Contra a banalização

World War II

A Segunda Guerra Mundial deve ser o acontecimento do século XX sobre o qual um maior número de títulos se encontra publicado. O septuagésimo aniversário da invasão alemã da Polónia veio ampliar ainda mais esta realidade, justificando a reedição deste livro de Martin Gilbert, publicado pela primeira vez em 1989. Vinte anos entretanto transcorridos não lhe diminuíram o interesse, ajudando até a colocá-la numa dimensão peculiar que na altura não poderia ter. Desde logo porque nos anos oitenta os ecos sobreviventes da crítica historiográfica da «história-batalha» faziam com que a dimensão bélica do passado fosse ainda desvalorizada como excessivamente dependente de uma metodologia escrava dos factos. Mas também porque, por essa época, os impulsos revisionistas e negacionistas que têm procurado atenuar a dimensão apocalíptica da devastação material da guerra e do Holocausto ainda não se mostravam tão patentes nem tinham o impacto público que ultimamente têm colhido.

Ambos os aspectos podem agora ser observados de forma mais completa recorrendo precisamente a esta obra. Com efeito, em mais de 1000 páginas, ela projecta uma perspectiva única de uma história mil vezes contada. Trata-se de um exemplo acabado de história narrativa, que nos relata os acontecimentos, dia após dia, por vezes hora a hora, num esforço impressionante para produzir uma descrição que não deixe escapar episódio algum, a menor operação militar, que tivesse sido relevante para a eclosão, a continuação ou o desenlace da Guerra. Mas ao mesmo tempo fá-lo recorrendo à intrusão na narrativa de pequenos acontecimentos, de palavras e de gestos individuais, que ajudam a dar do conjunto uma visão vívida e constantemente humanizada.

A ausência de processos claramente contextualizantes e interpretativos pode, naturalmente, ser questionada. Foi essa a escolha de Gilbert, um historiador profissional, politicamente conservador, que em regra prefere que os factos falem por si. Ela destaca a componente descritiva, parecendo evitar o facciosismo. Mas não o consegue justamente porque, como qualquer historiador, Gilbert introduz opções que traduzem parcialidade. Por um lado, a denúncia dos crimes do nazismo é uma constante, o que certas vezes o leva a omitir o reconhecimento dos excessos cometidos, ainda que noutra escala, pelas forças aliadas. Por outro, ao recusar relevância aos acontecimentos ocorridos dentro do próprio território alemão – se exceptuarmos a descrição detalhada da «Operação Valquíria» e as informações sobre os espaços concentracionários do Holocausto – e ao ignorar praticamente o contributo da Itália fascista para o desafio agressivo do Eixo, acaba por olhar de um ângulo ainda algo limitado uma história que se pretende completa. No entanto, nada que fira de morte o trabalho monumental levado a cabo e a grande valia documental de uma obra como esta. Imprescindível para impedir que a Segunda Guerra Mundial se transforme, com tanto lugar-comum a seu respeito que tem sido publicado por estes dias, num episódio irrelevante ou passível de ser facilmente manipulado.

Martin Gilbert, A Segunda Guerra Mundial. Trad. de Ana Luísa Faria e Miguel Serras Pereira. D. Quixote, 1012 págs. [Publicado na LER de Novembro]

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