Arquivos Mensais: Janeiro 2010

Centenário na estrada

O Centenário

Cavaco destacou dos valores republicanos, como era de esperar, «o amor à pátria e a ética na vida política». Já Sócrates anotou como capital «a importância atribuída à educação». Para além do cerimonial da ordem e do folclore já a rodar em volta do centenário do 5 de Outubro, dois elementos fundamentais do ideário republicano – que a experiência da Primeira República em larga medida falhou ou distorceu – têm permanecido na penumbra. São eles a igualdade de direitos políticos encarada como uma necessidade (que no entanto excluía ainda as mulheres), e o valor emancipatório da laicidade do Estado, da sociedade e do sistema educativo. Será bastante mais útil e estimulante que nos concentremos na evocação destes – sobretudo numa reflexão colectiva que actualize a sua mensagem – mas duvido que as autoridades públicas ou algumas «comissões de festas» se sintam tentadas a fazê-lo. Vivemos tempos mais fáceis para as liturgias do que para as ousadias.

    História, Opinião

    Uma desatenção da Lusa?

    Passou quase despercebido um despacho publicado há dias pela agência Lusa. Não noticiava nada em particular, nem anunciava algo de novo, resultando o seu interesse de nele alguém naturalizar como aceitável ou mesmo necessária uma prática preocupante. A partir do anúncio, ainda mal esclarecido, de que a TAP teria sancionado pilotos com um «curso de ética» devido a conversas mantidas no Facebook, entrevistava-se um «especialista da empresa de recrutamento Michael Page» capaz de afirmar com a maior candura que na utilização das redes sociais os trabalhadores «precisam de estar atentos à forma como as utilizam, até para não prejudicarem a sua imagem perante futuros empregadores». Considerava-se mesmo que o trabalhador deve evitar informações «pouco abonatórias» para a empresa onde trabalha como forma de proteger o seu próprio trabalho. No referido despacho, Nuno Troni lembrava ainda, e aparentemente lamentava, que para as empresas seja «muito difícil controlar toda a informação que os colaboradores trocam entre si», quer num contexto de trabalho, quer ao nível social, com amigos ou familiares.

    A partir da altura em que a expressão de opiniões e a troca de informações na Internet se universalizou, a partir da altura em que aquilo que cada um escreve passou a ser mais lido e a circular com uma cada vez maior facilidade, quando a velha e já quase esquecida netiqueta cedeu lugar ao abuso do anonimato e à frequente instrumentalização da rede como arma de arremesso, as consequências passaram a ser mais pesadas e, naturalmente, o grau de responsabilidade de quem fala por aquilo que diz tendeu a aumentar. Mas para moderar os efeitos negativos, nas redes de computadores como nos jornais ou na rua, agora como dantes, existem códigos éticos e instrumentos jurídicos, bem como regras próprias de cada um dos meios, que podem humanizar um pouco a lei da selva e alargar a própria noção de responsabilidade. Agora admitir como necessárias e naturais a vigilância e a autovigilância, a coacção da opinião, a anulação da liberdade de crítica, e até, implicitamente, a construção de bases de dados contendo as opiniões dos cidadãos-trabalhadores, tal como o fez o «especialista» da Michael Page, traduz-se num ataque público à liberdade de opinião e numa defesa do silenciamento da divergência. É inquietante que a Lusa, «Agência de Notícias de Portugal», tenha olhado com indiferença para estas declarações limitando-se a passar a mensagem.

    | Publicado também no Arrastão

      Olhares, Opinião

      O Holocausto afinal existiu

      Tatuagens

      Evoca-se hoje o Dia Internacional da Memória do Holocausto, celebrando a libertação pelas tropas soviéticas, ocorrida em 27 de Janeiro de 1945, do complexo de campos de Auschwitz-Birkenau. Ao contrário do que se passa com outros acontecimentos que o tempo vai diluindo, as representações do Holocausto têm permanecido activas, ainda que nem sempre pelos melhores motivos. Destaco dois: a desvalorização da shoah devido ao comportamento do Estado de Israel em relação aos direitos políticos do povo palestiniano, e a negação (ou a depreciação) do próprio extermínio em massa dos judeus levado a cabo pelos nazis, imposta por um certo padrão de revisionismo histórico inspirado pela extrema-direita e/ou pelo islamismo radical. São problemas complexos, sobre os quais tem sido muito fácil dizerem-se as maiores barbaridades, que começam quando se julga o passado apressadamente e, em função de certos combates do presente, se tomam as pessoas por estúpidas.

      Entretanto pouco se tem escrito sobre aqueles cujos pais sobreviveram aos campos nazis. As consequências traumáticas para os próprios deportados são bem conhecidas, mas a presença do seu eco junto dos seus descendentes tem permanecido silenciada. Eu Não Lhe Disse Que Estava a Escrever este Livro (ed. Pedra da Lua) destaca treze testemunhos de filhos de judeus franceses sobreviventes de Auschwitz, todos nascidos nos finais da década de 1940, que desafiados pela jornalista Nadine Vasseur aceitaram comentar pela primeira vez a sombra que os acompanhou a vida inteira. Coincidem sem excepção num aparente paradoxo: se, por um lado, a experiência da deportação e da vida nos campos é intransmissível, dada a impossibilidade real de exprimir o sofrimento extremo e solitário dos que as viveram, por outro ela criou nestes uma capacidade para resistir e para sobreviver que os colocou acima das exibidas pela maioria dos humanos, tornando-os pessoas admiráveis mas obrigatoriamente «difíceis» no trato diário. Esta dificuldade encontra-se patente em atitudes que sempre perturbaram muito os seus filhos, que com elas tiveram de conviver desde crianças: a constante descrença («sempre disse ajuda-te a ti próprio, pois o céu não te ajudará»), uma secura imutável («podem ficar com o olhar húmido, mas não choram»), o silêncio sobre o passado («meteu a sua história dentro de uma caixa e pôs uma tampa»). Mas revela-se também numa grande capacidade para enaltecerem «o imenso valor da vida», evitando repisar um passado que preferiam manter no seu foro íntimo.

      Este livro especial mostra-nos como foram os filhos dos deportados que sobreviveram a transportarem parte substancial do fardo dos pais. Ele dialoga sempre com a singularidade perturbante de cada testemunho, com a dificuldade sentida por cada um dos entrevistados de Nadine Vasseur em falar de pormenores simples apenas na aparência, como a forte lembrança dos gritos aflitivos dos pais escutados em noites de pesadelo ou a visão nunca comentada «daquela tatuagem no braço, que sempre lhe conheci». Um livro pequeno mas intenso e comovente, que ajuda a contornar a banalizante «indústria do testemunho» e a combater a revisão negacionista do Holocausto que nos tem enchido os ouvidos. Uma sugestão para este 27 de Janeiro.

      Este post retoma em parte um texto que escrevi em 2008.

      | Publicado também no Arrastão

        Atualidade, História, Memória

        Da importância da maçã

        Maçã

        Nunca me interessei muito pelos combates jurídicos entre a Microsoft e a Apple ou pela guerra de guerrilhas entre os seus adeptos. Desde os tempos do medonho MS-DOS que vinha com o meu primeiro computador, um pesado Schneider estranhamente movido a floppy-disk, sempre me servi mais de máquinas com o sistema operativo fornecido pela empresa de Gates, mas a escolha foi condicionada desde o início: os computadores da maçã eram bastante mais caros e o acesso ao software muito mais difícil. Com pouco dinheiro para investir, eu não tinha hipóteses de escolha. No entanto, sempre vi nos Mac aquilo que vêm muitos dos seus indefectíveis adeptos: computadores-objecto bonitos, quase sempre fiáveis e com um interface invariavelmente userfriendly. Nunca deixei de me servir deles ao longo dos últimos vinte anos, embora tenham sido só o iPod e o iPhone – com a revolução que introduziram na gestão diária do velho hábito de ouvir música e da nova mania de comunicar em rede – a aproximarem-me um pouco mais dos produtos da Apple. Tal como tem acontecido com tantas pessoas.

        Hoje ao fim da tarde, Steve Jobs, o chief executive officer da empresa irá revelar o super-guardado segredo que poderá materializar, ao que consta, o arranque para a sua terceira vida: uma máquina, leve, fina e elegante, em formato tablet e a um preço razoável, que fará conjugadamente tudo aquilo que fazem agora netbooks, iPods, iPhones e sobretudo e-books, sugerindo uma nova viragem não só na utilização diária das próteses computacionais, mas principalmente na caracterização do hábito e do acto de ler. Nestas coisas, sabe-se como é difícil ser-se bruxo ou profeta, mas a cumprirem-se as previsões dos especialistas, os apóstolos da imortalidade do livro em papel e da vida eterna da galáxia de Gutenberg irão mesmo confrontar-se, talvez como nunca antes ocorreu, com a necessidade de reverem a sua visão dos mundos comunicantes. A sua forma, irrevogavelmente datada e condenada, de taparem o sol com a peneira perante as práticas e as expectativas adoptadas com entusiasmo pelas gerações mais recentes. Quem vo-lo diz vive os seus dias entre milhares de livros, de revistas, de jornais em cartão, cola e papel. Vive deles, precisa deles, snifa-os glosando muitos e até escrevendo alguns. Mas nem por isso aceita fazer de cego ou de avestruz.

        Depois da coisa – Consumada a saída do iPad, no essencial as expectativas criadas parecem manter-se, com algumas objecções e outros tantos factores de entusiasmo. Leia-se a propósito o que escreveu Paulo Querido.

          Atualidade, Cibercultura

          Fantasia reaccionária

          Os bons velhos tempos

          Desde que em 2006 entrou em vigor em Espanha a legislação destinada a reprimir o ancestral hábito de fumar, diminuiu o consumo do tabaco mas cresceu o número de fumadores. Em 2009, 31,5% dos nuestros hermanos afirmou fumar, no mínimo, de forma moderada, quando três anos antes a percentagem era de 29,5%. A diferença seria insignificante se não derrotasse os objectivos «profilácticos» da lei e não servisse agora de justificação para impor regras ainda mais severas e restritivas. A verdade é que ao longo destes anos elas se mantiveram razoavelmente suaves e de aplicação bem mais flexível do que aconteceu em Portugal, como qualquer cidadão pode constatar, entre três passas e outras tantas baforadas, de cada vez que cruze a linha de fronteira e avance até à distância de um tiro de bacamarte. Porém, se tudo for agora uniformizado pelo diapasão do antitabagismo furioso, deixaremos de distinguir o «mau vento» que a nicotina insinua e sofrerá rude golpe a castiça defesa da identidade dos nossos ares. Sejamos claros: lá no fundo, os defensores espanhóis de uma lei mais severa são iberistas disfarçados ou então ressabiados de 1640. Por isso, se os de Madrid aprovarem as suas normas mais limitativas, apenas nos restará, em nome da pátria dos Pereiras, dos Albuquerques, dos Mouzinhos e dos Coutinhos, um voluntarioso regresso ao uso liberal do Provisórios e do Três Vintes.

            Apontamentos, Devaneios, Memória

            Do outro lado do tempo

            Durante anos, a guerra (a «Colonial», a «do Ultramar») permaneceu tema intocável para a maioria dos portugueses que nela participaram como combatentes. Enquanto durou, os militares não podia comentá-la sem correrem riscos. Depois, morto o império, começou a circular que todos a tinham travado contra a sua consciência. Parecia que todos haviam sido anticolonialistas, preferindo fazer-se de conta que o passado colonial estava morto e enterrado. Quem tentava falar do assunto, batia invariavelmente numa parede de silêncio que tornava impossível perceber o lado humano e não-oficial daquilo que acontecera. Pelos anos oitenta começaram então, timidamente, os almoços de confraternização, geralmente preenchidos com as épicas aventuras partilhadas aos vinte anos ou com fanfarronices sobre «turras» e «pretas». Só pelos meados da década de 1990 surgiram os primeiros estudos e recolhas de testemunhos, e só agora, quase quarenta anos passados sobre o fim do conflito, se tornou normal ouvir ex-militares, ou as suas famílias, a falarem de forma livre dessa experiência durante tanto tempo calada. Percebe-se finalmente que tudo foi menos simples, e menos insignificante para a vida das pessoas envolvidas, do que se pensava com o cheiro a pólvora ainda nas narinas.

            Outro tema, porém, continuou oculto, ou pelo menos mascarado e entrecortado por longos silêncios: a vida dos civis portugueses que povoaram os territórios africanos foi provisoriamente apagada. E os muitos que voltaram à terra de onde haviam partido, ou de onde tinham saído os seus pais, foram, depois de marginalizados mais pela sua diferença cultural do que por uma eventual cumplicidade no sistema colonial – efectiva em alguns casos, muito relativa noutros –, forçados a integrarem-se para que pudessem ser reconhecidos como portugueses normais, e não como perversos «retornados». Tem sido elogiada a forma como foram incorporados na vida do país, muito mais rápida e supostamente indolor do que a vivida pelos franceses pied-noirs obrigados em 1962 a saírem da Argélia. Mas esse processo, aparentemente pacífico e «exemplar», foi feito à custa do apagamento de histórias de vida, de valores, de costumes, de recordações, que eram os daqueles que haviam regressado ou chegado pela primeira vez à «metrópole» em 1974-75. De certa maneira, foi uma violência o que se passou, e foi ela – associada, por vezes, à perda dos privilégios ou das facilidades que muitos tinham conhecido em África – que levou muitos desses portugueses de torna-viagem a romantizarem ou a fantasiarem a vida que um dia tiveram, ou imaginam que tiveram. Uma vida perfeita, feita de bem-estar, de praias, de caçadas, de bailes, de mariscadas, de sexo, de noites de convívio, numa sociedade dentro da qual tudo parecia ter o seu lugar predestinado e imutável, num cenário onde racismo parecia «invisível», camuflado em Angola ou naturalizado em Moçambique.

            É por isso que um livro como o Caderno de Memórias Coloniais, de Isabela Figueiredo (ed. Angelus Novus, 2009), se torna perturbante para muitas dessas pessoas, ou para aquelas que delas herdaram o discurso e os mitos. Elogiado por uma grande parte da crítica, com direito a grande destaque em diários e semanários, com um volume de vendas que fez esgotar a edição inicial, tem também sofrido o impacto de leituras sugeridas por quem vê nele algo capaz de colidir com a sua visão modelar e quase paradisíaca de um passado que prefere guardar como então o viu e como o gostaria de continuar a ver. Com os contornos de um tempo de prosperidade e de ordem social, sem confrontos visíveis, basicamente feliz. Mas ele não aconteceu assim – ou apenas assim – e o livro de Isabela Figueiredo, nascida em 1963 na cidade de Lourenço Marques, mostra-o com clareza. Acontece que existia, mas existia mesmo, um ambiente colonial complexo, no qual a paz das esplanadas escondia a violência latente ou explícita do quotidiano, e, sobretudo para os mais jovens nos anos da guerra, onde a aparente unanimidade podia camuflar a dúvida ou a busca de horizontes culturais mais livres e cosmopolitas, embora uma certa «nostalgia africanista» tenda a desvalorizar este lado.

            Caderno de Memórias Coloniais não é um texto fácil para quem integre essa dimensão mais ou menos idílica e a technicolor do passado de muitos dos portugueses brancos que habitaram as antigas colónias, tornando menos agradáveis as imagens quase utópicas, de postal ilustrado, que abundam por aí. Além disso, resulta de um acto de coragem da autora, evidenciando, entre a ficção e não-ficção, um trabalho de exposição pessoal e familiar do passado (e também do presente que se lhe cola) que não deixará de ser pago com juros. Isabela Figueiredo faz notar, na conversa-entrevista que integra o próprio volume, que já houve quem lhe dissesse «que temos de ultrapassar o passado, que não vale a pena tocar em assuntos tão sensíveis», mas contrapõe ao argumento que, se temos realmente de ultrapassar esse passado, se os portugueses do outro lado do mar precisam mesmo de ultrapassar esse passado, «só o podemos fazer depois de o enfrentar». Nem que fosse apenas por este acto de enfrentamento, este livro incómodo mereceria sempre a nossa atenção. Os portugueses que povoaram o império colonial, ou «o nosso ultramar», não podem ver o seu passado apagado, esquecido, ou então pintado com as cores apenas agradáveis que a descolonização teria manchado. Ele conteve também experiências amargas, difíceis, perturbantes, por vezes únicas. Reconhecer esta diversidade só valoriza esse passado, não o degrada como julgam os mais cegos ou preconceituosos.

            | Publicado também no Arrastão

              Etc., História, Memória

              Um pequeno caso de amnésia

              Rommel no deserto

              Se história e memória não são a mesma coisa, uma não existe sem a outra, uma vez que ambas têm como referente o passado e os ecos que deles nos chegam, influenciando-se reciprocamente no processo de construção e de apagamento. Sabemos, por exemplo, como a revisão da história, levada a cabo muitas vezes por políticos e historiadores, começa antes por uma manipulação da memória colectiva, criando-se as condições para que, de seguida, certos «técnicos do passado» executem o seu trabalho sombrio. Assim ocorre entre nós, por exemplo, com a recente «suavização» do salazarismo, que começou com a tentativa de injecção mediatizada, no imaginário colectivo, de um ditador de Santa Comba com um ar simpático ou até de playboy, e tem prosseguido com a produção de livros, artigos e eventos destinados a activar um certo processo de branqueamento do homem e da sua acção.

              Este método é universal, e daí o cuidado que é preciso ter perante a manipulação do conhecimento histórico como cenário que legitima as escolhas do presente. Só o esquecimento desse lado ambíguo da história pode assim permitir, por exemplo, que os responsáveis da selecção argelina de futebol tenham escolhido como designação utilizada, pelos jogadores que em Angola disputam neste momento o CAN 2010, o qualificativo de «raposas do deserto». É verdade que estas são pequenos canídeos que habitam as regiões desérticas, semidesérticas e montanhosas do Norte de África, contendo por isso uma simbologia local própria. Mas para quem tem como referente histórico o conflito brutal que foi a Segunda Grande Guerra – e o CAN é já um acontecimento global, que por isso não pode ignorá-lo – a «Raposa do Deserto» era Erwin Rommel, o arguto e inflexível comandante-em-chefe do Afrika Korps, com qual Hitler procurou obter o controlo estratégico do Magrebe e do Egipto. Conhecido na época, entre muitos árabes, como «o Libertador», por ter combatido frontalmente a presença imperial inglesa na região. Trata-se, provavelmente, de um episódico caso de desconhecimento ou de amnésia. Não é grave e não vale uma tempestade, pois a Guerra é já, para a esmagadora maioria das pessoas, um acontecimento longínquo, quase de ficção. Mas não deixa de ser sintomático.

              ||| Publicado também no Arrastão

                Atualidade, História, Memória

                A Hora-A

                Não tenho por Manuel Alegre uma admiração que vá para além daquela que ele me merece como cidadão com um passado de coragem cívica, e, no sentido dilatado do qualificativo, como homem de esquerda. Não o aprecio particularmente como poeta, apesar de reconhecer o valor simbólico ocupado pelas palavras de alguns dos seus poemas na disseminação de uma «cultura de oposição» ao regime derrubado em Abril. E não o considero por aí além como político com obra feita, apesar do recurso tonitruante da palavra, a que recorre, constar da minha memória individual das noites em que ouvia a Voz da Liberdade debitar pelas ondas hertzianas esperança e resistência. Nos últimos anos incomoda-me sobretudo a recorrente presunção de superioridade moral oferecida por um discurso demasiado datado e paternalista sobre Liberdade, Ética, Cultura, Pátria ou Democracia (assim mesmo, abusivamente pronunciados com maiúscula). Mas a verdade é que, perante as arengas vazias de humanidade, de emoção e de utopia dos amanuenses que nos têm governado, e face ao que Miguel Sousa Tavares qualifica hoje no Expresso como a ausência de «uma dimensão cultural e histórica exigível para o cargo que ocupa» comprovada por Cavaco, Alegre parece ser a escolha possível para ajudar a devolver a política à praça pública na qual, em Portugal, ela renasceu. A confirmar-se a candidatura (e a não existir mudança de projecto com o PS de Sócrates a exagerar o protagonismo, evidentemente), votarei em Alegre não porque o sinta como oráculo da Pátria, salvador do povo ou derradeiro avatar de D. Sebastião, mas porque o encaro como veículo para ajudar a exorcizar essa concepção puramente administrativista da política que nos tem subjugado. Já não será pouco.

                ||| Publicado também no Arrastão

                  Opinião

                  Haiti

                  «Haïti, la malédiction», um excelente artigo que nos ajuda a perceber melhor as circunstâncias em que a enorme catástrofe que se abateu sobre o Haiti se tornam ainda mais dramáticas, pode ser encontrado (em francês, naturalmente) na edição online do Le Monde (obrigado, MJP).

                  Entretanto, a Assistência Médica Internacional (AMI) lançou uma campanha para ajudar a sua missão de «reconstruir as vidas que ficaram destruídas». Para contribuir:

                  – Pode fazer uma transferência bancária através do NIB: 0007 001 500 400 000 00672

                  – No Multibanco basta seleccionar o menu “Pagamento de Serviços” e inserir Entidade 20909 Referência 909 909 909 e a quantia que escolheu doar.

                    Atualidade, Democracia

                    Google China, Inc.

                    Google China
                    Imagem: Reuters

                    A Google, Inc. não é propriamente uma corporação de anjos. Passaram já os tempos juvenis e idealistas de Larry Paige e Sergey Brin, os dois ex-estudantes de doutoramento da Stanford University que em 1996 arrancaram com o inovador e eficaz serviço de pesquisa, e nos últimos anos, para crescer e se afirmar no universo empresarial, a companhia precisou estabelecer acordos com grupos económicos e com governos nem sempre interessados na livre circulação da informação. Mas paradoxalmente esta escolha acabou por aproximar um perigo que a pode aniquilar, e por isso há que agir com algum cuidado. Acontece que, dadas as suas características, os serviços da Google requerem uma relação de confiança, um compromisso, com a liberdade fruída pelo utilizador comum, sem a qual este deixará de confiar nos serviços que utiliza, acabando por trocá-los por outros. Não quero ser cínico – nem sou capaz, obviamente, de adivinhar aquilo que passa pela cabeça dos administradores da empresa sediada em Mountain View, Califórnia –, mas estou em crer que a constatação deste perigo terá pesado na atitude adoptada pelos seus responsáveis no conflito que mantêm agora com o governo chinês. A censura sofisticada e implacável da Internet em curso na China – cujo governo continua empenhado em combinar a face mais execrável do capitalismo selvagem, que inclui até a espionagem industrial por via informática, com a vertigem repressiva que traduz o lado mais negro do «socialismo de Estado» – preocupará os responsáveis da Google na medida em que, se estes fazem cedências excessivas ao limitar da liberdade de circulação da informação dentro do imenso território chinês, irão, muito provavelmente, perder a confiança dos utilizadores e clientes no resto do mundo. E não convém arriscar.

                    ||| Publicado também no Arrastão

                      Cibercultura, Democracia, Opinião

                      Pereira segundo Fonseca

                      Tomás da Fonseca

                      A recente canonização de Nuno Álvares Pereira envolveu a publicação de um grande volume de opiniões e de trabalhos – uns mais criteriosos, outros bem menos – que de um modo geral tenderam a fazer renascer a fantasia de um Condestável inquestionavelmente heróico. Insistindo quase sempre na evocação de uma personalidade na qual a defesa da nacionalidade, o despojamento pessoal e a piedade cristã caminhavam a par na construção de uma personalidade exemplar. Estudos históricos, como os de António Borges Coelho, que haviam chamado já a atenção para o seu perfil violento de senhor feudal foram, no contexto mediatizado que envolveu a decisão papal de converter Nun’Álvares em santo, liminarmente ignorados.

                      A reedição deste opúsculo de Tomás da Fonseca, anarquista, livre-pensador, edificador da I República e opositor do Estado Novo, vem reavivar na memória colectiva este lado menos agradável do Conde de Ourém. Escrito em 1932 para uma conferência pronunciada em Coimbra, provocatoriamente no Centro Académico de Democracia Cristã, na época um viveiro da direita universitária, visou opor-se ao processo de canonização já então em curso e celebrar a imagem de um Nuno Álvares «de vida longa, farta», histórico e não lendário, revelando-o antes como «um arrogante e um poço de vaidade, um mestre na arte de matar e de triunfar» confirmado, segundo o autor, por «todos os cronistas». Face a tanto exemplar disponível de uma História parcial, beata e oportunista, vale a pena voltar a este texto. [Tomás da Fonseca, O Santo Condestável. Alegações do Cardeal Diabo. Prefácio de João Macdonald. Antígona, 112 págs.]

                        História

                        Expectativa

                        Trotsky

                        Depois das biografias bastante controversas de Lenine e de Estaline, o historiador Robert Service voltou-se agora para o intelectual marxista e revolucionário bolchevique Lev Davidovitch Bronstein, e o resultado parece um pouco inquietante para a sobrevivência do Trotsky mítico. Para além do papel decisivo que teve na vitória militar da revolução russa de 1917, a sua dimensão lendária ter-se-ia ficado a dever a ser alguém que se opôs abertamente a Estaline mas jamais chegou a controlar o poder na URSS – logo nunca «sujou as mãos» –, e também a possuir um evidente carisma, favorecido pela capacidade oratória e por uma esteticização da própria imagem. Ao ponto de muitos trotskistas, em larga medida apoiados na monumental história de vida publicada por Isaac Deutscher entre 1954 e 1963, o terem transformado numa espécie de «proto-Che Guevara».

                        Robert Service procura pulverizar esta ideia: de acordo com a sua perspectiva, não só Trotsky jamais teve a possibilidade de chegar ao topo por ter sido sempre ultrapassado pela habilidade de Estaline, como a sua insuportável arrogância fazia com que a maioria dos camaradas com os quais tinha de conviver o detestasse. Lia ostensivamente romances franceses nas reuniões do Politburo sempre que um orador o aborrecia, por exemplo, o que não o tornava propriamente um ente querido. Além disso, nada indica que, se tivesse conseguido dirigir o país, fosse capaz de impor à experiência da construção do socialismo da URSS o tal «rosto humano» do qual alguns continuam a proclamá-lo o grande profeta, uma vez que muitas das atitudes arbitrárias que tomou enquanto teve alguma autoridade apontam justamente no sentido oposto. Service esforçou-se até por desenhar o retrato de um monstro, capaz da maior violência tanto na intervenção pública quanto na vida privada. De certa forma, como comentou Robert Harris no Sunday Times, terá assassinado Trotsky pela segunda vez. Os seguidores deste, claro, abominaram o livro logo após as primeiras páginas.

                        Estou agora à espera das seiscentas e tal páginas, já encomendadas e a caminho, para poder escrever alguma coisa mais substancial sobre a obra. Aquilo que fica é, para já, apenas a notícia e a expectativa. E a constatação reiterada de que não existem revolucionários «puros», seres providenciais capazes, depois de terem sentido nas narinas o cheiro a pólvora e experimentado um poder quase sem limites, de permanecerem perfeitos e irrepreensíveis. Pode parecer que não aos mais distraídos, mas há ainda quem persista nesta crença absurda. [Robert Service, Trotsky. A Biography. Macmillan, 2009. 624 p.]

                        ||| Publicado também no Arrastão

                          História

                          Eu, este blogue e o Arrastão

                          A partir de hoje faço parte – em conjunto com o Daniel Oliveira, o Pedro Sales e o Pedro Vieira, agora também com o Bruno Sena Martins, o João Rodrigues e o Sérgio Lavos – do septeto que concebe, produz e realiza o Arrastão. Um blogue de esquerda, com a batida cardíaca centrada no comentário de actualidade política, que passa a agregar uma maior diversidade temática e estilística.

                          Transitar de um blogue em solo absoluto, com uma média diária de 320 visitas, ampliada apenas em ocasiões especiais, para outro, colectivo e com doze ou treze vezes mais, irá impor um tom e uma argumentação um pouco diferentes daqueles que podem ser encontrados aqui. Mas acredito que possa ser uma boa experiência, assim eu aguente a pedalada, já que há mais (e muita) vida do lado de fora da blogosfera.

                          Sei que A Terceira Noite tem características particulares e um padrão de visitante que nem sempre gosta de espaços ruidosos e movimentados. Por isso, não só uma parte dos textos que irei publicando no Arrastão será reproduzida aqui, como outros – notas de leitura, apontamentos dolentes, delirantes ou entusiásticos, textos vindos de experiências menos colectivas – continuarão a ser editados apenas neste lugar nocturno. Descansem pois os visitantes certos, as obstinadas leitoras, que lhes não fugirei, assim queiram seguir-me neste subúrbio. Mas fica o convite para aparecerem pela nova morada.

                            Novidades, Oficina

                            «Mau vento» de Espanha

                            Franco ponderou e preparou uma participação espanhola na Segunda Guerra Mundial ao lado da Alemanha e da Itália. O historiador Manuel Ros Agudo interessou-se há alguns anos pelo tema, tendo chegado a algumas conclusões originais, com impacto no conhecimento renovado da nossa história recente. Desde logo porque as provas que reuniu deitam completamente por terra o mito franquista de uma neutralidade não-beligerante que supostamente teria salvo o país de se ver envolvido numa nova guerra.

                            A verdade, como documenta A Grande Tentação de maneira exaustiva e com recurso a informação inédita, é no entanto completamente diversa, pois Franco procurou entrar no grupo de potências agressoras do Eixo determinando, com esse objectivo em mente, a minuciosa planificação de quatro operações militares que levariam Madrid a ter um papel activo no conflito. Estas visariam um ataque, praticamente simultâneo e de surpresa, a lançar sobre Gibraltar, o Marrocos Francês, o Sudeste da França e Portugal. Os objectivos políticos da aventura parecem claros ao historiador: ela destinava-se a transformar a Espanha no terceiro parceiro dos alemães e dos italianos, conferindo-lhe «um peso e uma capacidade de decisão sem precedentes na Nova Ordem euro-africana que se preparava», para além de uma dimensão territorial consideravelmente alargada.

                            Esta tradução comporta um subtítulo – «Os Planos de Franco para Invadir Portugal» – que não consta do original castelhano mas realça o vector desse projecto belicista que nos dizia mais directamente respeito e que também mais nos pode perturbar, habituados de longa data a dar um grande crédito ao «Pacto de Amizade e Não-Agressão» luso-espanhol assinado em Março de 1939 e reforçado no ano seguinte com um protocolo adicional. Mas a verdade é que, por essa mesma altura, corria já a preparação da operação militar-relâmpago que deveria ter lugar nos primeiros meses de 1941 e envolveria só na fase inicial cerca de 250.000 homens.

                            A sua justificação formal integrava a invasão de Portugal num conjunto de movimentações de natureza táctica destinadas a isolar e a enfraquecer o poderio militar britânico, mas assentava num profundo menosprezo pela capacidade militar dos portugueses, passando uma esponja sobre o apoio de Salazar aos insurrectos franquistas durante a Guerra Civil e visando uma mais do que provável reunificação ibérica. Em conversa com Ribbentrop, o ministro alemão das Relações Exteriores, o ministro franquista Serrano Suñer terá mesmo afirmado que «geograficamente falando, Portugal na realidade não tinha o direito de existir.»

                            Conta-se afinal uma história do que não aconteceu. Sem as contrapartidas diplomáticas e territoriais que esperava dos alemães, o Caudilho viria a desistir dos seus desígnios hostis, convertendo essa «grande tentação» expansionista, que durante alguns anos o animou, numa «grande frustração», praticamente limitada ao controlo político de Tânger. O conhecimento destes planos permite-nos entretanto aferir melhor da verdadeira natureza do regime franquista e das intenções do seu mentor. Num exercício de história virtual, podemos também conjecturar sobre o que seríamos hoje se as coisas tivessem seguido o caminho previsto.

                            Manuel Ros Agudo, A Grande Tentação. Os planos de Franco para invadir Portugal. Tradução de Jorge Fallorca. Casa das Letras, 372 págs. [Publicado na revista LER de Dezembro de 2009]

                              História, Leituras, Olhares