Um dos mitos popularizados que envolve a Segunda Guerra Mundial põe frente a frente, como numa versão hollywoodesca da História, uma aliança de «bons» e outra de «maus». O escritor e produtor de séries para a BBC Laurence Rees reconhece ser esta uma forma reconfortante mas bastante redutora de olhar para o passado, mostrando em Segunda Guerra Mundial: À Porta Fechada, com recurso a um aparato documental retirado dos arquivos e de testemunhos de participantes directos nos acontecimentos, que é urgente abandoná-la. Na verdade, entre a assinatura do acordo Molotov-Ribbentrop – o infame pacto germano-soviético de não-agressão e de divisão de despojos assinado em Moscovo em Agosto de 1939 – e o período subsequente à Conferência de Ialta, os líderes das potências responsáveis pela derrota militar de Hitler – Estaline, Churchill, Roosevelt – não pararam de levar a cabo actos de um cinismo, crueza e falta de sentido de justiça que deveriam bastar para retirar-lhes de vez o halo que ainda possam conservar de heróis abnegados e impolutos.
Esta obra perturbante trata de passar em revista e de nos colocar mesmo à frente dos olhos uma teia complexa de manobras de bastidores, de apagamentos suficientemente dolorosos e de brutais iniquidades que tiveram os povos da Europa Central e Oriental, e principalmente a desgraçada nação polaca, como vítimas de matanças e deportações em larga escala, dos quais os três tiveram conhecimento mas que jamais se esforçaram por evitar. Quando não as promoveram. Deste banho de sangue é no entanto a figura do ditador soviético, o decantado «Paizinho dos Povos», que emerge como particularmente sórdida: pelas ruas reduzidas a pó de Varsóvia ou de Berlim, como nos acontecimentos da floresta de Katyn, as demonstrações que patrocinou de completo desprezo pela vida humana de civis e de combatentes mantiveram-se ao nível da sua ambição imperial. [Laurence Rees, Segunda Guerra Mundial: À Porta Fechada. Estaline, os Nazis e o Ocidente. Dom Quixote. Trad. de Manuel Marques. 504 págs. Versão de uma nota publicada na LER.]
O desaparecimento prematuro de Tony Judt suscitou um sem número de evocações. Coincidência invulgar para um historiador, num tempo em que a revisitação crítica do passado tem vindo a ser colocada na prateleira das irrelevâncias. Circunstâncias várias motivaram esta atenção. Desde logo o facto da doença que o vitimou ter afectado poderosamente a capacidade de comunicação de alguém cuja actividade se centrava justamente na difusão do saber. O artigo «Noite», publicado na New York Review of Books quando as sequelas do mal seguiam já o seu irreversível caminho, permanecerá como testemunho lúcido e comovedor de um encontro pessoal com o silêncio. Chamou-lhe ele aí «um encarceramento progressivo e sem fiança». Um segundo motivo dessa intensa atenção prendeu-se com a sua actividade opinativa associada aos dilemas do nosso tempo. Judeu de esquerda desde a juventude, movimentou-se sempre, nesta dupla qualidade, num ambiente pouco afeito a consensos. Perto da morte lembrou-se de como crescera a ouvir os parentes e as visitas lá de casa a debaterem o marxismo, o sionismo e o socialismo: «falar parecia-me até o objectivo da existência adulta». Um terceiro motivo do interesse que instigou adveio do carácter polémico, frequentes vezes a contracorrente, que derivava da sua reiterada heterodoxia. A posição, partilhada aliás com Edward Said, sobre a criação de um Estado único israelo-palestiniano, afastou-o definitivamente de sectores que até aí o tinham acompanhado. Nos últimos tempos, a projecção utópica de um retorno à pureza original da social-democracia, divulgada em Ill Fares the Land: A Treatise On Our Present Discontents (2010), ampliou esse duplo efeito de atenção e recusa.
Muitos são já os que não sabem quem foiMarcelino Camacho, desaparecido hoje aos 92 anos. Por nada de especial: os anos vão passando e vão pesando, a saúde fraqueja, e a dada altura não é fácil permanecer na primeira linha do combate e ter a atenção dos meios de comunicação, para os quais os velhos são tantas vezes trapos que não atraem audiências. Além disso, ser sindicalista não constitui uma «profissão de sucesso»: os sindicalistas não aparecem nas páginas da ¡Hola!. No entanto, quem acompanhou o seu percurso sabe do papel interveniente que teve em momentos tão dramáticos e decisivos da História de Espanha como a Guerra Civil (batendo-se, naturalmente, nas fileiras republicanas), a resistência clandestina ao franquismo ou a construção de um movimento sindical combativo e autónomo. Foi militante do Partido Comunista de Espanha desde 1935, e jamais deixou de o ser, tendo-se aliás oposto, em 1991, à dissolução do PCE na Izquierda Unida. Mas foi ao mesmo tempo um dos principais impulsionadores das Comissiones Obreras, a poderosa organização sindical que manteve sempre uma atitude modelar, de combate mas politicamente bastante aberta, unitária sem ser unitarista, de cuja prática se excluía o centralismo e onde o sectarismo não foi a regra mas sim a excepção. Durante décadas, foram «as CCOO de Marcelino Camacho» e estava tudo dito. Ficou-nos um exemplo e os exemplos não são para esquecer.
Enquanto não leio a tradução da última obra de Tony Judt – Ill Fares The Land: A Treatise On Our Present Discontents (Um tratado sobre os nossos actuais descontentamentos, das Edições 70 e já nas livrarias), aqui ficam dois extractos, retirados da nota de leitura de Manuel Carvalho saída hoje no suplemento Ípsilon do Público. Chamando à reflexão e a algum tento na língua na crítica fácil ao papel moderador do Estado e à atitude dominantemente solidária e optimista, por vezes desdenhosa em relação ao lugar central do dinheiro, que percorreu o mundo ao longo das décadas de 1950-1960.
«Muito do que hoje nos parece ser ‘natural’ data dos anos 80: a obsessão com a criação de riqueza, o culto da privatização e do sector privado, as crescentes disparidades entre ricos e pobres. E acima de tudo a retórica que as acompanha: a admiração acrítica dos mercados livres, o desdém pelo sector público, a ilusão do crescimento eterno.»
«Libertámo-nos em meados do século XX da assunção – nunca universal, mas muito espalhada – de que o Estado é provavelmente a melhor solução para um determinado problema. Temos agora de nos libertar da noção oposta: a de que o Estado – por definição e em todos os casos – é a pior opção disponível.»
O título da notícia é: «Não queriam pagar a conta de 5 mil euros em bar de strip». Se o caso tivesse acontecido com o Zé dos Anzóis ou a Maria Zarolha, os nomes verdadeiros dos meliantes e da sua agremiação viriam escarrapachados no jornal, acompanhados da idade, do local de nascimento e talvez dos depoimentos de um vizinho ou da madrinha do Crisma. Como se trata de «dois conhecidos políticos da cidade de Coimbra», para mais «desagradados com a situação» na qual por acaso se meteram, ficaram as identidades por revelar, centrando-se a notícia em detalhes mais ou menos insignificantes. Sobre a questão essencial – como podem «conhecidos políticos» passar «uma noite de animação» e gastar tanto dinheiro neste género de actividades para labregos endinheirados – nem uma só palavra. Será o local do crime, omitido também, uma sucursal da Tommy Gun’s Garage, nostálgica da Chicago de Mr. Alphonsus Gabriel Capone? Já chegámos ao Uzbequistão?
De vez em quando escrevo três ou quatro linhas sobre uma coisa que deveria ser óbvia: a América não é o Inferno na Terra (e claro que também não é o Céu) e o anti-americanismo primário é tão absurdo e tão idiota quanto o seu contrário, à maneira dos meninos e das meninas do Tea Party. O pequenino e o enorme caminham por ali lado a lado, como em toda a parte, mesmo no Inferno e no Céu. Existe o ódio cego e o crime à escala pública e privada, mas também a generosidade, o movimento e sempre a esperança. Foi esta também que alimentei um pouco mais ao saber hoje que numa votação realizada através da Internet pelo portal AskMen, na qual participaram 500 mil pessoas, Jon Stewart, o judeu agnóstico Leibowitz que é o implacável apresentador de The Daily Show, foi considerado o homem mais influente de 2010 e aquele «no qual os americanos mais confiam». À frente de figurões como Bill Gates, Mark Zuckerberg (o tipo que fundou o Facebook) e Steve Jobs. Barak Obama já não se encontra nos lugares da frente.
Está a tornar-se insuportável a convivência com tanta página de jornal, tanto tempo radiofónico nas «manhãs da informação», tantas horas dos noticiários e debates televisivos a propósito do mesmo assunto. A situação económica do país, a aprovação do Orçamento para 2011, as consequências previsíveis do PECIII e das suas sequelas, inquietam qualquer pessoa que se preocupe com os destinos colectivos e precise de gerir o seu dinheiro. Ou pelo menos de pagar a factura da mercearia. Só um tonto pode fazer de conta que não é consigo. Mas o excesso de informação transformou-se em ruído e está a produzir efeitos muito negativos. O fastio, o desinteresse, mesmo a repulsa ou a pré-depressão, acompanham frases que ouvimos por todo o lado: «já não se aguenta», «não suporto mais», «estou farto disto». Os gestores dos meios de informação deveriam acordar e preocupar-se um pouco com o facto de as pessoas mudarem ainda mais rapidamente do que antes de canal, desligarem o rádio com uma pancada seca, nem sequer olharem para os títulos da imprensa diária. Desde logo por causa dos seus imprescindíveis anunciantes, visivelmente a perderem audiência. Mas, muito mais importante do que isso, porque prestam um péssimo serviço público ao obrigarem os cidadãos a desinteressarem-se, por razões de sanidade mental, de temas que condicionarão obrigatoriamente as suas vidas e sobre os quais deveriam ter uma informação clara, objectiva e plural.
«Já terá o leitor ouvido alguma vez falar das mães palestinianas que choram a transformação dos seus filhos e das suas filhas em bombistas suicidas?» (Gayatri Chakravorty Spivak)
No filme A Vida dos Outros, de Florian Henckel von Donnersmarck, a frase é de Bruno Hempf, o ficcionado ministro da Cultura da RDA, e destina-se a servir o elogio público de Georg Dreyman, um escritor que ele crê, apesar das suspeitas da Stasi, ser fiel ao regime: «Como disse um grande filósofo marxista cujo nome neste momento me escapa, os escritores são os engenheiros das almas.» O «esquecimento» pretendia ser irónico, uma vez que essa frase foi repetidamente atribuída a José Estaline, que aliás a teria aplicado para se referir aos intelectuais no seu conjunto. Nela, a perversão encontra-se num entendimento puramente instrumental do papel do escritor ou do artista, apenas toleráveis enquanto intelectuais se aplicados sem hesitações numa «causa do socialismo» orientada por quem se arrogava dirigi-la num sentido unívoco e historicamente irrevogável. Materializado na União Soviética de forma crescentemente inflexível a partir de Junho de 1925, quando se adoptou uma resolução «Sobre a política do Partido no domínio da literatura artística» assinada por Nikolai Bukharine, o princípio passou posteriormente a ser aplicado na generalidade dos Estados do chamado «socialismo real». Aí determinando privilégios e exclusões, o direito à voz ou a obrigação do silêncio, por vezes a linha entre a vida e a morte.
Não é verdade que um dicionário seja apenas e só uma obra de referência, daquelas que não se podem ler de seguida e precisam de uma dúvida prévia para que as páginas se abram. Conheço uns quantos que li de cabo a rabo e tenho alguns, relativamente recentes, ali a olharem para mim. Por exemplo, o Dicionário de Mitos (traduzido), de Carlos García Gual, ou o Dictionary of Imaginary Places, de Alberto Manguel e Gianni Guadalupi. Outro será o Novo Dicionário do Islão. Palavras, Figuras e Histórias, da jornalista Margarida Santos Lopes, que retoma e desenvolve em 450 páginas uma edição anterior, saindo agora com a chancela da Casa das Letras. Num tempo em que falar ou escrever de ou sobre o Islão – muitas vezes de cor – se tornaram práticas banais e bastante frívolas, é sempre bom aprender aquilo que se não sabe, desfazer dúvidas, esclarecer mal-entendidos, estabelecer ligações impensadas, para não dizermos tolices ou pegarmos descuidadamente o fogo a explosivos.
Sabe, por exemplo, quem foram Habil e Qabil? Pois foram os filhos putativos de Adão e Eva, mencionados no Corão quando é contada a história do primeiro homicídio. A mesmíssima história que a Bíblia «semita» considerou ter envolvido Caim, o agricultor sedentário, e Abel, o nómada assassino. E tinha conhecimento de que Aflaton foi durante muitos anos ensinado nas escolas corânicas (trata-se, ora vejam lá, do nosso velho conhecido Platão). E que o Corão tem apenas 90 versículos sobre questões legais, sendo a maioria das determinações da shariah incorporada posteriormente por «teólogos muçulmanos». E que na segunda metade do século XIX o escritor egípcio Qusim Amin publicou dois best-sellers, A Libertação das Mulheres e A Nova Mulher, nos quais defendia a abolição do véu? E que Shirin Ebadi, a iraniana que foi a primeira muçulmana a receber o Nobel da Paz, viu o valor do prémio ser retirado da sua conta bancária pelas autoridades de Teerão? Aprende-se muito, de facto, como este Novo Dicionário. Editado com um prefácio de Jorge Sampaio, que não se esquece de o qualificar, com propriedade, como instrumento «em prol do reforço das nossas democracias multiculturais e de uma cultura de tolerância e paz».
Em Gainsbourg – Vida Heróica, de Joann Sfar, a ponta incandescente do cigarro e o fumo que dela se liberta têm uma dupla utilidade. Objecto omnipresente e grande vício, evocadores do jovem pintor-pianista Lucien, uma noite transfigurado por Juliette Gréco – pelo menos no filme, e talvez assim tenha acontecido também fora do cinema – em Serge, o compositor de canções, o artista de variedades, o futuro agent provocateur enrugado e decadente. Mas ao mesmo tempo, num tempo em que nos impõem que os maus, os ameaçadores, aqueles que pugnam pela desordem, são sistematicamente associados ao acto compulsivo de fumar, serve para subverter os códigos dos enredos higienicamente correctos. Logo no genérico, concebido como uma longa tira de banda desenhada, o fumo do cigarro é o ar que se respira e a água que se bebe: todos fumam, constantemente, perdidamente… menos um pelotão de nazis que atravessa a Paris ocupada sem qualquer concessão ao hábito.
É fácil gostar do filme, mas não só por se gostar da poesia pop que escapa das canções de Gainsbourg. Da música inesperada, sempre uns tantos passos à frente, do respirar da palavra dúctil e só aparentemente repentina que corria paralela às tendências dominantes da chanson française do tempo, praticadas pelo crooner Aznavour ou por um militante Brassens. Gostei também deste filme por aquilo que se percebe desde o início mas que o realizador entendeu dever recordar, no final dos 130 minutos, ao espectador mais distraído: de SG disse não serem «as verdades dele» que o interessaram, «mas sim as suas mentiras». Neste sentido, não se trata de uma biografia clássica que apenas recapitula uma história conhecida, nem de uma hagiografia que transforma o biografado num ente predestinado. Procura-se antes o processo que levou a personagem a tomar conta do homem.
A «vida heróica» de Serge que nos conta Sfar agarra o heroísmo pelo lado que me parece certo: todos os heróis humanos são, fora dos momentos em que exercem a sua singular profissão, no dia-a-dia das discussões domésticas e das contas por pagar, uns tipos insuportáveis, a quem só os excessos, de perversidade ou de nobreza, de paixão ou de raiva, associados a um sentido de justiça cujo código são eles próprios que escrevem, conferem a dimensão de extravagância e de bravura. Por isso, por não ser um Gaisnbourg canonizável, mas na realidade um anti-herói com muito de atormentado e alguma coisa de oportunista, tão singular e excessivo como tantas pessoas comuns que nunca saíram em capas de revista, é que esta «vida de artista» em formato animado nos pode seduzir. Humanizando com muita dignidade a própria decadência do biografado, contando com algum pudor a sua encenação do excesso. A desmesura da música como modo de vida, de sexo com divas apetecíveis e de cigarros Gitanes que se acendiam uns nos outros. Um belo filme francês, deixem que vos diga.
Adenda – O trabalho de legendagem é por vezes mau. Não sei se por dificuldades com alguma das duas línguas se por mero descuido. Um exemplo: transformar «Je t’aime / moi non plus» em «Eu amo-te / eu também não» não lembra ao diabo.
«Fue precisamente en la década de los treinta, cuando las prolongadas secuelas de la Gran Depresión roían la existencia de la inmensa mayoría y otra guerra mundial se vislumbraba en el horizonte, cuando surgió en Estados Unidos una nueva mitología repleta de superhéroes consoladores: Superman, Batman y Robin, Wonder Woman, Capitán Marvel, Aquaman, Supergirl, etcétera. Ellos serían, en la imaginación de las gentes, los únicos capaces de enfrentarse a los más terribles villanos.» (Manuel Rodriguez Rivero)
Pela terceira vez em apenas oito anos, o Prémio Sakharov para a Liberdade de Pensamento foi para alguém que nasceu em Cuba. Não vou fazer aqui de ingénuo e dizer que a atribuição do galardão não depende de uma agenda política. Claro que depende. Mas isso não será em si um mal, sobretudo quando as razões invocadas para as escolhas não se prendem com as convicções pessoais dos premiados mas sim com a sua luta pelo direito de todos a poderem proclamá-las, sejam elas quais forem. Como anuncia o site do Prémio, este recompensa, tão-somente, «personalidades excepcionais que lutam contra a intolerância, o fanatismo e a opressão».
Em 2002 foi Oswaldo Payá Sardiñas, fundador e organizador do Projecto Varela, destinado a reunir, baseado na própria constituição cubana, as assinaturas necessárias para sugerir ao governo algumas mudanças legislativas. Em 2005 foram as Damas de Blanco, o grupo de mulheres que luta diariamente pela libertação dos seus familiares presos por motivos estritamente políticos. Agora foi a vez de Guillermo Fariñas, o activista, psicólogo e jornalista independente que se tornou um dos mais conhecidos dissidentes cubanos, quando, com apenas 23 anos, iniciou greves de fome para protestar contra os excessos do sistema monopartidário. Aquilo que impressiona nestes casos é o facto de nenhuma das figuras premiadas se constituírem como opositores declarados do regime, nenhuma delas exigir o fim do «socialismo» cubano, limitando-se a pedir que ninguém seja punido por proclamar aquilo que pensa.
Tão simples quanto isto. E, no entanto, tão difícil de aceitar por um regime violento mas inseguro, que só pode ter medo do seu próprio povo para o manter assim amordaçado. Arruinando por isso os vestígios de prestígio e de simpatia – no passado recolhidos nos mais diversos quadrantes de opinião dispersos pelo planeta, e não associados apenas, como hoje, a grupos bem identificados de indefectíveis – vindos ainda daquele tempo em que representava um sinal de esperança na construção de uma ordem mais justa, mais solidária e mais democrática. Outro tempo.
Este é um post-catástrofe. Números divulgados apontam para que cerca de 20 por cento da população portuguesa sofra de uma doença «que se caracteriza por tristeza mais marcada ou prolongada, perda de interesse por actividades habitualmente sentidas como agradáveis e perda de energia ou cansaço fácil». Isto é, de depressão. Estes dados reportam-se a estimativas que por sua vez se fundam nos casos já diagnosticados. Na realidade, os números tenderão a subir quando puderem ser consideradas as situações de fronteira, que colocam quem com elas convive numa posição de grande vulnerabilidade, ou os casos não declarados, mascarados através de atitudes erráticas que resistem à melancolia recorrendo a uma «fuga para a frente». Mas trata-se aqui de um vigor à beira das lágrimas, perto de se transformar, ao primeiro pretexto, no seu contrário. Ou de testar os seus próprios limites.
Em Janeiro, o mais tardar em Fevereiro, quando o bolo-rei estiver comido e já não houver bacalhau para meter no microondas, quando os cintos começarem verdadeiramente a apertar, o panorama será agravado, concorrendo depressão e recessão na propagação da infelicidade. Desta nascerá o desespero e a prostração, mas também, acreditem, a ira. Diminuirá então a produtividade e crescerá o desprezo por uma ordem injusta, propagando o anseio de uma mudança radical. Cidadãos comuns transformar-se-ão em hooligans ou em maximalistas para poderem sobreviver. E não será apenas à noite, a coberto da escuridão. Se virem bem os diligentes responsáveis pelas agências de rating, bem como os agentes económicos e os dirigentes políticos que se lhes submetem sem resistência, despeito e desordem são factores pouco favoráveis ao crescimento económico e à paz social que supostamente o deverá sustentar, e dos quais tanto cuidam. Não é preciso ser-se adivinho ou profeta para perceber isto. Não sei se dentro deste caldo de cultura crescerá a semente da violência se o ovo da serpente, ou se ambos, mas nada de bom se anuncia. Pensem nisto por um minuto.
Quando tive a primeira gramática – se não me engano a de Pires de Castro, que já vinha do final dos anos trinta e herdei de um tio – fixei-me, como qualquer criança normal que prefere o misterioso e o inesperado, nas interjeições. Essas palavras-relâmpago, indeclináveis, que nunca mudam mas revelam sempre fortes estados emocionais e sensações súbitas. Que empurram sem nos deixarem pensar, que incentivam ou assustam dispensando frases que demoram demasiado tempo a pronunciar. Com algumas foram casos de amor à primeira vista: Apre! Irra! Arre! Ufa! Eia! Sus! Mesmo o Ai! e o Ui! pareciam bombons para quem achava ainda que a dor durava só um segundo. Existiam também aquelas que o padre confessor traduzia numa penitência infernal de dez salvé-rainhas, trinta pai-nossos e cinquenta avé-marias, como Porra! Merda! Chiça! e outras que os vocabulários impressos omitiam. A vida vivida foi trazendo mais, menos vulgares, imperativas, como Oxalá! Coragem! Força! Avante! Tchau! Uau! Já o assanhadiço Capitão Haddock ensinou-me as melhores: Raios! Coriscos! Ectoplasma! Equinoderme! Cercopiteco! Lembrei-me de todas elas por estes dias ao sentir na pele os pesados açoites do PECIII, ao ouvir as palavras dos economistas de uma nota só que pedem mais e mais sangue, ao ver os noticiários dos canais de televisão que se comprazem em deixar-nos mais deprimidos a cada minuto. Credo! Chega! Socorro! Rua! Ah! Aaaaaahhhhhh!
Um dia Mario Vargas Llosa parafraseou em público palavras de Albert Camus: «A única moral capaz de tornar o mundo suportável é aquela que esteja disposta a sacrificar as ideias de cada vez que estas entrem em conflito com a vida, ainda que seja a de uma só pessoa, porque esta será sempre infinitamente mais valiosa do que as ideias». A partir deste tópico, o romancista de origem colombiana Juan Gabriel Vásquez traçou uma teia de afinidades que parece fazer todo o sentido.
Cinco notas conjeturales
Juan Gabriel Vásquez
«Babelia», El País -16/10/2010
A la realidad le gustan las simetrías, se lee en un cuento de Borges, y es sin duda por eso que Vargas Llosa ha recibido el Nobel en el mismo año redondo en que los lectores de Camus conmemoramos los cincuenta años de su muerte. Vargas Llosa y Camus tienen algo de almas gemelas, o de vidas, si no paralelas, por lo menos análogas. ¿Quién le iba a decir esto al sartrecillo valiente? Algún día escribiré algo serio al respecto. Mientras ese día llega, he tomado algunas notas.
1. No me sorprende encontrar el nombre de Camus en las páginas de Sables y utopías, esa especie de retrato del intelectual público a través de sus textos. Cuando piensan en Vargas Llosa, sus lectores suelen pensar en Sartre: la idea de que las palabras son actos deslumbró a Vargas Llosa en su juventud y moldeó buena parte de su concepción de la literatura. Pero es la trayectoria de Camus, el hombre de izquierdas decepcionado por la izquierda totalitarista y violenta, y no la del existencialista dogmático, la que tiene más de un punto en común con la de Vargas Llosa. No llegan al mismo lugar, es cierto, pero sufren los mismos malentendidos, soportan los mismos ataques, deben enfrentar los mismos intentos de secuestro intelectual por parte del enemigo. En un discurso pronunciado en 1978, Vargas Llosa recuerda o parafrasea a Camus: “La única moral capaz de hacer el mundo vivible es aquella que esté dispuesta a sacrificar las ideas todas las veces que ellas entren en colisión con la vida, aunque sea la de una sola persona humana, porque ésta será siempre infinitamente más valiosa que las ideas”. Vargas Llosa no dice de dónde viene la paráfrasis, así que me pongo a buscar argumentos semejantes en El hombre rebelde. Los encuentro, y en varias páginas; y entonces encuentro también otras cosas.
Bem pior do que o dualismo em filosofia, que apenas toca quem a ele mais ou menos racionalmente adere, é o dualismo em matéria de política, uma vez que afecta, ou pode vir a afectar, comunidades inteiras, países completos ou regiões tomadas de uma ponta até à outra. Traçar linhas rectas a meio do mapa da realidade é possível, ou pode ser útil, em situações extremas e num tempo curto – no momento da batalha, por exemplo, é muito difícil tentar convencer as partes de que o mundo é belo e não vale uma salva de morteiros –, mas jamais será, na maioria dos casos e no longo prazo, uma solução boa, justa ou inteligente.
Uma vez em Zolkiew
Clara Kramer era uma menina judia que vivia com a família na cidade polaca de Zolkiew, situada hoje no distrito ucraniano de Lviv, ou Lvov. Como milhões de polacos, ela e a família sentiram na pele o impacto do Pacto Molotov-Ribbentrop de 1939, do qual resultou, quase de imediato, a ocupação da cidade pelos soviéticos. No seu livro de memórias (*) recorda as humilhações impostas aos polacos e a rápida «sovietização» da região, logo acompanhada da prisão e da deportação daqueles considerados indesejáveis pelas novas autoridades. Desde as minorias étnicas e religiosas às pessoas com algum destaque social que não fossem declaradamente comunistas. Só que em 21 de Julho de 1942 os nazis conquistaram a cidade e desencadearam o massacre e a deportação sistemática dos milhares de judeus que tinham continuado, apesar de tudo, a habitar a cidade. Quase todos irão perecer mas a família de Clara conseguiu esconder-se num bunker que escavara à mão sob a casa do Senhor Beck, um alemão, declaradamente anti-semita, que afinal os irá proteger permitindo a sua sobrevivência. A partir do bunker seguirão o horror que se espalhou então pela cidade, lutando todos os dias para lhe escapar. Em 24 de Julho de 1944, a fuga das tropas de Hitler e a entrada na cidade dos soldados do Exército Vermelho, do qual existia antes uma tão má experiência, foi naquela situação olhada com imensa alegria e como uma libertação salvadora. Clara podia agora «olhar para as nuvens que flutuavam no céu azul, uma visão que julgara nunca mais voltar a ter». Afinal, existia um mal ainda maior, mais cruel e definitivo, do que aquele que, um dia, julgara ser o pior dos males.
Cabul now!
Podemos agora ensaiar uma comparação. A presença americana no Afeganistão contém em si um grande número de males para a esmagadora maioria da população do país. Não se trata apenas do uso regular da violência brutal sobre sectores da população ou da incompreensão das especificidades do país, traduzida, ela também, em atitudes típicas de um exército de ocupação. Trata-se igualmente do seu apoio a um regime intensamente corrupto, cujo objectivo mais claro é conservar o poder pelo poder, sem um programa de desenvolvimento real do país, desinteressado da vida real das populações, dos seus direitos mais elementares, e transigindo frequentemente com a repressão sistemática das pessoas comuns, sobretudo das mulheres. É natural, por isso, que exista descontentamento e, mais do que isso, que se desenvolva a ideia de mudança como um imperativo. Só que, neste preciso momento, a defesa pura e simples da retirada imediata das tropas americanas tem como corolário a automática tomada do poder pelos talibãs. Que já se encontram de novo, como é sabido, às portas das principais cidades. Será a opressão americana, associada ao poder discricionário, tantas vezes injusto, da Aliança do Norte, rigorosamente equivalente à tirania brutal e desapiedada do poder talibã? E será aceitável que o necessário fim da guerra tenha como moeda de troca a autoridade assassina dos papagueadores de versículos? Não é possível que para alguém com sentido da realidade e de justiça – e só por causa de um ódio visceral ao inimigo americano, ou só por causa dos direitos dos povos «a assumirem o seu próprio destino» – se torne aceitável o retorno imediato à mais profunda barbárie, a um poder instituído pela lei da chibata e da forca. Barak Obama não é o mullah Omar.
Nestes assuntos, manter uma visão estritamente dual, esquecendo que até na gestão do mal existe uma gradação, pode tornar-se uma forma de cegueira e de cumplicidade com o crime. Aliás, aplicando esta perspectiva a momentos decisivos da história contemporânea, episódios indispensáveis para a vida dos povos e o triunfo sobre a opressão teriam sido impossíveis. Como aconteceu, por exemplo, com o desembarque dos Aliados na Normandia e o bombardeamento sistemático das cidades alemãs controladas ainda pela Wehrmacht e pelos destacamentos das SS. Para não ir mais longe.
(*) Clara Kramer (2010). Clara. A menina que sobreviveu ao Holocausto. Alfragide: Asa. Trad. de Elsa T. S. Vieira. 336 págs.