Passados os dias que se seguiram ao desaparecimento mais ou menos esperado de Fidel Castro, em que foram propostas interpretações do seu papel histórico muitas vezes opostas e quase sempre pouco racionais, regresso ao assunto para olhar justamente alguns dos rostos que tomou esta irracionalidade. Para o fazer, recorro a três conceitos que, na sua relação com diferentes modos de observar a vida e a intervenção pública do líder cubano, refiro aqui de uma forma inevitavelmente concisa e parcial. A cada um associo uma diferente proposta de leitura, que vivamente recomendo a quem se interesse por estes temas.
O primeiro conceito é o de «mentira». Falei em crónica recente da «pós-verdade», sobre a qual Ralph Keyes publicou em 2004 o livro The Post-Truth Era. Para Keyes, vivemos um tempo de manipulação da verdade, no qual aquilo que se diz tem mais valor do que a realidade à qual supostamente se refere. Isto leva a uma constante deturpação ou mesmo à invenção de factos, fazendo passar a mentira por verdade. Foi em parte o que aconteceu com a identificação liminar, por estes dias repetida como um mantra, de Fidel como ditador. Se observarmos a forma autocrática como por mais de quatro décadas exerceu o poder, o regime de partido único sem eleições realmente livres, a censura e a informação controlada, a polícia política, as prisões e execuções por oposição ou dissidência, o qualificativo será adequado. Mas a direita serve-se indevidamente dele, usando-o para demonizar uma experiência histórica que, em anos de constante apoio da política externa norte-americana a ditaduras sanguinárias espalhadas por toda a América Latina, funcionou para milhões como fator de esperança e um importante exemplo emancipatório. Por isso essa «verdade», vinda, ademais, de uma área política na qual a luta pela liberdade sempre esteve longe de ser uma prioridade, se funda na ocultação, produzindo, de facto, uma mentira.
O segundo conceito é o de «nostalgia». Svetlana Boym definiu-a em The Future of Nostalgia, de 2001, não como simples expressão de saudade, mas como «um sentimento de perda e de afastamento», como «um romance estabelecido com a nossa própria fantasia» fundado numa relação pessoal com o passado. É esta forma de perceção que justifica o facto de muitas pessoas, inequivocamente defensoras da democracia representativa e do multipartidarismo, terem saído a terreiro numa defesa exaltada e não matizada de Fidel e do regime cubano. Ambos remetem, no seu caso, para um imaginário de juventude, fundado na oposição ao fascismo, ao capitalismo mais selvagem e ao colonialismo, bem como na renovação da própria identidade da esquerda ocorrida na década de 1960, no qual os barbudos da Sierra Maestra desempenharam um papel heroico, fundador e estruturante, e que elas não estão em condições de enjeitar. Sob pena, se o fizerem, de aparentemente rejeitarem o seu próprio passado. É claro que isto não acontece com aqueles outros que encontram no exemplo cubano a prova provada da justeza das suas convicções e da ideologia política maximalista que as determina.
O último conceito, em parte próximo do anterior, é o de «melancolia». Foi a este que se referiu há dias António Guerreiro, ao citar, num artigo saído no Público, uma proposta teórica defendida por Enzo Traverso no livro Mélancolie de Gauche, já de 2016. O historiador italiano designa, como «melancolia de esquerda», uma espécie de tradição escondida, tão antiga quanto a própria ideia de esquerda, que possui um trajeto histórico subterrâneo. Lembra Guerreiro que foi o colapso dos regimes socialistas da Europa de Leste a trazê-la à superfície, já que antes ela tinha sido recalcada ou censurada. A melancolia de esquerda é porém, para Traverso, uma disposição interior dinâmica que «não é um freio ou uma forma de resignação», funcionando, bem ao contrário, como «uma via de acesso à memória dos vencidos, capaz de renovar as esperanças do passado que permaneceram inacabadas e que apenas esperam para ser reativadas». A sedução que exerce coloca-a em condições de promover um regresso ao «objeto de amor perdido», ancorado no passado, mas retomado no presente. E, como se sabe, se o amor é cego, é também muito mobilizador. Por isso tem tanta força o culto, por estes dias recuperado, de Fidel.
Publicado em 9/12/2016 no Diário As Beiras (versão ligeiramente revista)