No dia da canonização de Nuno Álvares Pereira, recupero um post publicado há dois meses atrás. Independentemente do carácter polémico e discutível que possa ter a tese de António Borges Coelho nele evocada, é lamentável que a mesma tenha sido, tanto quanto pude perceber durante estas semanas, completamente ignorada nas peças jornalísticas que têm acompanhado o processo. Algumas redigidas num tom de proselitismo religioso completamente despropositado.
Quando iniciei o curso de História trazia ainda comigo a imagem de um Nun’Álvares paladino e devoto, campeão da independência em Aljubarrota, e, anos depois, converso a uma nova existência: a vida simples feita de oração e cilício do Beato Nuno de Santa Maria. Era essa a imagem, construída pelos finais do século XIX e que o Estado Novo reproduzira, que havia transformado o Conde de Ourém e Condestável de Portugal numa espécie de ícone simultâneo do brio indígena e da piedade cristã. Foi então que li um livro, onde se afirmavam algumas teses sobre o sentido da crise política de 1383-1385 hoje algo contestadas, contendo informações sobre a vida verdadeira de Nuno Álvares Pereira que não circulavam pelas vias tradicionais de acesso ao registo do nosso passado colectivo.
Fora em 1965 que o historiador António Borges Coelho publicara na Portugália esse A Revolução de 1383 que vim a conhecer na sua edição de 1977, a 3ª, consideravelmente aumentada e revista de acordo com as novas possibilidades oferecidas pela Revolução de Abril (existem ainda edições posteriores). Foi aí que vi emergir da penumbra um senhor de Cernache com um rosto menos harmonioso, como nobre feudal cioso dos seus direitos, interventor pelo fio da espada nos campos alentejanos e andaluzes, do lado de cá e de lá das marcas do reino, contra os camponeses sublevados, que não se coibiu, por vezes, de perseguir e massacrar. Porque, como contou Borges Coelho apoiado principalmente em Fernão Lopes, Nun’Álvares dizia preferir morrer combatendo «nas fraldas» do próprio rei castelhano que serem depois, ele e os seus, «apanhados de lugar em lugar como perdigotos e enforcados uns e uns pelos sobreiros». Pela acção desses miseráveis campónios que visivelmente temia e essencialmente desprezava.
Ora é esse homem, «herói» também de uma guerra suja, com acções nada abonatórias no registo individual, com sangue nas mãos que não apenas o do invasor castelhano – mas apontado como «exemplo para a sociedade actual» pelo frade carmelita «vice-postulador da causa da canonização» -, que a Igreja católica, apostólica e romana de Bento XV beatificou em 1918 e que Bento XVI vai agora transformar em santo. Tendo como fundamento mais imediato, dizem, a cura milagrosa num olho de uma sexagenária que deixara de ver por ter sido atingida «com salpicos de óleo a ferver enquanto cozinhava». Cavaco já se congratulou publicamente com o evento e pode ler-se em alguns blogues de direita que esta é uma das melhores notícias para Portugal que temos recebido nas últimas décadas. Para as pessoas comuns o facto não aquecerá nem arrefecerá as suas existências, mas será sempre de proveito e exemplo conhecer também o lado negro da História. E saber de onde chegam os esquecimentos.