Efeitos especiais

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Não encontrei grandes ecos do texto do provedor do leitor do Público, José Queirós, editado no passado sábado e intitulado «Contar Cabeças». Nele se refere o facto de, pela primeira vez em Portugal, um estudo levado a cabo por uma equipa de investigadores, dirigida no caso por Steve Doig, professor da Universidade do Arizona, ter contado o número de participantes na manifestação convocada no passado dia 6 pela Frente Comum dos Sindicatos da Administração Pública, e que desfilou em Lisboa entre o Marquês de Pombal e os Restauradores. Os organizadores apontaram para 100.000 pessoas presentes, mas a equipa do professor Doig fez contas, fotografou a manifestação, mediu o espaço, e provou que não tinha sido bem assim. «Resultado: uma estimativa de 8000 a 10.000 participantes no desfile, e cerca de 5000 concentrados nos Restauradores.» Acrescentando José Queirós o seguinte: «Não creio que seja possível, depois desta experiência, que um jornal independente continue a ignorar as suas responsabilidades informativas e se limite a servir de eco preguiçoso aos números avançados por organizadores de manifestações ou por fontes oficiais.» Inteiramente de acordo com a conclusão; todavia, este episódio pode levar-nos ainda mais longe.

A realidade é esta: a situação actual potencia qualquer iniciativa que se destine a protestar contra as duras medidas de austeridade selectiva impostas pelo governo, ou contra o sistema injusto, e agora aparentemente selvagem, que as requer ou determina. Deveria por isso ser natural que o número de funcionários públicos a manifestar-se fosse muitíssimo elevado. Eles são aliás, como se sabe, dos sectores sociais mais afectados pela crise actual. Mas pelo que se viu – ou melhor, pelo que se mediu – não foi bem assim. Em vez de se tapar o sol com a peneira, de se inventarem desculpas incoerentes ou de se dizer que os membros da equipa de investigadores eram todos «agentes da CIA», há que perceber as razões desta contradição. Devo dizer que trabalho numa grande instituição pública, a Universidade de Coimbra, que conta com muitos milhares de trabalhadores, entre professores e funcionários, que seriam em parte mobilizáveis para esta iniciativa. No entanto, por onde passei nas últimas semanas, não vi um único cartaz, panfleto ou circular – e nada recebi por correio, electrónico ou não – a apelar à mobilização e a preparar a sua organização. Muitas pessoas que conheço e trabalham noutras instituições do ensino e da administração pública confirmaram-me a repetição deste cenário. Nestas condições, aquilo que de facto aconteceu só pode admirar quem viva num mundo de ficção.

Mas os motivos desta ausência de surpresa têm as costas mais largas. As estratégias programáticas e discursivas de grande parte dos sindicatos (não de todos!), e o perfil da maioria dos sindicalistas no activo (da maioria, insisto), conservam a articulação com uma certa ideia de «luta de classes» que é também uma luta pelo poder, associada a uma atitude partidarizada e geralmente sem propostas alternativas, ousadas mas credíveis, que obviamente alienam e desmobilizam um grande número de trabalhadores. Principalmente os mais jovens, os mais instruídos e urbanos, os menos politizados, que são hoje a larga maioria. E aqueles que se encontram em situação mais precária, ao longo das últimas décadas deixados a flutuar nas margens do mundo do trabalho. Todos eles necessariamente preocupados com a sua situação, cada vez mais conscientes de que só podem desconfiar do sistema global em vigor, mas nada voltados para a linguagem estritamente «classista», o discurso errático e ultrapassado, e o comportamento pouco dialogante e pouco construtivo, de muitos dos dirigentes sindicais no activo. Alguns destes, não poucos, inamovíveis no seu lugar desde há longas décadas. Assim, e apesar do grande descontentamento, muitos dos trabalhadores que poderiam ser mobilizados para acções de protesto acabaram por ficar em casa. O que não invalida o significado destes combates mas atenua muito o seu verdadeiro impacto. O pior que se pode fazer, neste contexto, é produzir «efeitos especiais» para mascarar a realidade em vez de repensar linguagens e estratégias.

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