, particularmente perigoso, dado abordar o rumo de quem tem nas mãos o poder imperial supremo da paz e da guerra.

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    Neonazis: Portugal vs. Ucrânia

    A nossa esquerda mais ortodoxa e imobilista continua, na tentativa de justificar, ou pelo menos de «explicar», a agressão militar russa sobre a Ucrânia, a invocar – basta frequentar certas páginas de redes sociais, mesmo as de algumas pessoas daquela franja com livros e estudos, para vermos as enormidades que por ali desfilam e se procuram «provar» – o carácter supostamente «neonazi» do governo e do parlamento de Kiev. Se é historicamente verdadeiro que, na época da invasão da União Soviética por Hitler, existiram setores locais que a apoiaram, como aconteceu, aliás, dentro da própria URSS e de outros estados da região, jamais esses grupos, que contam ainda hoje com alguns nostálgicos apoiantes, constituíram uma maioria significativa da nação ucraniana. 

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      Ninguém é apenas admirável

      Pelo que conheço da espécie humana, concordo plenamente com a frase de Franco Basaglia «de perto ninguém é normal», tantas vezes atribuída a Woody Allen ou a Caetano Veloso. O mesmo se aplica às pessoas que, em abstrato, e sobretudo quando desaparecem, consideramos admiráveis. Pelas circunstâncias e pela extensão da minha vida, conheci de perto largas centenas de homens e mulheres notáveis, hoje já fora desta vida, que, quando partiram – e mais agora com a facilidade das redes sociais – foram logo associados apenas ao que de melhor foram fazendo. E, todavia, sabendo o que sei (e vi) de muitas delas, vejo como tantos elogios são por vezes exagerados ou até de todo imerecidos.

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        Subavaliar a violência neonazi

        É completamente inaceitável comparar as organizações terroristas de extrema-direita existentes em Portugal com os grupos que, no passado, se serviram da violência armada enquadrados na chamada extrema-esquerda. Em Portugal, só no final do Estado Novo surgiram três grupos dessa natureza – a ARA, a LUAR e as Brigadas Revolucionárias – e que, ainda assim, possuíam como objetivo central danificar o aparelho militar do regime. Depois do 25 de Abril, e na ressaca do PREC, apenas tiveram existência efetiva as FP-25, o que aconteceu entre 1980 e 1987. Isto é, há quase quarenta anos. Ainda que no plano teórico algumas pessoas e pequenos grupos de esquerda possam defender a dimensão fundadora da «violência revolucionária», não existe qualquer um que a procure pôr em prática. Muito menos contra as instituições da democracia e pessoas singulares. Isso fazem, como se pode agora ver com clareza, os neonazis, e equiparar as suas organizações violentas e criminosas às que, do lado oposto, excluem de todo essa vertente, é, mais do que errar o alvo, subavaliar o seu potencial perigo e de algum modo desculpabilizá-las.

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          O que fazer com esta espécie de gente?

          Com a derrota dos principais fascismos na Segunda Guerra Mundial, começou a instalar-se em grande parte do mundo, e de forma mais rápida e acentuada na Europa e nas Américas, uma experiência de civilidade democrática e cosmopolita que, apesar das desigualdades e dos conflitos, envolveu um setor cada vez mais amplo da população, moldando a sua forma de viver e de olhar o mundo. É verdade que em Portugal e Espanha subsistiam ditaduras, mas estas começavam a recuar face a uma crescente resistência. E a Leste do continente, onde regimes autoritários procuravam impedir qualquer abertura, emergiam também sinais de mudança. A viragem democrática na Península Ibérica, materializada entre 1974 e 1978, e as rápidas mudanças nos países do «socialismo real» que ocorreram após a queda do Muro de Berlim, não emergiram do nada.

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            Não haverá uma guerra civil na América

            Tenho encontrado por aí, em alguns artigos de opinião, embora escassos, mas principalmente em apontamentos e comentários das redes sociais, referências à eventualidade de os Estados Unidos da América caminharem a passos largos e muito rápidos para um guerra civil. Por vezes, este padrão de comentário disfarça um certo comprazimento, admito que algo inconsciente, mas presente nas entrelinhas, situado entre um «eles afinal merecem» e um «pode ser que assim o assunto se resolva». Não considerando agora o facto de as guerras civis serem as mais terríveis, mortíferas e traumáticas de todas as guerras, com um nível de destruição material e espiritual que raramente outras produzem, importa salientar que elas deixam nos povos um rastro de medo, pesadelo e sofrimento que, associado a desejos de vingança, se prolonga por gerações.

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              Em defesa do Bloco

              Como democrata e homem de esquerda, parece-me completamente intolerável, além de bastante perigosa, a vaga de depreciação da qual o Bloco de Esquerda está agora a ser objeto. Não apenas pela direita em geral, o que não será grave – seria até um mau sinal se tal não acontecesse –, mas por muitos jornalistas e comentadores com assento cativo nas televisões e nos jornais. Alguns fazem-lhe até uma espécie de funeral antecipado, equiparando o seu eventual desaparecimento à morte de toda a esquerda como ideal, como projeto e como solução, falando mesmo do fim de uma época da história das lutas sociais e das democracias.

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                A esquerda não se «apaga»

                As teorias que andam agora a circular a propósito do «apagamento» ou do «fim» do ideal de esquerda, são, como afirmou Mark Twain sobre as notícias que corriam anunciando a sua morte, «manifestamente exageradas». É certo que a esquerda política plural precisa olhar à sua volta e, não seguindo necessariamente o fátuo «ar do tempo», por certo considerar as suas transformações. E adaptar-se a elas, corrigindo erros e recusando descaminhos. Todavia, os grandes ideais de igualdade, de solidariedade, de liberdade e de fraternidade – sim, bem sei, estes possuem a idade da velha Revolução Francesa e foram invocados também por ditadores – esses não desaparecerão, como não desaparecerá que os defenda. O contrário seria a vitória definitiva do neoliberalismo selvagem e a afirmação apocalíptica da desumanidade mais abjeta. O progresso combaterá sempre o retrocesso, como a utopia enfrentará sempre a distopia. Podem crer, está nos livros e anda pelo ar.

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                  Uma memória do sectarismo

                  Sem vontade de escrever uma autobiografia, incluo por vezes, em textos vários, alguns detalhes autobiográficos, tendo desde há anos o projeto de lembrar, sem nomes ou números de porta, momentos vivenciais sobre o sectarismo que dominou boa parte da oposição ao regime durante o período marcelista. Em particular no meio estudantil, onde uma vírgula num manifesto poderia bastar para criar cisões e alimentar inimizades entre pessoas de diferentes grupos maoistas, gente que se agrupava num dos trotskismos, e de todos ele em relação ao PCP. E vice-versa, claro, não sendo por acaso que Cunhal escreveu diatribes contra o «radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista». Existem episódios deste conflito, de certa forma fratricida, que dariam um livro bem curioso, alguns associados a desconfianças ainda não superadas.

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                    Terremoto eleitoral, esquerda e resistência 

                    As últimas legislativas provocaram um terremoto no regime democrático. Jamais, desde as eleições para a Constituinte em Abril de 1975, o conjunto da esquerda obteve uma representação tão escassa no parlamento, tendo, além disso, desaparecido o tendencial bipartidarismo constante nos últimos cinquenta anos. Para além da acentuada perda do apoio eleitoral concedido aos partidos da área plural da esquerda, com a exceção do Livre, o mais significativo e perturbante foi, sem dúvida, o crescimento exponencial de uma extrema-direita fundada na rejeição dos valores essenciais do Portugal nascido com a Revolução dos Cravos. Mais preocupante ainda: o reconhecimento do ambiente que produziu esta situação e o inventário dos seus traços essenciais fazem temer que a nova ordem política não seja passageira.

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                      De mal a pior? As legislativas e os jovens

                      A partir de sondagens e estudos sobre o tema, não sendo a observação empírica desdenhável, é clara e consensual a maior tendência dos eleitores portugueses abaixo de 25 anos para votarem na direita ou mesmo na extrema-direita. Aliás, é esta uma disposição que ocorre num grande número de países europeus, possuindo múltiplas e complexas razões. Algumas das mais influentes serão a falta de memória histórica, o recuo das humanidades nos sistemas de ensino, o facilitismo que se instalou nos programas escolares, a prevalência da cultura do individualismo, a sobrevalorização do efémero ou a desresponsabilização familiar. Além do lugar crítico, detido sobretudo nesta faixa etária, das redes sociais e dos seus embustes, bem como o das angústias relativamente ao emprego, à progressão profissional e à estabilidade familiar. 

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                        Mais duas notas pós-legislativas

                        Antes ainda de um artigo mais extenso e fundamentado, a publicar na semana que vem, duas notas rápidas sobre um par de preocupantes tendências em circulação após as eleições legislativas de 18 de maio.

                        1 – Configura-se a fortíssima possibilidade de José Luís Carneiro, candidato derrotado nas eleições internas de 2023, ser o próximo secretário-geral do Partido Socialista. A lógica que parece emergir neste contexto é a de escolher uma personalidade «moderada», supostamente capaz de dialogar com o PSD e de estabelecer algumas pontes com aquela parte do eleitorado socialista que debandou para a AD e mesmo para o Chega. É natural que nas atuais circunstâncias políticas, e em nome da defesa do regime e da Constituição, o PS precise chegar a acordos à sua direita e à sua esquerda, mas não o pode fazer sem mostrar uma mensagem própria, forte, progressista e mobilizadora, que obviamente Carneiro não protagoniza, e sem um rosto carismático, essencial atualmente, por muito que não se goste da ideia, para vencer eleições e segurar governos. Uma solução desta natureza conduzirá o partido a seguir as pisadas dos seus congéneres francês e italiano, rumo à irrelevância e deixando um vasto campo aberto à direita e à extrema-direita.

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                          Evitar o suicídio da esquerda nas autárquicas

                          Rui Tavares defendeu que «a reflexão à esquerda sobre os resultados destas eleições deve ser uma reflexão grande, mas não pode ser uma reflexão longa». A ideia de que pode ser longa «é errada e perigosa» porque as autárquicas estão próximas e o Chega pode ficar em primeiro lugar em dezenas de concelhos. A esquerda tem, pois, que «acordar, abrir os olhos e despertar», propondo listas progressistas onde os eleitores possam votar.

                          Não poderia estar mais de acordo com esta ideia. Devem ser urgentemente preparadas listas unitárias, equilibradas e capazes às autárquicas, mesmo onde já tinham sido decididas escolhas em sentido contrário. Julgo ser difícil ter dúvidas de que, neste momento, o partidarismo sectário será inevitavelmente suicidário para a esquerda. Para toda ela. E quem o não rejeitar com clareza será política e historicamente responsabilizado por isso.

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                            O pior que se pode fazer

                            O pior que podem fazer as pessoas que irão agora, necessariamente, procurar reerguer os partidos da esquerda estrondosamente derrotados nas legislativas, é, em vez de se voltarem para a realidade das pessoas comuns e para os equilíbrios do mundo atual, para uma análise de comportamentos repetidos e para a revisão dos dogmas, para a abordagem crítica de certas escolhas, discursos e comportamentos, preferirem agitar bandeiras enquanto apontam inimigos externos ou dentro do seu próprio campo, preocuparem-se mais com a sua própria justificação do que com os seus erros, refugiando-se na conjuntura como explicação para quase tudo. Em tantos anos de combate político já vivi demasiado para não experimentar este receio. Por isso sei que a capacidade crítica, a humildade e a lucidez serão agora fundamentais. E muita coragem também, obviamente.

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                              Notas curtas sobre as legislativas

                              Algumas notas curtas (e também críticas) sobre o pesado terramoto das legislativas. Noto aqui que, apesar de ser membro do Livre, elas são totalmente pessoais, só a mim comprometendo. Olho principalmente para os partidos de esquerda (PS, Livre, PCP, BE e PAN), aqueles que verdadeiramente me interessam, e que, reunidos, apenas obtiveram 34% dos votos. Ou seja, a percentagem mais baixa em democracia.

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                                A história não se repete, mas precisa ser lembrada

                                Ao contrário do que no século de Oitocentos defendiam os historiadores positivistas, e que foi mantido depois pelos seus imitadores, a história – tomada aqui como forma de conhecimento do passado, guardando-se a História com maiúscula para aludir à sucessão do tempo – jamais é inteiramente objetiva. Depende sempre, em larga medida, de quem a escreve, do momento em que é escrita, das condições em que isto acontece, da perspetiva escolhida em cada abordagem, das múltiplas fontes documentais utilizadas, da perspetiva temática que persegue, e ainda da forma como é ou não sujeita ao confronto da prova e ao crivo da crítica, também estas em constante renovação. Depende ainda dos seus diferentes usos, podendo manipular e ser manipulada, ou então, bem diversamente, ser fator de compreensão do mundo e de emancipação.

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                                  A força do voto perdido

                                  Lamento ter de ser cru e objetivo, mas em certos momentos a realidade deve sobrepor-se à fantasia. Para um grande número de eleitores a insistência nas ilegalidades e na ausência de ética do primeiro-ministro são irrelevantes, pois consideram-nas prova de uma «chico-espertice» que encaram como qualidade e gostariam de replicar nas suas vidas. Aliás, é esta atitude que tem eleito e reeleito muitos autarcas, enquadrados na conhecida categoria popular do «rouba, mas faz». Também pouco importa a estas pessoas a baixa qualidade e o perfil rasca, ou mesmo criminoso, de tantos militantes do Chega, pois é por isso mesmo que os encaram como seus representantes.

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                                    Porque voto no Livre?

                                    A vida da democracia de modo algum se esgota no sistema representativo e nas eleições para os seus órgãos. Precisa ser praticada e ampliada todos os dias e em todos os espaços, não se limitando, por isso, ao ato de eleger. Todavia, e apesar das suas imperfeições, este permanece essencial como modo de aferição das escolhas políticas de cidadãos e cidadãs, e forma de escolher os rostos que dão corpo à soberania. Onde não existem eleições, ou onde elas são manipuladas, não existe democracia, mas fraudes que favorecem a tirania. Por este motivo, e também porque não o fazer é abdicar de ter voz própria, é imprescindível votar, ainda que quem o faz possa não se rever plenamente em qualquer das escolhas presentes no boletim de voto.

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