Os acontecimentos dramáticos da Tunísia, os duros recontros de rua entre os manifestantes e a polícia, e o seu resultado prático com a demissão compulsiva de Ben Ali, inesperados pelo menos para quem os observa de longe, podem ajudar-nos, nesta época de recuo dos movimentos sociais de natureza não-reformista, a perceber que não é através da instalação da cultura de escape ou do conformismo diante do arbítrio que se combatem a tirania, a injustiça ou a desigualdade. Que se revela a possibilidade da realidade que «é» ser bem diversa daquela outra que afinal «pode ser». Através de um processo de mudança apoiado num esforço para sairmos do nosso acanhado território de salvaguarda, dos nosso medos instalados e do nosso desalento. Da pequena vida ocupada com a sobrevivência em fugidios nichos de felicidade nos quais nos resguardamos para sobreviver.
Será um lição para os povos dos Estados do mundo islâmico, dentro dos quais o poder arbitrário, a desigualdade entre ricos e pobres, entre quem pode sempre e quem apenas deve, a pobreza extrema da maioria da população, a exploração do trabalho, a falta de liberdade, o analfabetismo e a ignorância, a intolerância usada como forma de opressão, são camuflados por uma retórica sectária, nacionalista ou antiocidental, apresentada pelas autoridades políticas e religiosas como vinculada a uma «tradição islâmica» na verdade inexistente. Foi o libanês Samir Kassir quem, num livro que lhe custou a vida – Considerações Sobre a Desgraça Árabe, editado em 2006 pela Cotovia – falou dos crimes dessa gente que se mantém no poder fazendo crer aos seus povos «que não têm outro futuro para além do que lhes destina um milenarismo mórbido», remetendo-os ao culto «da desgraça e da morte». Na realidade, uma alteração de política imposta pela revolta generalizada e pela vitória, ainda que temporária, dos objectivos nucleares dos sublevados, como esta que acaba de acontecer na Tunísia, suscita o exemplo de uma oportunidade, de um trilho, que só pode preocupar as elites criminosas, cujo poder se funda na opressão e se alimenta do ódio ao outro que vive a milhares de quilómetros de distância.
Mas será uma lição também para os povos do chamado ocidente, em particular para os da Europa do sul, contidos por sistemas políticos bloqueados, sem capacidade de renovação e de motivação, e narcotizados por uma comunicação social manipuladora, controlada pelos grupos financeiros, que se esforça para impor a ideia de que toda a perturbação é necessariamente má. Espalhando, como um vírus, a fantasia de que os núcleos concêntricos do poder são imunes aos protestos dos cidadãos e à possibilidade de uma mudança de orientação na organização da economia, na escala dos valores sociais, na escolha das prioridades políticas. A revolta extrema, dura e radical, com contornos por vezes brutais, como aquela que vimos agora nas cidades, vilas e até povoados tunisinos, pode desenhar num horizonte geograficamente alargado, a contracorrente, a percepção de que existe um momento no qual a paz social carece realmente de alguns safanões. Estes movimentos bruscos e perturbantes não são agradáveis – só um tonto ou um louco gosta do cheiro das barricadas em chamas, do ardor dos gazes lacrimogéneos, de sangue derramado –, mas podem ajudar a reencontrar a ideia de que a mudança radical não é um mal em si. E de que ela pode até representar a melhor forma de evitar males bem piores.