Depois do post anterior sobre Ismail Kadaré e (um pouco) sobre o seu último livro, retorno à problemática albanesa, uma vez que esta não me sai da cabeça. Não por ser problemática, mas por ser albanesa. Acontece que sempre me pareceu profundamente injusta a menorização – por comparação com o impacto do exemplo chinês – da influência do «país das águias» na projecção, à gauche do PCP, de uma alternativa ao regime caduco do «Salazar que ri», como alcunhava o povo a Marcello Caetano. Mas a verdade é que para muitos marxistas-leninistas-maoístas, esvaziada por uma vez a Grande Revolução Cultural chinesa, Enver Hoxha é que estava a dar. E se ninguém se proclamava hoxhista era só porque a palavra soava mal e podia prestar-se a confusões pouco conciliáveis (ou talvez não) com a moral proletária. Muitas horas de nocturno descanso foram consumidas a ouvir a onda curta, vociferada em português do Brasil, que começava assim: «Aqui Rádio Tirana, voz do Partido do Trabalho da Albânia e do marxismo-leninismo, a sua doutrina sempre jovem e científica». Ao que se seguia invariavelmente uma versão bastante singular da Internacional, umas frases do camarada Hoxha «sobre a situação política mundial», as últimas novidades da guerrilha do Araguaia e 15 minutos de música folclórica do distrito de Gramsh, província de Elbasan.
No que me toca, a problemática albanesa teve ainda um outro impacto, associado a um certo virar de página. Em Abril de 1977 veio a Portugal uma delegação do Partido do Trabalho da Albânia – episódio já mencionado pela Ana Cristina Leonardo na sua Pastelaria –, destinada a ornamentar o primeiro comício público do PCP(R). Num último assomo de convicção pessoal na força da tal «doutrina sempre jovem e científica», ainda fui de camioneta até ao comício no Campo Pequeno para saudar os camaradas albaneses. O momento parecia festivo: muitas bandeiras vermelhas, faixas com palavras de ordem como «os ricos que paguem a crise» e «abaixo a democracia burguesa», música do GAC, julgo que também alguns retratos de Estaline, de Mao e do camarada Hoxha. Mas a festa esmoreceu rapidamente com a entrada em cena da delegação albanesa: um pequeno grupo de idosos de rosto impassível, com chapéus à Al Capone, lenços de Cachemira impecavelmente dobrados no pescoço à maneira dos galãs dos anos 40, e enormes sobretudos cinzentos a contrastarem com o sol de Abril, que conservavam abotoados enquanto batiam palmas daquela forma compassada e aborrecida que podemos observar agora no You Tube. Uma viagem no tempo em forma de pesadelo. E nós que tanto desejáramos encontrar antigos guerrilheiros de porte enérgico e uniforme de partisan, se possível de cartucheira a tiracolo, prontos a esmagar «o imperialismo e o social-imperialismo», empenhados em dar-nos a força da qual tanto precisávamos para resistir à longa ressaca do 25 de Novembro! Creio que o meu entusiasmo esmoreceu logo ali um bom pedaço. E meses depois tinha-me convertido num «independente de esquerda» um tanto problemático. Graças, em parte, à falta de graça dos camaradas albaneses. A juventude não perdoa. Na época dir-me-iam que a «ideologia de classe» também não.