Arquivos Mensais: Fevereiro 2011

O resto virá depois

Egipto

Em artigo editado na semana passada pelo Público, Eduardo Lourenço escreveu que a Europa, como o Ocidente em geral, «já não faz revoluções». Ao contrário, «sofre-as, deixa-se surpreender por elas», arrastada por movimentos poderosos que não controla e tem dificuldade em compreender. A propensão do ensaísta para transformar certas hipóteses aparentes em verdades temporárias – desde Montaigne, como é sabido, a característica essencial do ensaio – conduz a afirmações como esta, com a qual podemos dialogar mas que não convém tomarmos à letra. Se falarmos das revoluções com um carácter total, absoluto, determinadas perfazer o círculo e a reconduzir a história ao quilómetro zero para produzirem um mundo radicalmente novo e supostamente melhor, a afirmação de Lourenço fará sentido. Mas tal já não acontece quando nos referirmos aquelas que resultam da insuportabilidade de uma situação ou da necessidade imperativa da sua ultrapassagem, transformada em estímulo para a insurreição.

Ora, como a história recente tem vindo a mostrar, estes momentos são não só imprevisíveis como impossíveis de cartografar por antecipação. Acontecem quando e onde parte significativa das sociedades compreende que deixou de ser possível suportar o insuportável, encontrando forças para jogar tudo na cartada da mudança. Sob esta perspectiva, quem poderá garantir que se eclodiram agora na Tunísia, no Egipto e na Líbia, se parecem estar a alastrar à maior parte dos países árabes, onde até há pouco tempo a generalidade dos analistas só via resignação e imobilismo, não possam também ocorrer aqui ao lado ou mesmo à nossa porta, dentro das nossas cidades? Como actos raros e ocasionais, nos quais a necessidade imperativa e a desrazão que esta provoca jogam um papel decisivo, as revoluções não caem do céu – nisso tinha razão Mao Tsé-Tung – mas também não se programam. (mais…)

    Atualidade, Olhares, Opinião

    As Líbias do Manuel

    O microfone

    Não sendo um traço «tipicamente português», sabemos como o grau de despolitização da maioria dos nossos compatriotas é, pelo menos em termos europeus, bastante elevado. Lêem-se poucos jornais, discute-se menos, o share dos telejornais é baixíssimo e existe uma cultura do desinteresse, de raiz salazarista, que molda ainda os comportamentos. De tão distendida no tempo, é provável que tenha transmutado também os nossos genes. A falha nota-se sobretudo a propósito das questões do nosso tempo que comportam uma dimensão transnacional. Para muitos dos nossos compatriotas, elas podem até ter reflexos no comportamento sideral dos anéis de Saturno, mas jamais ecoarão no seu quintal. Apesar de nos tempos que correm os jornais, a televisão, a Internet e até a nossa conta bancária nos avisarem a todo o momento de que tudo tem a ver com tudo e de que, por mais voltas que possamos dar, não podemos fugir a esse fado.

    A ingenuidade e a ignorância são ainda mais chocantes quando afectam pessoas que por dever de ofício deveriam manter-se informadas sobre os terrenos que pisam. É de facto impressionante o grau de desconhecimento das condições políticas que têm preservado os seus postos de trabalho, e o nível de insensibilidade em relação às pessoas com as quais partilham boa parte das suas vidas, evidenciado pela generalidade dos empresários e dos trabalhadores portugueses em missão na Líbia – os turistas têm alguma desculpa – que estão a ser ouvidos pelos telejornais como testemunhas privilegiadas da revolta anti-Kadhafi. Quase invariavelmente, falam do que está a acontecer no país onde trabalham como se tudo não passasse de um rol de desavenças burlescas entre indígenas, que depois de passarem lhes devolverão intacto o país no qual têm governado a vidinha. Existe, de facto, ainda quem alimente o estereótipo do Manuel Padeiro, o tuga ignaro das coisas do mundo para quem tudo se resume ao cálculo simples do deve e do haver e à rota certa do casa-trabalho-casa. Estão no seu direito, claro, mas é patético vê-los convertidos em comentadores idóneos. Francamente, antes um daqueles geopolitics experts que jamais passam o limiar do previsível.

      Apontamentos, Atualidade, Olhares

      E não se deitaram no chão

      Anatomia de um instante, de Javier Cercas, é uma narrativa pormenorizada das circunstâncias que envolveram o 23 de Fevereiro de 1981, quando as Cortes espanholas foram assaltadas por duzentos membros da Guardia Civil comandados pelo tenente-coronel Tejero Molina. A operação foi parte de uma tentativa de golpe lançada pelos militares franquistas contra um regime democrático que dava ainda os primeiros passos. A momentânea vitória dos sublevados acabaria por ser contrariada em boa parte pela intervenção do rei, mas durante longas horas, uma noite inteira e ainda parte da manhã seguinte, governo, deputados e jornalistas presentes à hora do assalto foram conservados como reféns pelos assaltantes. A parte mais dramática e imprevisível foi a inicial, quando os militares irromperam pela sala e foi dada uma ordem no sentido de todos se deitarem de imediato no chão. A ordem foi acompanhada por um tiroteio desgovernado que não feriu ninguém mas bastou para atemorizar os presentes e dar ao país e ao mundo – a televisão transmitiu as imagens em directo – a ideia de que não se tratava propriamente de uma brincadeira.

      No livro de Cercas, como no momento do golpe, destacam-se três homens cuja bravura se explica em poucas palavras. Foram os únicos dos presentes que não se atiraram para o chão e encararam os golpistas, sabendo qualquer deles, naquele preciso momento, que se apenas três dos que se encontravam dentro da sala fossem fuzilados seriam precisamente eles. Relembro os nomes: Adolfo Suárez, primeiro-ministro demissionário, um antigo franquista bon-vivant que atraiçoara os seus tornando-se figura-chave da transição para a democracia; o general Manuel Gutiérrez Mellado, que durante a Guerra Civil se batera contra os republicanos mas agora apoiava Suárez na qualidade de ministro da Defesa, transformando-se para a extrema-direita no exemplo máximo de traição; e Santiago Carrillo, o então secretário-geral dos comunistas, que pelo simples facto de personificar a principal e «demoníaca»  força de oposição a Franco era o deputado mais odiado pelos amotinados de arma engatilhada. Suárez deixou-se ficar sentado, como que impassível e, sugere Cercas, a «posar para a História»; Gutierrez Mellado, de setenta anos e o mais velho dos três, resistiu fisicamente e de pé à ordem dos assaltantes, só se sentando quando lhe apeteceu; Santiago Carrillo, o velho e experimentado combatente antifranquista, manteve-se sentado a saborear calmamente o seu cigarro.

      Claro que este post é só um engodo para a leitura deste livro intenso, encaixado num género híbrido, entre a história, o jornalismo e o romance.

      Rui Bebiano

      Javier Cercas, Anatomia de um instante. Trad. de João Pedro George. Dom Quixote. 458 págs.
        História, Leituras, Memória

        Tobruk

        Tobruk

        Até agora a palavra Tobruk evocava principalmente um filme americano de Arthur Hiller, estreado em 1967, com Rock Hudson e George Peppard nos papéis principais. Inventava-se ali a epopeia de uma brigada de judeus alemães que combatiam contra o poderoso Afrika Korps, de Rommel, durante a longa e dura batalha pela posse da cidade-porto mediterrânica. De Tobruk-o filme retinha as imagens a technicolor de explosões fictícias, golpes-de-mão forjados, falsas mortes e outros ardis desses que o cinema descobre para nos enganar. A perspectiva foi radicalmente alterada hoje, com a chegada das primeiras imagens de uma cidade liberta das garras de Kadhafi. As armas agora são reais e ainda disparam, é verdade, mas desta vez de júbilo e celebração. Gostaria de não voltar a olhar para Tobruk como para uma fortaleza triste e sitiada.

          Apontamentos, Atualidade, Cidades

          Revolução Revolution (parte 2)

          Momentos irrepetíveis. Em «On the Square», de Wendell Steavenson, no Cairo. The New Yorker de hoje.

          Inside was the Republic of Tahrir, where the protesters had established a kind of revolutionary utopia. As you came through the barricades by the Qasr al Nil Bridge, a funnel of protesters cheered and dapped and chanted, «Welcome! Welcome to the free, who have joined the revolutionaries!» The scene was indescribably moving. There was no hierarchy or formal organization on the square, and yet lines of protesters guarded the barricades while others swept the garbage into neat piles and manned the checkpoints to search people for weapons. People brought food and water and medicine into the square and gave it out for free. «We are queuing up!» one activist who had named his tent the Freedom Motel told me, incredulous at the number of people flowing into the square. «When was the last time you saw an Egyptian queuing up?» I asked one young female volunteer in a floral head scarf if she was with any particular organization. «I am with no one», she replied simply. «I am with the people.»

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            O Bloco e o sentido da vida

            Trostky, Lenine e Kamenev

            Provavelmente escreveu-se mais nos jornais e nos blogues sobre o sentido da vida do Bloco de Esquerda durante estes dias do que nos últimos dois ou três anos. O tom tem oscilado entre o apocalíptico, o céptico e o afirmativo, conforme corresponda a uma previsão da queda do partido, à percepção da inutilidade da moção de censura do governo ou à ideia de que esta possa ajudar a separar as águas. Situo-me na terceira destas vias, embora não da mesma forma que os dirigentes do Bloco. Não me parece nada que a iniciativa possa servir para demarcar os campos e perceber de que tamanho é a direita, criando condições para uma solução política à esquerda. Já foi dito e redito o que é evidente mas algumas esforçadas declarações têm tentado negar: se a moção fosse aprovada o governo saído de novas eleições seria mais à direita; não sendo aprovada, como irá acontecer, ajudará a estabilizar a autoridade política da actual direcção do Partido Socialista. Pelo meio, a proposta impeliu muitos cidadãos descontentes com o actual governo – gente sem partido principalmente, mas também socialistas críticos e numerosos simpatizantes seus – para uma posição de admissão contrariada da continuidade de Sócrates. Porque à política do «quanto pior, melhor» – da qual, ao contrário do PCP, até agora o Bloco parecia ter-se preservado – as pessoas comuns, sobretudo as que sabem que um governo PSD desmantelará sem piedade o que ainda resta do Estado social construído depois de Abril, preferem um «p’ra pior já basta assim». (mais…)

              Atualidade, Olhares, Opinião

              Da casa do sol nascente

              95 em cada 100 cidadãos que alguma vez aprenderam, ou tentaram aprender, a tocar guitarra, passaram pelo dedilhar quase imóvel de The House of the Rising Sun. O tema gravado pela primeira vez em 1933, por Clarence e Gwen Foster, que Eric Burdon and The Animals popularizaram em 64 (já que em 61 a gravação de Dylan fora um valente fiasco). No que me toca, de tal maneira me dediquei ao treino que a canção «animal» se me tornou um bocado irrespirável. Pois acabo de receber da fonte, com um pedido de divulgação, uma nova versão dos velhos acordes. A banda hispano-franco-argentina Mégaphone ou la Mort a levar-nos de volta à velha casa do sol nascente.

              Frequentadores habituais d’A Terceira Noite têm-se queixado de falta de música. Com toda a razão. Fica pois a promessa de melhoras. Mas entretanto não se esqueçam de ir ao menu e de clicarem em VÍDEO.

                Etc., Música

                Um genocídio soft

                Todos os meses entro numa farmácia. A doença crónica, que não assassina mas amolece, força a peregrinação. Apanho geralmente com pessoas à minha frente e fico por ali à espera de vez. São quase sempre pobres ou remediados os outros clientes. Poderei frequentar a farmácia errada, mas raramente por lá vejo pessoas com aspecto próspero. Sei que muitas destas também não têm saúde, mas encontrarão sempre quem compre os comprimidos, as gotas e os unguentos por elas. Os pobres não. Os remediados também não. Esses chegam e ficam por ali, pacientes, tristes, calados ou a falarem baixinho, a contarem os cêntimos e as desgraças. Tenho reparado, e não poucas vezes, naquilo que os jornais acabam de relatar como uma novidade filha da crise: pessoas que não levam todos os medicamentos receitados porque não os podem pagar, escolhendo os mais baratos ou aqueles com os quais mais se familiarizaram. Deixando uma parte do tratamento para dias melhores, se é que algum dia esses dias virão. Outros, também já os vi, pedem «para assentar», prometendo liquidar a dívida mais tarde, quando receberem a reforma. Outros ainda pagarão com dinheiro emprestado. O preço, os lucros e as condições de acesso aos medicamentos são dos factores de injustiça e de falta de solidariedade mais perturbantes desta sociedade que vamos partilhando. Daqueles nos quais o Estado – social sem vergonha de o ser – teria a obrigação moral e política de intervir para impedir o genocídio soft e silencioso com o qual pactua por omissão. Daqueles que deveriam ter o lugar de destaque que não têm no combate político e nos movimentos sociais.

                  Apontamentos, Atualidade, Olhares

                  24 horas de felicidade

                  Cairo

                  Não há paciência para tanto/a profeta da desgraça a denegrir a revolução egípcia, a tentar descobri-lhe os defeitos, a contar com a intervenção dos seus inimigos, a duvidar de tudo e de todos. Claro que muito em breve surgirão recuos, divisões, falhas, traições, erros, desvios, manobras, manipulações e não sei o quê mais. São as leis da História e nós até já passámos por uma experiência idêntica. Mas tentem ser felizes durante 24 horas só por verem um povo celebrar e ser feliz por 24 horas. E por a palavra democracia ser proclamada sem complexos ou adjectivos.

                    Apontamentos, Atualidade

                    Equívoco

                    equívoco

                    Vai por aí grande alarido por causa da moção de censura ao governo que o Bloco de Esquerda irá apresentar dentro de um mês, a 10 de Março. Não vou insistir no que outros já disseram sobre os seus incontornáveis efeitos: se ela for aprovada o país cairá de mão-beijada nas mãos do PSD de Coelho; se não o for, Sócrates e o seu PS ganharão um fôlego mais. Em ambos os casos tratar-se-á de um gesto arriscado e aparatoso que serve mais o circo do que o pão. Quer isto dizer, e é isto que me parece importante, que a direcção do Bloco, continuando a centrar a sua iniciativa nas cartadas parlamentares, se foca no acessório secundarizando o essencial. Isto é, aposta mais no ruído mediático à volta da sua posição formal do que na edificação de um movimento de massas capaz de fazer perceber ao governo, aos partidos do poder e a quem do lado de cá e de lá dos Pirenéus gere o nosso futuro, que há ira nas pessoas, que mora nelas a vontade de trocarem as voltas ao destino, e que não se deve brincar com estes sentimentos. Sem menosprezo da actividade parlamentar, parte fulcral da vida democrática, estamos numa fase em que o protesto e a construção social e cultural da alternativa são muito mais úteis e necessários do que uns quantos discursos de dedo em riste. Para a vida presente e futura dos cidadãos e até para o seu estado de espírito. O Bloco é um instrumento de esperança e não deve esbanjar esse capital.

                    Post-sciptum – Entretanto a direcção do BE esclareceu a sua posição sobre os objectivos da moção, apontando-a «contra a direita e contra quem governa com políticas de direita». É um redireccionamento positivo, mas as consequências práticas e a questão de fundo que este post levanta permanecem intocáveis.

                      Atualidade, Opinião

                      Isto quer dizer alguma coisa

                      Deolinda

                      Provavelmente estará tudo dito sobre «Parva que sou», dos Deolinda. Pró, contra e assim-assim. Eu sou pró porque há muita coisa contra a qual é preciso estar. Quem já não é, ou jamais foi, capaz de pensar as dinâmicas do protesto, ou de se indignar com o que vai mal e proclamá-lo sem rodeios, inventa argumentos para desqualificar a canção. Diz que «Parva que sou» tem uma estrutura pobre, simples, sem arranjos elaborados, por exemplo. Ah, pois tem, claro que tem, mas é aí que está em parte a origem da sua pujança e da exaltação que tem despertado. A arte pode ser complexa e ter uma dimensão subversora, como toda a gente sabe, mas em democracia uma canção de intervenção, que é aquilo que esta é, tem necessariamente de ser assim simples, límpida, «dizendo coisas» preto no branco como as diz um panfleto. Não pode ser murmurada. Precisa ser directa para agitar. Diz-se também, por exemplo, que é demagógica quando declara que «para ser escravo é preciso estudar». Como se isto traduzisse um apelo ao menosprezo do valor social do ensino. Só quem já não tem pinga de capacidade para perceber os caminhos da insegurança, ou vive fechado no seu mundinho tutelado, é incapaz de entender aquilo de mau que passa pela cabeça de quem entra nas universidades com o futuro já adiado sine die e o trabalho precário ou o desemprego no horizonte. Não estive no Coliseu do Porto e só ouvi «Parva que sou» através do YouTube. Mas há muito que não pressentia por cá uma cumplicidade tão grande entre a palavra cantada, o público que a envolve, e o mundo agitado e injusto que os aguarda lá fora. De certeza que isto quer dizer alguma coisa.

                        Atualidade, Música, Olhares

                        Reflexos pavlovianos

                        down

                        Foram de surpresa as reacções diante dos acontecimentos que ocorreram nas margens sul-leste do Mediterrâneo. Como era possível tanto movimento numa paisagem que parecia suspensa no tempo para sempre? Mas depois da surpresa veio a esperança. E depois desta o cepticismo.

                        A esperança fundou-se na percepção de que afinal os cidadãos dos Estados islâmicos não são apenas barbudos com os olhos raiados de sangue, militares brutais, homens ignorantes ou mulheres veladas e submissas. Vemos à frente das câmaras pessoas de todas as qualidades, principalmente jovens, em estado de revolta pura, com a aparência de terem dispensado Deus e os Mestres. Ainda há dois dias, no Público, Paulo Moura relatava a partir do Cairo: «Aqui qualquer um pode inventar uma frase e lançá-la. Não há um partido, nem um sindicato a orientar coisa nenhuma». Tudo parece uma gigantesca festa, embora todos saibamos que as festas têm uma duração limitada e acabam por doer. Mas tudo também parece valer a pena para viver um tempo no qual muitos sentem a História a pulsar. Foi o que fez, por exemplo, com que antigos activistas jordanos e libaneses – invoco dois casos reais que a prudência aconselha a não identificar – deixassem o emprego e o descanso para viajarem até ao Cairo ou Alexandria e passarem noites na rua a bater-se pela democracia. A ausência, ou pelo menos a discrição dos islamitas, contribuiu aliás para determinar o sentimento de confiança.

                        Mas na opinião que vai correndo existe também o outro lado, o dos profetas da desgraça que reagem de forma pavloviana. Alguns consideram, por exemplo, que o Egipto irá inevitavelmente seguir um processo «à iraniana». Apoiados na democracia, dizem, os extremistas tomarão conta do poder, como o fizeram em tempos os seguidores do ayatollah Khomeini. Esquecem-se porém de um pormenor: essa é uma experiência com mais de trinta anos e no Irão de hoje o extremismo é claramente minoritário, mantendo-se graças apenas à ditadura. No entanto, de acordo com todas as possibilidades, um Irão mais democrático, que o povo iraniano tem vindo a reclamar, será bem mais moderado que o poder obscurantista de Ahmadinejad. Por sua vez, os actuais governantes de Israel sentem-se também bastante incomodados. Vangloriando-se, com alguma razão, de administrarem a única democracia da região, logo que um grande país vizinho pareça dirigir-se para um tempo de liberdade, esquecem os grandes princípios e o pânico instala-se entre eles, provando que convivem bem melhor com as ditaduras do que com os riscos da mudança.

                        Claro que ninguém poderá excluir o pior. A sombra dos Irmãos Muçulmanos, partido da regressão e do fanatismo religioso, está no ar: depois de um alheamento inicial, procuram agora apanhar o comboio da revolta egípcia. Mas, como perguntou no Libération Laurent Joffrin, fará algum sentido que, antes mesmo de o ditador cair e de o povo egípcio exprimir de forma livre aquilo que realmente deseja, deva prevalecer o medo do que poderá vir depois de morta a esperança? Uma atitude desta natureza traduz, a par de um chocante cinismo, uma enorme falta de confiança nos valores regeneradores da liberdade e da democracia. E estes só existem se alguém, em algum momento, se bater por eles.

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                          Tudo ao monte

                          RSS

                          Como muitos sabem, a tecnologia RSS serve para agregar conteúdos originários de diversas fontes, permitindo aos utilizadores da Internet, através de programas ou de sites vocacionados para a função, reunir num único lugar informações provenientes de serviços que mudam ou se actualizam regularmente. O sistema tem já alguns anos e é extremamente útil para quem deseje estar a par das novidades associadas a sites de notícias, a blogues, etc., sem precisar de visitá-los a toda a hora e um a um. Sirvo-me dele há bastante tempo e tenho a certeza de que se não fosse dessa forma muita da informação à qual consigo aceder passar-me-ia completamente ao lado. Já nem sei, por exemplo, ler blogues de outro modo, uma vez que é impossível visitar, semanalmente sequer, muitos daqueles que me agradam ou que me podem ser úteis. Leio então os cabeçalhos e as primeiras linhas no agregador e depois, se o assunto e o tom me interessarem, viajo até à fonte.

                          O processo não me trazia problemas até há pouco tempo, mas agora as coisas mudaram. Explico-me: os computadores tablet permitem instalar agregadores – como o Early Edition ou o Flipboard, para falar dos que tenho no iPad – que se comportam como verdadeiros jornais em papel ou portais de notícias, com uma disposição gráfica e processos de leitura e de apreensão da informação idênticos aos tradicionais. Até aí tudo bem, não fora toda a informação, apesar de condicionada pelas nossas escolhas, surgir ali de uma forma algo aleatória. Significa isto que aparecem referências e notícias chegadas da BBC, da Reuters ou do El País, lado a lado, e sem hierarquia visível, com aquela que é fornecida por um blogueiro da Marmeleira ou um enragé de Almofarizes de Cima (sem ofensa para os enragés de Coimbra). Isto é, novidades provenientes de agências ou publicações credenciadas visualmente misturadas com aquilo que possa escrever, num repente e sem intermediação, um cidadão alfabetizado e infoincluído. Desconfio que isto ainda vai provocar transtornos em muitas cabeças.

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                            Adeus Maria

                            Maria

                            As filas, «bichas» num português de outras eras, nunca foram o meu forte. De cada vez que me meto numa um pouco mais comprida e visivelmente demorada, rapidamente avalio se se justifica a espera e não será preferível trocá-la por uma actividade mais autónoma. Nessas alturas desisto sem ponta de remorso e vou-me embora. Mas não foi isso que aconteceu naquele final de tarde de um Verão dos idos de 75, ali nas imediações das bilheteiras do Cine-Atlântico (ou teria sido no Cine-Miramar?) de Luanda. Munido de toda a paciência deste mundo e do outro, deixei-me ficar bem mais de duas horas na bicha, ou «fila» em português do século vinte e um, que dava a volta ao quarteirão. O objectivo assumido: comprar um bilhete para ver O Último Tango em Paris (1972), de Bernardo Bertolucci. Mais do que muitas famílias, libertas da censura pelas liberdades de Abril, seguiam pacientes em formatura, visivelmente interessadas em conhecer a dimensão estética da lubrificação na fantasia sodomita protagonizada por Paul (Marlon Brando) e Jeanne (Maria Schneider). A Maria morreu hoje de cancro e só consigo recordar-me de como estava esplêndida, na pele de uma mulher jovem e desconhecida, naquela noite luandina.

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