In-dependências

O independente

A pré-campanha eleitoral traz os independentes de regresso à boca de cena. Conhecedores da distância crescente que os tem vindo a separar do cidadão comum, os principais partidos procuraram resolver o problema tomando um caminho fácil e que não requer mudanças de rumo. Integraram então, nas listas de candidatos, elegíveis ou não, pessoas que não são militantes mas dispõem de prestígio político, profissional ou pessoal – para não falar de uma autoridade moral derivada justamente do seu descomprometimento em relação aos aparelhos partidários – capaz de gerar um «valor acrescentado» que pode tornar-se decisivo. A estratégia é democraticamente legítima, mas pode ser eticamente duvidosa, uma vez que muitas dessas «independências» correspondem ao rosto da cedência, ou mesmo do seguidismo, perante direcções políticas que assim maquilham a imagem pública sem cederem um milímetro na intimidade.

O historial desta «in-dependência» é longo e complexo. Os comunistas foram os primeiros a utilizá-la de forma sistemática, servindo-se frequentemente de compagnons de route, fellow-travellers, intelectuais «amigos» capazes de enunciarem uma política frentista que jamais questionou o seu papel de «vanguarda». Fazem-no ainda, como o pode comprovar, aqui no rectângulo, a intervenção dos «verdes» do PEV e de bem conhecidos militantes crónicos da «independência». Entretanto, todas as correntes passaram a recorrer ao subterfúgio, tendo dado particularmente nas vistas, nas semanas mais recentes, o Partido Socialista, assustado com os resultados das europeias e apostado em oferecer uma imagem pública de abertura – principalmente de abertura «à esquerda» – da qual sente absoluta necessidade. Estes «in-dependentes» surgem então, fundamentalmente, como nomes, rostos, corpos, carreiras, cuja presença visa um objectivo preciso, raramente enquanto factores de alargamento das propostas, das ideias, da capacidade reflexiva e até da representatividade. Por isso se mostram muitos deles mais papistas do que o papa, como é próprio de todos os que enxergam a luz da conversão ou tornam ao redil.

A independência, convém que se diga, pode no entanto conter muito de positivo. Ela não traduz, ou pelo menos não deve traduzir, apenas um regime de dispensa em relação à presença em maçadoras reuniões partidárias, ao pagamento sistemático das quotas, à sempre penosa distribuição de panfletos, à necessidade de beijar publicamente criancinhas incontinentes e matronas que exalam um certo odor a peixe, a ter de aguentar as tricas e as pancadinhas nas costas que ocorrem nos desvãos e antecâmaras das sedes partidárias. Muito ao contrário, ela pode ser algo de realmente difícil, que implica escolha, capacidade para remar a solo contra a corrente sempre que for preciso, não se envolver em cedências que podem trazer benesses mas implicam também a venda da consciência, saber requerer uma autonomia crítica que não significa desinteresse ou ausência de compromisso. Esta é a independência boa, verdadeiramente útil, com a qual os grandes partidos políticos só teriam a lucrar se com ela soubessem lidar.

No entanto, a independência da generalidade destes «in-dependentes» não tem essa cara. É certo que um independente companheiro de jornada não pode ser um cavalo de Tróia ou um franco-atirador: aproximando-se de um determinado partido, dando momentaneamente o rosto por ele, tem forçosamente de estabelecer pactos e, sobretudo em campanha eleitoral, acordos mínimos de lealdade e colaboração, não podendo desgastar as campanhas a partir de dentro. Se aceita colaborar «como independente», essa colaboração implica uma certa adesão programática, um mínimo de cumplicidade, empenho também, e bastante. Porém, deveria ainda, e obrigatoriamente, agregar diferença, questionando o questionável, apontando os erros que os militantes partidários se habituaram a desvalorizar ou não sabem ver, propondo caminhos possíveis, ainda que aparentemente «utópicos». Mostrando, afinal, sinais dessa diversidade, dessa abertura, que é suposto trazerem consigo. De outra forma, tornam-se cúmplices, involuntários ou não, de um logro. Mas é justamente este logro que me parece observar perante o espectáculo das razões que muitos «in-dependentes» têm invocado para justificarem a sua opção na batalha em curso. Desculpem que lhes diga.

    Atualidade, Opinião.