Arquivos Mensais: Dezembro 2010

Nostalgia, conservadorismo e democracia

Andrew Sullivan

É bom prevenir o leitor: apesar do aspecto sóbrio da capa e da respeitabilidade do tema, esta não é uma obra de filosofia política. Aquilo que o autor se propõe fazer a partir da sua identidade pessoal complexa – Andrew Sullivan é um inglês católico de ascendência irlandesa, americano por adopção, gay e típico membro da Geração X – consiste antes em descrever a trajectória que fez dele, neste tempo em que todos «vivemos em nichos e comunicamos no meio de ravinas», um conservador mal visto pela maioria dos que adoptam princípios e atitudes inflexíveis e manifestamente de direita. Mas este pode também ser considerado um livro contra a apostasia, no qual os apóstatas, classificados como «fundamentalistas», são os que traíram a ficção de segurança, a noção de resposta ao «colapso da esquerda», a resistência à mudança e a uma certa ideia de perda, sobre a qual Sullivan construiu o seu próprio modelo de conservadorismo.

Sullivan expõe desde o início uma concepção bastante aberta das suas escolhas. Para Michael Oakeshott, o filósofo britânico sobre o qual escreveu uma tese em Harvard, não pode construir-se uma moral pessoal com base num livro ou numa teoria; com ele Sullivan aprendeu que «a nossa moral é como a linguagem que aprendemos e usamos a cada instante», a qual parte de uma base sólida mas deve ser constantemente adaptada à experiência. Será este, no fundo, o fundamento de um «conservadorismo dialogante», associado pelo autor ao ideal de governação proposto nos anos oitenta por Thatcher e Reagan. A valia social desta opção teria, porém, sido usurpada e arruinada na década de 1990 por um «fundamentalismo» de características religiosas. Este apoia-se em factos, não em teorias, excluindo a dúvida em nome da fé, impondo pela força «uma verdade inalterável, precisa e externa no centro da vida de cada pessoa», e exigindo a sua completa obediência. Na América, partiu de algumas margens mas cresceu rapidamente, atingindo a direcção dos republicanos e disseminando metástases por toda a sociedade. A figura e a intervenção de de George W. Bush teriam então emergido, nos planos simbólico e prático, como sinais do recuo de uma ideia de sociedade serena e equilibrada dirigida pela inteligência e pelo bom senso. Um recuo apoiado nos sectores mais retrógrados e intransigentes da sociedade americana, compostos por gente que toma a Bíblia à letra, ignorando dois mil anos de experiência e de progressos no campo da ciência e dos direitos humanos.

Sabendo-se que A Alma Conservadora foi publicado em 2006, antes ainda da rápida ascensão pública de Barak Obama, o panorama apresentado é devastador. Todavia, na segunda parte da obra, Sullivan perde o registo pessimista e retoma a voz combativa – em defesa, por exemplo, do casamento entre pessoas do mesmo sexo, ou repudiando a tortura e a pena de morte – que o destacou, em The Daily Dish, como um dos primeiros bloggers a desempenhar um papel proeminente enquanto opinion maker. No final, o leitor reconhecerá o forte desejo, manifestado pelo autor, de depurar a «alma conservadora» dos seus desvios perigosos e infelizes. Uma atitude de proselitismo de um ideal de conservação e nostalgia, ancorado num horizonte de tolerância e de razoabilidade, que lhe parece harmonizável com os princípios elementares do jogo democrático.

[Andrew Sullivan, A Alma Conservadora. Quetzal. Trad. de Miguel de Castro Henriques. 336 págs. Adaptação de um texto publicado na revista LER de Dezembro de 2010.]

    Atualidade, Olhares, Opinião

    Os meus dez mais de 2010

    O leitor

    Chegamos então à época das listas. A minha não é a dos melhores nem a dos piores livros saídos ao longo do ano que agora parte. É só a daqueles dez que foram editados em português europeu, pude ler ou reler, e me (lo)comoveram um pouco mais que o habitual. A daqueles que com algum egoísmo maior prazer sinto em partilhar. Ao fechar o balanço, reparei que foram 365 dias com menos ficção (e sobretudo menos poesia) do que foi a norma noutros anos. Pode ser um sinal de condescendência para com a cultura da competição em que nos querem afogar. Na hora de substituir o tradicional calendário de pin-ups e de meter à boca as passas da praxe, um dos meus desejos será reparar este grande pecado.

    A ordem é apenas alfabética. Não aparecem e-books porque os que fui lendo estão por traduzir.

    Enrique Vila-Matas, Diário Volúvel (Teorema)
    George Orwell, Livros & Cigarros (Antígona)
    Hans Küng, Islão. Passado, presente e futuro (Edições 70)
    Herta Müller, Tudo o que tenho trago comigo (Dom Quixote)
    John Newsinger, George Orwell. Uma biografia política (Antígona)
    Manuel António Pina, Por outras palavras & mais crónicas de jornal (Modo de Ler)
    Mario Vargas Llosa, O Sonho do Celta (Quetzal)
    Orlando Figes, Sussurros. A vida privada na Rússia de Estaline (Alêtheia)
    Tony Judt, Um tratado sobre os nossos actuais descontentamentos (Edições 70)
    Walter Benjamin, O Anjo da História (Assírio & Alvim)

      Apontamentos, Olhares

      O século XX na ponta dos dedos

      M. Gilbert

      Mesmo que nos limitemos à edição nacional, é grande a oferta de «Histórias do Século XX» actualizadas ou que mantenham um grau de actualidade temática que lhes amplia o interesse. É o caso das obras de Hobsbawm, Judt, Roberts, Droz e Rowley, Gombrich, Fulbrook ou Blainey, que podem ser facilmente encontradas nas livrarias. Nenhuma, infelizmente, de autores portugueses, confirmando uma certa tendência da historiografia nacional para manter uma redutora resistência a investigar e a escrever no domínio da história comparada. Para não irmos mais longe, os espanhóis têm-se revelado bem menos tímidos neste campo. A esse conjunto de trabalhos junta-se agora o livro de Martin Gilbert, o historiador britânico que escreveu, entre outras obras, uma excelente biografia de Winston Churchill, uma História de Israel, e duas completas Histórias das guerras mundiais, todas editadas em Portugal. No entanto, é preciso reconhecer que esta não é uma obra de análoga qualidade historiográfica, mesmo que tenha todas as condições para se tornar útil tanto ao leitor não especialista quanto ao profissional que precise de uma referência rápida e com garantia de qualidade.

      A atitude dúplice de reserva e de interesse justifica-se em poucas palavras. Por um lado, Gilbert pratica o género de história factualista que, sobretudo a partir do final da Segunda Guerra Mundial, e em particular ao longo das décadas de 1960-1970, levantou enormes resistências nos meios académicos de ensino e de pesquisa avançada no campo da História, tendo sido quase exclusivamente no universo cultural de matriz anglo-saxónica que conservou algum destaque. Por outro, ela assegura um fio de inteligibilidade, não perturbado por estratégias interpretativas complexas, que facilmente seduz o leitor sem grandes exigências académicas, geralmente mais interessado em conhecer do que em compreender, ou, menos ainda, em explicar. Esta funcionalidade didáctica é, aliás, particularmente realçada pelo facto da cronologia escolhida abranger todo o século XX, encerrando rigorosamente em 1999, o que permite assegurar processos de inteligibilidade de acontecimentos recentes que uma parte dos grandes compêndios de História ainda não carrega consigo.

      Convém ainda referir que esta é uma edição condensada de uma outra, publicada em três volumes entre 1997 e 1999. Nesta edição original, ainda que a dimensão puramente narrativa e factualista seja também visível, pois depende da perspectiva metodológica e do estilo pessoal de Gilbert, detecta-se uma densidade em termos de volume de informação e do trabalho de escrita que lhe retiram qualquer suspeita de superficialidade. Infelizmente não foi esta a versão agora traduzida, mas não será por isso que a obra deixa de servir de referência na estante de quem se interesse pela história do século passado. Ou, mais especificamente, por acontecimentos cujo impacto ecoa ainda, por vezes com algum furor, na experiência diária da nossa contemporaneidade.

      [Martin Gilbert, História do Século XX. D. Quixote. Trad. de Francisco Agarez. 680 págs. Adaptação de um texto publicado na revista LER de Dezembro de 2010.]

        História

        O espelho mágico

        Facebook for two

        Tal como aconteceu com milhões de pessoas, só em 2010 transformei realmente em hábito a experiência do Facebook. Tendo servido de batedor na utilização da Internet fora dos centros de computação, usando-a diariamente a partir de 1994, passei por diversas fases, tanto na rotina dos processos técnicos quanto nas vias e expectativas da comunicação partilhada que é a sua essência funcional. Primeiro foi o pequeno grupo de pessoas conhecidas, saído ainda das antigas redes universitárias. Depois um colectivo alargado, com uma dimensão territorialmente ampliada mas com um volume de participantes e de tráfego que assegurava um estilo próprio do grupo reservado. O grande salto veio de seguida, no período das revistas electrónicas – geri uma entre 1996 e 2002 –, com a tentativa de usar uma ferramenta barata para chegar a um grupo ampliado mas ainda identificável. A quarta etapa arrancou por volta de 2004, com a generalização do acesso à rede, a impessoalização de uma grande parte dos contactos e depois o crescimento da opinião partilhada introduzido pelos blogues. Ao longo das quatro etapas resisti sempre a participar nos modos de comunicação em tempo real, como chatrooms, o IRC, o MS Messenger ou, bem mais próximo, o Hi5. Para ser sincero, pareceram-me sempre espaços de conversa que substituíam de maneira bastante artificial a velha e calorosa prosa de café. Com a agravante, dada a ausência de rostos, de desresponsabilizarem as pessoas pelo que escreviam/diziam, dentro de um clima um tanto insalubre, pouco compatível com a reflexão, a reserva, o prazer e a disponibilidade de cada um.

        O apelo do Facebook foi diferente. Apesar do carácter egotista e publicitário dos processos usados e de muitos dos conteúdos, apesar do apelo à atitude compulsiva que bastantes vezes projecta, apesar da capacidade para arremessar para o domínio do público aquilo que cada um até agora ciosamente guardava no campo do privado – «Facebook is watching you», avisava há tempos um título da Manière de Voir –, a diversidade de processos que combina tem permitido a construção de pequenas comunidades. Capazes, sobretudo antes de se chegar ao ponto em que o número de «amigos» ultrapassa o razoável transmutando o grupo em multidão, de partilhar experiências, prazeres, informações, ideias e causas. Philippe Rivière chamava-lhe há dias «espelho mágico», mas esta magia contém os mesmos dois flancos magnéticos de todas as magias: a manipulação e o encantamento. No entanto, não vejo no segundo nada de necessariamente negativo, desde que quem se deixe encantar o faça conscientemente e no uso da sua liberdade. Claro que já é mais perigoso e movediço esse lado obscuro dos «amigos» mirones que não escrevem mas registam o que escrevemos, que usam a plataforma como mera tribuna pessoal ou partidária, que ignoram a dimensão lúdica deste instrumento recuando diante da menor frase mais livre ou intimista. Mas nada disto é novo e onde há muita gente a complexidade humana sempre exponencia tanto as suas qualidades quanto os seus defeitos, aproximando, separando e reagrupando. No que me diz respeito, quando o registo informativo e questionador, divertido e cúmplice, deixar de ser possível, trocarei de arquipélago. Até lá, e enquanto o hábito não tolher a liberdade, acredito que me mantenho num caminho transitável. Com alguns recantos acolhedores.

          Atualidade, Cibercultura, Oficina, Olhares

          Vulcanologia

          Uma das definições que o Houaiss oferece de anestésico toma-o como um produto que «diminui ou elimina a sensibilidade». Ou, de uma forma mais abrangente e difusa, como algo que inevitavelmente «provoca apatia, desinteresse, impassibilidade». Por isso, neste tempo de arriscados declives, piso deslizante e precipícios à vista, se revela particularmente perigoso o forte gás anestésico que emana da quadra das festas e dos bolos. Ao som de caixas de música, flautas de Pã e toques de telemóvel, proclama-se uma suspensão fictícia do tempo e coloca-se a vida colectiva em modo de pausa e de aparente paz. Mas o vulcão não está adormecido. Irá explodir.

            Apontamentos, Atualidade, Olhares

            Anarquia a 25/12

            O Natal de Ronald

            O Natal itinerante que escolhi este ano guardava-me duas boas surpresas. Surpresas mesmo, ocasiões raras, associadas a gestos que julgava perdidos para sempre dentro deste reduto perpendicular de 92.090 Km2. A primeira veio com o bolo-rei. Pela primeira vez em bastantes anos pude comer um com fava e brinde embrulhado em papel vegetal, como os da infância. Gozado com um deleite asininamente cavaquista, associado na sua intensidade à certeza de passar por cima de uma daquelas regras sanitaristas e lerdas emanadas da União Europeia. Mas a segunda surpresa foi ainda maior e melhor. Juro que, numa pastelaria-padaria do interior, frequentada por famílias aparentemente honestas e sem pinta de simpatia pelo Diabo, pude, na companhia de dezenas de prevaricadores, fumar um cigarro ao balcão, lançando baforadas intensas sobre os receptáculos nos quais repousavam pacíficos pães de trigo e de passas, ordeiras broas de milho, serenos cacetes integrais e, mesmo por baixo do meu nariz, um esplêndido pão-de-ló. Claro que não declaro onde aconteceu isto: não sou denunciante nem quero ficar na consciência com a responsabilidade de prejudicar algum chefe de família, funcionário da ASAE, na avaliação de competências relativa ao ano civil de 2010.

              Apontamentos, Devaneios, Olhares

              Natal judaico

              Passo estes dias frios na Beira Baixa e de manhã subi até Belmonte. Não ia há muito a esta vila de um grande interior abandonado à estagnação e ao isolamento. Parece agora um lugar que renasce devagar, apoiado em parte no interesse por uma tradição criptojudaica longamente ignorada ou omitida pela cultura cristã-velha. Afinal o antisemitismo tem por esta aba da Europa uma presença rígida e persistente que tardou em diluir-se na aparente normalidade multiétnica que agora partilhamos. Fiz a via sacra das ruas estreitas e graníticas, um tanto escorregadias também, da antiga judiaria. E estive no Museu Judaico, um dos melhores, mais bem concebidos e mais amorosamente conservados dos que conheço em Portugal. Nele revi pedaços de vidas escamoteadas, submersas gerações após gerações, roçando o fundo mais fundo do esquecimento, mas capazes ainda de nos acenarem um pouco. No fim da visita agradeci ao rapaz de kippah na cabeça o cuidado com a conservação daquela memória única. Sendo 24 de Dezembro, tive o pudor de não mencionar a um judeu as boas festas cristãs. Mas ele não se coibiu nada de me desejar um Bom Natal.

                Apontamentos, Olhares

                Homo Seditiosus

                Em Roma sê romano
                Em Roma sê romano.

                Em «La rivoluzione è finita. Inizia l’età della rivolta», publicado no La Stampa do passado dia 16, o italiano Marco Belpoliti, escritor, crítico literário e professor de sociologia da literatura, confronta-nos com uma situação que não podemos ignorar. De Clichy-sous-Bois, nos arredores de Paris, em 2005, aos motins estudantis de Londres e de Roma em 2010, passando por Atenas em 2008, a revolta pura e dura parece ter ocupado o antigo lugar da revolução. Sem um programa ou objectivos políticos claros, sem um ideal a perseguir desenhado no horizonte, ela não se projecta no futuro mas antes no imediato.

                A Ocidente como a Leste, em Nova Iorque como em Xangai, o estado de revolta «suspende o tempo histórico e cria o instantâneo», assegurando a aparente vitória do presente sobre o futuro. Este vive do instante e é no instante que se constrói. Belpoliti recorre a uma evocação de Walter Benjamin a propósito da forma como durante a Comuna de Paris os communards disparavam furiosamente sobre os relógios. Queriam que o tempo parasse ali mesmo, sem remissão, numa vitória efémera que durasse para sempre e pusesse termos às cadências opressivas da vida e do trabalho. Foi assim também muito tempo antes, durante os grandes levantamentos anti-senhoriais do século XIV, ou enquanto durou a Guerra dos Camponeses na Alemanha do século XVI. Prestes a serem massacrados na batalha de Mauthausen, os sublevados recusaram-se a aceitar a superioridade militar dos poderosos, pois esperavam que Cristo em pessoa entrasse no terreno de luta para suspender os factos e consagrar a vitória definitiva dos crentes e dos espoliados.

                Nada disto tem já a ver com a «guerra civil», conduzida por gangs de delinquentes ou grupos de extrema-direita, que segundo Hans Magnus Enzensberger pelos finais dos anos oitenta pareciam preparar-se para tomar para si as ruas dos «bairros problemáticos» das grandes metrópoles do mundo industrializado. Esta é uma outra forma de violência, que parece antes uma resposta estrutural à ausência de perspectivas de uma mudança revolucionária. Combate-se nas ruas como Robin Wood e os seus se batiam nos arrabaldes de Nottingham, como um Zorro ficcional lutava em nome dos fracos e dos oprimidos: procurando mitigar a injustiça e exercendo por vezes o direito de vendetta. Sigo ainda Belpoliti: «Devemos preparar-nos para viver uma época diferente daquela que marcou a vida dos nossos pais e dos nossos avós, uma época que não possui um sentido único, ou pelo menos um destino preestabelecido.» Neste tempo, o homo seditiosus, o homem sublevado, apresenta-se como o campeão de uma humanidade que desce à rua. Hoje, mas igualmente amanhã, e depois de amanhã, para realizar «uma arte sem obra» determinada pelo direito à resistência. Uma perspectiva sobre a qual vale a pena ir meditando nos intervalos da acção.

                  Atualidade, Olhares, Opinião

                  Real social (e se de repente) (ok, um bocado nostálgico)

                  [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=V0UcQDUR-fU[/youtube]

                  All the leaves are brown / and the sky is grey / I’ve been for a walk / on a winter’s day
                  // I’d be safe and warm / if I was in L.A / California Dreamin’ / on such a winter’s day

                  Então foi assim. Seguia de manhã a via-sacra das compras da época, absorto em pensamentos um tanto doentios que metiam os efeitos da crise e a consciência de estar a ser sugado por uma espiral muito negra. Provavelmente nem disfarçava a tristeza. Uns metros adiante, uma mulher que nunca tinha visto revolvia estantes de CD à procura de qualquer coisa. Cara fechada, metida na sua vida, talvez com pensamentos não menos sombrios. De repente, a instalação sonora da loja, activada por um qualquer fantasma revivalista e com problemas de visão, começou a bradar «California Dreamin’», o hino sixtie de esperança e evasão. Então eu e a desconhecida como que acordámos. Cada um de nós reparou que o outro tinha despertado. Por momentos um vento antigo girou pelo ar. Olhámo-nos sem uma palavra, como cúmplices. Sorrimos levemente e fomos às nossas queridas vidas de cinquentões. Durou tudo 2’ 41’’. Ou talvez menos.

                    Apontamentos, Devaneios, Memória

                    Aerograma

                    Natal 2010

                    Nunca fui um adorador do Natal, com o seu burrinho, a sua vaquinha, e a restante parafernália pagã cercando o pequeno nazareno. Não por ter vivido muito cedo um qualquer momento de epifânica suspeição em relação a esse evento capital – bem mais forte por certo, para uma criança, do que o aflitivo instante do martírio – da religião na qual fui educado. Não por me agoniar «desde que me lembro» a dissipação, o luxo e a hipocrisia que geralmente rodeiam os espaços iluminados que lhe servem de trilho e de cenário. Afinal até houve um tempo no qual acreditei sem reservas na generosidade do Pai Natal e se me deixassem teria passado noites ao frio, emboscado num ermo escuro, para o ver passar de trenó na companhia da simpática rena Rudolfo. E atalhar logo com a minha encomenda. O desgosto não veio por aí, não. Chegou depois, pela percepção forte, sempre renovada, vivida como um calafrio, de uma ficção de paz, de compaixão o de igualdade que só consigo materializar quando me levanto da mesa da consoada, deixo o peru no sossego da travessa, e vou lá fora, em silêncio, sondar os rumos e os azimutes.

                      Apontamentos, Devaneios, Etc.

                      Papéis Roubados #9

                      Juan Goytisolo

                      A propósito de Sussurros, o grande livro de Orlando Figes recentemente lançado em Portugal (ver aqui e sobretudo aqui), tem sido comentado o papel da denúncia como factor indispensável no lançamento e na conservação dos regimes pesadamente autoritários. Neste artigo tão extenso quanto notável,  Juan Goytisolo ensaia uma aproximação entre a rede de denunciantes estabelecida pela Inquisição espanhola e aquela que se tornou factor essencial de funcionamento da máquina repressiva estalinista, ambas transformadas em factores de uma espécie de «concurso nacional»: «Todos participam nele, por decreto e estímulo do poder: vizinhos, colegas, parentes, delatando-se uns aos outros, desmascarando, assentindo, votando ou fechando os olhos e tapando as orelhas para não ver nem ouvir, para não saber que o mal triunfa e, dessa maneira, abrindo-lhe o caminho». Goytisolo associa também esta prática insidiosa à difícil condição do escritor em sociedades povoadas por legiões de denunciantes.

                      Literatura y poder
                      Juan Goytisolo

                      El País, 18/12/2010

                      En el periodo de turbulencias que sacudían el califato omeya, el soberano envió a la mezquita de Kufa – semillero de disputas teológicas e interpretaciones distintas del libro de la revelación coránica – la siguiente advertencia: «Esta noche un tirano / sembrará el terror. / No será camellero / ni pastor / sino un carnicero / presto al tajo».

                      Los asfixiantes poderes autocráticos que se suceden a lo largo de la historia de las diversas civilizaciones del planeta, fundados siempre en el miedo y la humillación de los seres humanos, inspiraron al gran escritor egipcio Gamal El Guitani las figuras contrapuestas, pero complementarias, de Zayni Barakat, el personaje que da el título a la novela (1), y de Zacarías Ibn Radi, servidores ambos del sultán El Guri. Mientras la «filosofía» de Ibn Radi, regidor de un averno de suplicios y ejecuciones de los sospechosos de desafección al déspota, se resume en su reflexión de cancerbero

                      «El cruce del umbral de nuestras puertas debe ser para el prisionero un límite entre dos periodos. Su vida se ha de dividir en dos partes, de tal manera que cuando un individuo salga de aquí, no habrá cambiado de nombre sino de alma»

                      su colega Zayni preconiza métodos más sutiles que el tormento, como el de la utopía del mundo virtual en el que hoy habitamos

                      «Yo ya veo el día en el que el gran jefe de los espías podrá examinar la vida entera de una persona (…) Y, no sólo lo que es visible, sino también sus deseos, sus sueños, sus inclinaciones (…) De manera que podríamos predecir lo que va a hacer un individuo al llegar a la edad adulta (…) ¡Obremos juntos para alcanzar la conversión de la humanidad al espionaje!»

                      Los archivos del Santo Oficio y de la policía soviética que examinamos a continuación responden a la vez a la brutalidad sin límites de Ibn Radi y al sistema de delación y escrutinio de Zayni. “Si alguien suspiraba de diferente manera que el resto de los vecinos”, dice este último, él “se enteraba inmediatamente”. En resumen, un ojo omnividente y un oído que todo registra y capta.

                      En la época de los arrestos masivos de 1937-1939, un miembro de las juventudes comunistas, Pávlik Morózov, denunció a su padre en razón de sus ideas contrarrevolucionarias. Éste fue inmediatamente fusilado y el muchacho, erigido al rango de héroe de la patria, se convirtió en paradigma del hombre nuevo, del modelo digno de imitación.
                      (mais…)

                        História, Olhares, Recortes

                        Rir para não pirar em Pyongyang

                        Pyongyang

                        Não sei se já todos vocês passaram por uma situação análoga, mas aconteceu-me uma meia dúzia de vezes. Viver uns quantos dias, por opção mal avisada, numa cidade desinteressante, sem nada de especial para fazer, sem conhecer ninguém, sem lugares bonitos para visitar, mas, por não dispor de transporte próprio, a contar pacientemente os dias que faltam para sair dali para fora. Nessas alturas, se não queremos morrer de tédio ou que nos aconteça alguma coisa má ao cérebro, o melhor que há a fazer, para além de dormir muito, de ler todos os livros que tivermos conseguido levar e de tomar notas para o romance que vinte anos antes planeámos escrever, é procurar fazer render aquilo que se encontra à nossa mão. Esquadrinhar os recantos das praças, reparar em cada centímetro dos corredores do museu local, ponderar a dimensão dos edifícios e das estátuas, tentar perceber como comunicam os naturais, e principalmente observar o que se passa no hotel que nos coube como se de uma inesgotável aventura se tratasse.

                        Pois foi precisamente isto que fez Guy Delisle, o canadiano autor de livros de banda desenhada que em 2003 publicou Pyongyang. A Journey in North Korea, relato visual de uma sua estadia de trabalho, como supervisor de um estudo asiático de cinema de animação, na cidade capital do império norte-coreano da dinastia Kim. Só que, neste caso, à situação do viajante aborrecido de morte associou-se a consciência de um universo regulado pela vigilância paranóica e pela repressão. A sua forma de sobreviver no mundo sombrio ao qual se viu confinado, e que procurou descrever neste livro, colocando-o ao dispor da compreensão do leitor, foi então olhá-lo de uma forma aparentemente ingénua, fazendo com que o seu modo de observação fosse filtrado pelo relato de episódios nos quais o absurdo e a comicidade insinuam um devastador efeito crítico. Insistindo na arma do humor, que mesmo na sociedade mais repressiva do mundo serve, como em toda a parte, de factor de resistência. Segundo Delisle, uma piada com bastante êxito em Pyongyang é aquela que procura explicar por que motivo os velhos autocarros que circulam na capital, todos eles montados na distante década de 1950 por operários dos arredores de Budapeste, têm invariavelmente entre uma e cinco estrelas de cinco pontas pintadas na carroçaria: é uma por cada 5000 quilómetros percorridos sem acidentes.

                        Tal como outros livros de Guy Delisle, este está à venda nas lojas da rede FNAC.

                          Atualidade, Democracia, Olhares

                          Para dar o exemplo

                          WikiLeaks

                          Já todas as perspectivas concebíveis foram enunciadas a propósito do caso WikiLeaks e dos 250.000 documentos secretos disponibilizados pela organização ao El País, ao Le Monde, à Spiegel, ao Guardian e ao New York Times – curiosamente, o que não tem sido sublinhado, todos eles situados de alguma forma à esquerda do espectro político no panorama editorial dos respectivos países –, que os tratam e vão revelando ao mundo a gonta-gotas, de acordo com critérios e objectivos que só as suas direcções conhecerão. Um dos últimos pontos de vista, e também um dos mais divertidos, é o de Fidel Castro, para quem o episódio «pôs os Estados Unidos de joelhos» mas serve também os interesses de um punhado de meios de comunicação «pró-fascistas» que recorrem a ele «para atacar os países mais revolucionários». Entretanto, as primeiras abordagens foram naturalmente bastante simples e epidérmicas, e admito que um tanto distraidamente partilhei uma delas. Não a que antecipou um certo êxtase em relação à orgia de informação que se anunciava, mas antes aquela que nos primeiros dados avançados não via nada de mais, de particularmente novo ou de excitante. É verdade que senti, e continuo a sentir, alguma desconfiança em relação ao modo demasiado simples como tudo aconteceu e em relação aos interesses das partes envolvidas (incluindo nestas o trajecto e as motivações de Assange), mas admito que talvez tenha reparado mais no fumo do carburador do que nas condições de funcionamento do motor. Regresso pois ao assunto.

                          A maioria dos artigos de jornal e dos posts surgidos em blogues distribui-se simplisticamente por dois grandes campos. O daqueles que vêm no vivaço trintão australiano um novo Che, talvez menos fisicamente atraente mas não menos bravo, e entendem que tudo deve ser dito a toda a gente. Embora alguns dos que defendem este ponto de vista ressalvem a existência de Estados com governantes gloriosamente antiamericanos onde o controlo da informação possa ser legítimo. E, do outro lado, o campo dos que entendem que os governos têm todo o direito de escolher o que é informação sensível e de a furtar aos olhares públicos, punindo quem se arrogue a dar com a língua nos dentes. Contra ambos, vejo antes o que alguns comentaristas avisados também já viram: uma coisa é o direito ao secretismo, que é uma prerrogativa de todos os detentores de alguma forma de poder e que nas questões de política internacional pode em muitos casos tornar-se inevitável, mas outra é o dever de os órgãos de comunicação livre darem a conhecer aos cidadãos as informações que lhes dizem respeito e às quais têm acesso. Por outras palavras: os diplomatas e os espiões devem ter cuidado na transmissão da informação sensível com a qual trabalham, mas se o não tiverem ninguém terá de fazer o seu trabalho por eles. Salvo, naturalmente, em situações extremas, quando a circulação de informação crucial pode colocar vidas em jogo. Não é este no entanto, visivelmente, o caso da larga maioria dos telegramas já conhecidos.

                          O problema central, aquele que mais nos deve inquietar, bate justamente nesta tecla. Num artigo do último número da Wired escreve-se que «uma imprensa autenticamente livre, liberta de toda a consideração nacionalista, constitui manifestamente um problema aterrorizador, tanto para os governos eleitos quanto para os tiranos.» Uns e outros, distanciados das sociedades que governam e cada vez mais habituados a mandar por decreto, pouco ou nada atendendo ao valor da opinião pública, dão de barato que a boa governação e a boa diplomacia se fazem nas antecâmaras e nos corredores, não na praça pública, destinada apenas, idealmente, ao circo das grandes consagrações. E por isso tanto os incomoda, como incomoda os seus escribas e porta-vozes, que chegue «à cozinha» uma conversa que deveria ter sido mantida na discrição dos gabinetes. Claro que a WikiLeaks não é sinónimo de transparência, nem o seu rosto mais conhecido é propriamente um mártir da liberdade e da democracia radical, mas o que nos deve inquietar não são os resultados e as ondas de choque das suas iniciativas, para as quais quem tem nas mãos o poder dispõe sempre de boas almofadas. O que preocupa é que exista quem queira silenciá-las. Para que os vulgares cidadãos não se arroguem a meter o nariz onde não são chamados. Para que estes percebam que a liberdade de expressão tem limites, fronteiras determinadas por quem pode fazê-lo que «não devem ser ultrapassadas». E para dar o exemplo.

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                            #15 – Cuba é uma obsessão de todos os dias para quem nasceu na ilha. Para quem lá vive, ou emigrou de alguma maneira, ou de lá foi expulso por não se conformar ao modelo único. Mesmo a milhares de quilómetros de distância. Um belo e edificante blogue, o Los Dias No Volverán, da investigadora, ensaísta e poeta havanesa Mirta Suquet. [Dois observatórios suplementares podem ser visitados em Penúltimos Dias e no Diario de Cuba.]

                            Obrigado OMS

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                              Al zukkar

                              sugar

                              Desenganem-se as aves de rapina que insinuam existir um crescente desinteresse por parte dos governantes da nação em relação à felicidade dos seus governados. Apoiado no parecer douto da Associação Portuguesa de Distribuidores, o Ministro da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas acaba de nos assegurar que não irá faltar açúcar nos supermercados. Não posso deixar de me alegrar com a notícia. Afinal a metafísica de muitas famílias depende dessa «areia grossa», sharkara em sânscrito, que os árabes nos fizeram saborear como al zukkar e hoje usamos para celebrar o nascimento de Cristo e fazer disparar a glicemia. Como proclamava Álvaro de Campos, «as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.»

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