Mentira, nostalgia e melancolia

Fidel, Jean-Paul e Simone em 1960
Fotografia de A. Korda (cor de M. Athanasiadis)

Passados os dias que se seguiram ao desaparecimento mais ou menos esperado de Fidel Castro, em que foram propostas interpretações do seu papel histórico muitas vezes opostas e quase sempre pouco racionais, regresso ao assunto para olhar justamente alguns dos rostos que tomou esta irracionalidade. Para o fazer, recorro a três conceitos que, na sua relação com diferentes modos de observar a vida e a intervenção pública do líder cubano, refiro aqui de uma forma inevitavelmente concisa e parcial. A cada um associo uma diferente proposta de leitura, que vivamente recomendo a quem se interesse por estes temas.

O primeiro conceito é o de «mentira». Falei em crónica recente da «pós-verdade», sobre a qual Ralph Keyes publicou em 2004 o livro The Post-Truth Era. Para Keyes, vivemos um tempo de manipulação da verdade, no qual aquilo que se diz tem mais valor do que a realidade à qual supostamente se refere. Isto leva a uma constante deturpação ou mesmo à invenção de factos, fazendo passar a mentira por verdade. Foi em parte o que aconteceu com a identificação liminar, por estes dias repetida como um mantra, de Fidel como ditador. Se observarmos a forma autocrática como por mais de quatro décadas exerceu o poder, o regime de partido único sem eleições realmente livres, a censura e a informação controlada, a polícia política, as prisões e execuções por oposição ou dissidência, o qualificativo será adequado. Mas a direita serve-se indevidamente dele, usando-o para demonizar uma experiência histórica que, em anos de constante apoio da política externa norte-americana a ditaduras sanguinárias espalhadas por toda a América Latina, funcionou para milhões como fator de esperança e um importante exemplo emancipatório. Por isso essa «verdade», vinda, ademais, de uma área política na qual a luta pela liberdade sempre esteve longe de ser uma prioridade, se funda na ocultação, produzindo, de facto, uma mentira.

O segundo conceito é o de «nostalgia». Svetlana Boym definiu-a em The Future of Nostalgia, de 2001, não como simples expressão de saudade, mas como «um sentimento de perda e de afastamento», como «um romance estabelecido com a nossa própria fantasia» fundado numa relação pessoal com o passado. É esta forma de perceção que justifica o facto de muitas pessoas, inequivocamente defensoras da democracia representativa e do multipartidarismo, terem saído a terreiro numa defesa exaltada e não matizada de Fidel e do regime cubano. Ambos remetem, no seu caso, para um imaginário de juventude, fundado na oposição ao fascismo, ao capitalismo mais selvagem e ao colonialismo, bem como na renovação da própria identidade da esquerda ocorrida na década de 1960, no qual os barbudos da Sierra Maestra desempenharam um papel heroico, fundador e estruturante, e que elas não estão em condições de enjeitar. Sob pena, se o fizerem, de aparentemente rejeitarem o seu próprio passado. É claro que isto não acontece com aqueles outros que encontram no exemplo cubano a prova provada da justeza das suas convicções e da ideologia política maximalista que as determina.

O último conceito, em parte próximo do anterior, é o de «melancolia». Foi a este que se referiu há dias António Guerreiro, ao citar, num artigo saído no Público, uma proposta teórica defendida por Enzo Traverso no livro Mélancolie de Gauche, já de 2016. O historiador italiano designa, como «melancolia de esquerda», uma espécie de tradição escondida, tão antiga quanto a própria ideia de esquerda, que possui um trajeto histórico subterrâneo. Lembra Guerreiro que foi o colapso dos regimes socialistas da Europa de Leste a trazê-la à superfície, já que antes ela tinha sido recalcada ou censurada. A melancolia de esquerda é porém, para Traverso, uma disposição interior dinâmica que «não é um freio ou uma forma de resignação», funcionando, bem ao contrário, como «uma via de acesso à memória dos vencidos, capaz de renovar as esperanças do passado que permaneceram inacabadas e que apenas esperam para ser reativadas». A sedução que exerce coloca-a em condições de promover um regresso ao «objeto de amor perdido», ancorado no passado, mas retomado no presente. E, como se sabe, se o amor é cego, é também muito mobilizador. Por isso tem tanta força o culto, por estes dias recuperado, de Fidel.

Publicado em 9/12/2016 no Diário As Beiras (versão ligeiramente revista)

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