Pãozinho sem sal

pão

Procurando uma vez mais diferençar-se de Marrocos – desde a pré-época das «matrículas europeias» dos automóveis que nos deu para isto –, Portugal é a partir de hoje «o primeiro país do mundo ocidental a ter uma lei que impõe limites ao teor de sal no pão». De acordo com um diploma aprovado na Assembleia da República com os votos favoráveis de todas as bancadas (à excepção de votos contra do CDS-PP, um do PSD e uma abstenção), produzir e vender pão com mais de 14 gramas de sal por quilo passa a ser punido com coimas até cinco mil euros, se o prevaricador for uma empresa, ou 3.500, se for «pessoa singular». De fora ficam apenas os pães com «nomes protegidos», como a broa de Avintes ou o pão de Favaios. A lei é de tal forma precursora que, como disse ao Público o Prof. Jorge Polónia, da Faculdade de Medicina do Porto, só agora «os norte-americanos estão a debater a possibilidade de introduzir limites do teor de sal por via legislativa». «Estamos a servir de exemplo», orgulha-se também Luís Martins, cardiologista e ex-presidente da Sociedade Portuguesa de Hipertensão.

Nada tenho contra o trabalho mais do que louvável que trata de prevenir as doenças cardiovasculares e o cancro do estômago num país onde se abusa tantas vezes do sal. Mas um país com uma identidade gastronómica, perdoe-se o jargão, que passa justamente pelo uso de um certo tipo de temperos em quantidades bem medidas. Pão com sal não é o mesmo que pãozinho sem sal, como lembra a cultura popular. Tal como o pão da nossa infância não é já esse produto insosso e plástico, moldado na espessura e contido nos sais, que se vende por aí. Como muamba de galinha não é muamba de galinha sem uma boa dose de jindungo, abóbora, cebola e alho. Se, no estado indiano do Rajastão, fosse proibido o abuso culinário da noz-moscada e do açafrão, substituídos por um qualquer «aroma», o crime social não seria maior.

Uma vez mais, os fundamentalistas dos corpos normalizados, da saúde a todo o custo, atacam com a proibição, um expediente fácil para substituir as campanhas sistemáticas e imaginativas de prevenção. Uma medida antidemocrática que impede o cidadão de optar, de livre vontade, entre o tipo de alimentação e de condimento que quer ou não comer (ingerir, dirão «eles»), que deve ou não meter da mão para a boca. Assumindo, ao mesmo tempo, a responsabilidade da escolha. Eu, por exemplo, convivo hoje com um problema gástrico derivado da leitura compulsiva, associada a um uso incontido, dessa obra-prima da nossa literatura que é a Cozinha Tradicional Portuguesa. E não é por isso que deixo de assumir as minhas responsabilidades nos excessos, ilibando de qualquer culpa a Dona Maria de Lurdes Modesto. De livre vontade gozei o que gozei, para o mal e para o bem, com o grande «prazer da mesa» lusitana que esta gente moralista, reguladora e intrusa pretende que esqueçamos.

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