O último número, o de Novembro, da edição portuguesa do Le Monde Diplomatique, globalmente excelente como sempre – destaca-se desta vez um dossiê sobre a recusa da «ordem insustentável» na qual somos forçados a sobreviver –, contém um artigo lamentável assinado por Ignacio Ramonet. Não se trata de uma raridade na intervenção do autor, pois desde há muito que Ramonet vem, repetidamente, mesclando posições justas de crítica e de combate no campo da esquerda com profissões de fé contra ideias e experiências que perturbam o núcleo idiossincrático no qual fixou a sua concepção do que é ou não é esquerda. Ou, mais abrangentemente, do que é ou não é democrático, de acordo com a noção de democracia que o seu conceito de esquerda recolhe. Não esqueço, por exemplo, a série de conferências que proferiu (estive pelo menos em duas), de artigos e livros que escreveu (alguns deles foram editados em Portugal), dedicados, há cerca de uma década atrás, ao combate contra alguns dos inúmeros «malefícios da Internet» que depois foram instrumentais no levantamento de novas formas de sociabilidade e de determinados movimentos sociais.
Desta vez Ramonet atira-se, em «Os dois Mario Vargas Llosa», ao mais recente «escrevedor» laureado com o Nobel da Literatura. Começa por confirmar enfaticamente a sua valia como escritor, reconhecendo-o como «extraordinário na capacidade de misturar as técnicas de romance social, histórico e realista, ou mesmo do romance policial», tendo-o, aliás, mostrado «brilhantemente». Mas logo de seguida, e é esse o objectivo central do artigo, volta-se contra o que considera ser a deriva de direita do escritor. Está, naturalmente, no uso do seu mais do que legítimo direito à crítica. Aliás, partilho de algumas das suas perplexidades em relação a determinadas posições tomadas no passado, no plano político, por Vargas Llosa. Mas o jornalista vai muito para além da discordância, insinuando mesmo questões de carácter cuja invocação, para além de incorrecta, é até profundamente injusta. Ouçamo-lo:
«Este gigante da literatura é declaradamente um homem de personalidade dupla. A máscara sedutora dos seus romances dissimula um sectário furioso que, desde há quase quarenta anos, consagra o essencial do seu tempo a intervir nos media, a arengar nos fóruns e a pregar nos congressos do mundo inteiro. Repetindo com uma insistência fanática os princípios elementares da sua ideologia.»
Trocando por miúdos: de acordo com estas palavras de Ramonet, Vargas Llosa escreve romances para nos enganar a todos, arrasta-se pelo mundo pago para dizer banalidades perigosas e possui uma qualquer «ideologia» (sic) da qual se mantém um fanático paladino. Linha a linha, ponto a ponto, nada de mais falso para quem – como tantos leitores, entre os quais felizmente me incluo – tenha acompanhado quase toda a sua actividade literária e seja um leitor dedicado, embora sempre convenientemente crítico, dos textos de opinião que regularmente publica na imprensa do mundo inteiro.
Os artigos de opinião do Mario Vargas Llosa que eu conheço – e suponho que falamos da mesma pessoa – são artigos que contêm posições políticas das quais por vezes divirjo, sobretudo quando atestam a sua descrença completa em soluções de natureza colectivista que o escritor considera irrevogavelmente associadas a um determinado princípio do mal. Em alguns deles responde a interpretações torpes que a seu respeito alguma esquerda caudilhista, latino-americana sobretudo, se aplica em fazer correr. Mas são também textos nos quais defende sistematicamente a tolerância e o direito à diferença, rejeita a diminuição social das mulheres e a perseguição das minorias, aceita a diversidade das escolhas no campo da sexualidade individual e recusa a dimensão tirânica da religião e do Estado, venha ela de onde vier, sempre em favor de uma defesa inequívoca do pluralismo. Se, no tempo em que vivemos, a maior parte dos males que combate se concentra nos espaços onde habitam os últimos vestígios do totalitarismo «de esquerda» ou em áreas nas quais o antiamericanismo primário e a sacralização das identidades servem para legitimar regimes abjectos, esse não é um problema do escritor. É um problema nosso, de todos, que todos teremos de resolver com a ajuda, entre muitas outras, de opiniões como as suas. Não ajuda nada insinuar falsidades para, como diz a antiga sentença, levar a água ao seu próprio moinho.
Um exemplo? Pois aqui vai ele: Ramonet lembra a dado momento o apoio de Mario Vargas Llosa à invasão americana do Iraque. Esquece que, na altura, e por causa das informações que corriam sobre o regime de Saddam Hussein – sabe-se hoje que muitas destas informações foram manipuladas pelos falcões e pelos serviços secretos americanos, pelo menos –, muitas foram as pessoas, mesmo dentro da esquerda, que tiveram dúvidas a respeito da posição que deveriam tomar. E esquece também uma informação que, enquanto jornalista profissional, tinha o dever de não omitir: que Vargas Llosa alterou a sua posição depois de, logo em 2003, ter estado Bagdad por vontade própria e a expensas suas, e de ali ter escrito um livro inteiro, Diário do Iraque, no qual integrou algumas das crónicas que enviou para o El País (na altura publicadas em Portugal pelo Diário de Notícias) e um conjunto de belas fotografias da autoria da sua filha Morgana. Nele podemos, a dado passo, ler o seguinte (a edição foi da desaparecida editora Quasi): «(…) a minha oposição em relação à intervenção militar dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha no Iraque (…) foi muito alterada, para não dizer rectificada, após a minha viagem.» Trata-se, pois, de uma questão de honestidade. E de um ataque injusto e gratuito.