Arquivos Mensais: Abril 2011

Sobre o anti-semitismo

anti-semitismo

Três investigadores noruegueses juntaram-se para organizar este volume sobre o historial duradouro e violento do anti-semitismo. Como ponto de partida, consideraram ser uma definição simplista ligá-lo ao ódio aos judeus só por estes o serem, atribuindo-lhe um sentido bem mais amplo: tomam-no como expressão de rancor em relação aos judeus, sem dúvida, mas mais fundada no imaginário das características que lhes são atribuídas do que no seu lugar social concreto. Dito de outro modo, o anti-semitismo é, para os autores da obra, um processo de transformação dos judeus reais em «judeus» imaginários, conduzindo à sua demonização e à defesa de medidas repressoras ou punitivas contra a sua presença, onde quer que esta se faça sentir. Avançam pois, de certa maneira, com uma argumentação análoga à usada entre nós por António José Saraiva quando qualificou a Inquisição portuguesa como uma «fábrica de judeus», descobrindo-os, inventando-os, onde eles de facto não existiam. Toda esta História, exaustiva na detecção de sucessivos exemplos da afirmação de ideias e de práticas de natureza anti-semita, segue este princípio: à caracterização do «judeu» têm sido demasiadas vezes associadas particularidades inteiramente ficcionadas que mascaram ou moldam a realidade.

A obra segue ao detalhe quatro momentos na cronologia do anti-semitismo: o anti-judaísmo com motivações religiosas, forjado pelo cristianismo, que pode ser encontrado desde a Idade Média até ao período das Luzes; o anti-semitismo moderno que se desenvolve nos finais do século XIX com base em supostas bases científicas, conduzindo no limite ao Holocausto; o anti-semitismo pós-Auschwitz associado a teorias negacionistas que visam reinterpretar o destino dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial; e, finalmente, um anti-sionismo contemporâneo, supostamente «de esquerda», fundado na condenação sem direito de resposta do «objectivo judeu» do Estado de Israel. Em Jesus da Nazaré, recentemente publicado, Bento XVI ilibou «o povo judeu no seu conjunto» da morte premeditada de Cristo, uma atitude que tem uma óbvia intenção política: a anulação do princípio fundador do anti-semitismo que é a sua abjecção, ao longo de séculos, por parte do cristianismo. A necessidade sentida pelo papa de se pronunciar publicamente sobre o tema realça a subsistência deste ódio orientado na nossa vida colectiva e, consequentemente, o interesse deste livro.

Uma advertência sobre a tradução: mesmo sem cotejar o texto com o original norueguês, percebe-se a imprecisão de muitas frases e termos, estorvando a clareza das ideias e atenuando um pouco o prazer da leitura.

[Trond Berg Eriksen, Hakon Harket e Einhart Lorenz, História do Anti-Semitismo. Edições 70. Trad. de João António Correia de Sousa Araújo. 694 págs. Publicado na revista LER de Abril de 2011.]

    História, Memória

    Diógenes e a sopinha de legumes

    óculos vermelhos

    Quando passei hoje no Público pela coluna de António Vilarigues e vi o destaque – «A alternativa existe! E exige, na sua concretização, a formação dum Governo patriótico e de esquerda» – pensei logo de mim para comigo: «É hoje. Tens andado distraído mas vais finalmente perceber que coisa é essa do ‘Governo patriótico e de esquerda’ que o PCP pressagia.» Juro que fiquei na expectativa, até porque gosto sempre de aprender coisas novas e, acima de tudo, gostaria de reconhecer a possibilidade de um modelo político e económico para o meu país que não aquele que desgraçadamente nos tem vindo a ser apresentado como inevitável. No entanto, essa expectativa durou só dois minutos. A «explicação» encontra-se no parágrafo final: «Mas a alternativa existe! Uma alternativa capaz de garantir a política necessária à resolução dos problemas nacionais. E que exige, na sua concretização, a formação dum Governo patriótico e de esquerda. Governo com uma política que corresponda ao conteúdo e valor próprio da Constituição da República e dos ideais de Abril.» Sem mais, de novo. Ou seja, não existe alternativa alguma, pois ninguém percebe como chegar a tal governo, quem o constituiria e como é que ele resolveria o problema imediato da maioria dos portugueses; a saber, com que é que a partir de Junho estes vão pagar a sopinha de legumes da qual precisam para viver. Mas garanto que vou continuar a procurar – com a mesma tenacidade com a qual o velho Diógenes, de lanterna na mão, percorria as ruas de Atenas em demanda de uma pessoa honesta – a informação que me permita desfazer as dúvidas. Não quero acreditar que o PCP proponha como solução alguma coisa que não faz a menor ideia do que possa ser ou de que forma poderemos nós, ou poderá ele em conjunto com mais não sei quem, chegar a ela.

      Atualidade, Olhares, Opinião

      Zero em economia

      easy money

      Sou um ignorante chapado em ciência económica e durante muito tempo até fiz gala disso. Um tipo que gosta é das letras, das artes, de mexer em arquivos e de idear futuros, que não se preocupa em demasia com o vil metal ou com o preenchimento do IRS, dificilmente fará melhor. Deito fora os suplementos de economia sem os ler, e quando no banco me sugerem «um novo produto» digo logo que estou com pressa. Além disso, jamais confiro os trocos, mudo de canal quando aparece o Gomes Ferreira e não ligo peva aos extractos de conta. Não tenho pois grande capacidade – melhor, não tenho capacidade alguma – para observações minimamente elaboradas e de confiança sobre a evolução económica e financeira do nosso país ao longo dos últimos 37 anos. Mas sou suficientemente ingénuo, ainda assim, para atirar uma pergunta para o ar. O que terá levado as finanças públicas portuguesas ao estado pré-cadavérico em que se encontram? Foi a construção de um Estado social projectada por uns quantos nos anos 60 e lançada ao caminho após a Revolução de Abril, como insinuam a todo o instante os urubus do neoliberalismo que «analisam» a crise em curso, ou foi a edificação de um suposto oásis de dinheiro fácil, de descontrolo das despesas públicas e de crédito sem limites projectada nos «anos dourados» do teso Cavaco e do bom Guterres? Uma pergunta insensata, de ignaro, admito.

        Apontamentos, Atualidade, Olhares

        Mudança de hábitos

        Sigo o Jacques Tati de Mon Oncle numa pré-visão realista da via acelerada do meu país rumo a esse futuro próximo que podemos vislumbrar. Sem grandes exageros. Do novo-riquismo que Cavaco projectou nos anos 80 à queda numa realidade para a qual acabaram de nos projectar.

          Atualidade, Cinema, Olhares

          e-Hobsbawm

          Karl Marx Strasse

          Os grandes leitores reconhecem a mania de comprar livros no exacto dia do seu lançamento. Não pelo capricho banal de bibliófilo, cioso sempre das suas primeiras edições, ou por se não ter algo de realmente urgente para fazer: sabem perfeitamente que é antes por tanto quererem olhá-los, tocar-lhes, enfim lê-los, que não resistem a esperar mais algum tempo e se põem a caminho da loja mais próxima. Partilhando durante muito tempo desta compulsão, circunstâncias várias fizeram com que a fosse perdendo. Recuperei-a há poucos meses. Às nove exactas horas de uma manhã de Janeiro passado, tinha já a palpitar entre os dedos, em formato de e-book, um livro recém-saído de Eric Hobsbawm, acabado de comprar na loja online da Amazon.

          How to Change the World: Tales of Marx and Marxism, editado pela Little, do Brown Book Group, é basicamente uma grande compilação, de quase 500 páginas, contendo artigos escritos entre 1956 e 2009 pelo grande historiador britânico de 93 anos. O volume passa por distintos momentos do percurso político e filosófico do autor, ocupando-se também de fases diferentes do trajecto e do impacto mundial da obra de Karl Marx. Trata ainda, sem complexos, a fase de recuo desta influência que Hobsbawm julga ter começado em 1983. A data-charneira foi escolhida pelo seu peso simbólico: evocava-se nesse ano, quase em silêncio e sem quaisquer pompas, o centenário da morte do alemão. O que parece realmente único é o facto deste regresso a Marx ter sido produzido no contexto de uma realidade tecnológica e de processos de troca impraticáveis e mesmo impensáveis no tempo do filósofo de Trier, ou sequer durante os anos centrais da vida, da pesquisa e da reflexão de Hobsbawm.

          A compra e a leitura de e-books proporcionam este paradoxo: viajar num segundo entre dimensões radicalmente diferentes do processo de construção, de circulação e de apreensão da obra escrita, reposicionando ao mesmo tempo o seu próprio conteúdo.

            História

            A cor voltou à rua

            25A

            A sequência dos dias ia desbotando a data. Há um ano escrevi aqui: «Para os filhos e os netos de Abril tudo começou a 26 com o conta-quilómetros a zeros, e por isso para poucos deles há um «Sempre!». É assim e não há que ter pena. Há que olhar para o que está para vir e o resto é memória a guardar. Quente para muitos, sem dúvida, mas para cada vez menos porque a vida não faz pausa.» Cinquenta e duas semanas depois, estas palavras parecem-me imperfeitas. De repente, diante daquilo que até há pouco parecia improvável ou impossível,  a cor viva, agora a da resistência, voltou à rua. E com ela o reforço de uma certa memória útil, de uma memória memorável.

              Atualidade, Fotografia, Olhares

              O inevitável é inviável

              Não se trata de um programa para a acção, mas sim de uma declaração de princípios. Isso faz toda a diferença e torna este manifesto particularmente importante.

              Manifesto dos 74 nascidos depois de 74

              Somos cidadãos e cidadãs nascidos depois do 25 de Abril de 1974. Crescemos com a consciência de que as conquistas democráticas e os mais básicos direitos de cidadania são filhos directos desse momento histórico. Soubemos resistir ao derrotismo cínico, mesmo quando os factos pareciam querer lutar contra nós: quando o então primeiro-ministro Cavaco Silva recusava uma pensão ao capitão de Abril, Salgueiro Maia, e a concedia a torturadores da PIDE/DGS; quando um governo decidia comemorar Abril como uma «evolução», colocando o «R» no caixote de lixo da História; quando víamos figuras políticas e militares tomar a revolução do 25 de Abril como um património seu. Soubemos permanecer alinhados com a sabedoria da esperança, porque sem ela a democracia não tem alma nem futuro.

              O momento crítico que o país atravessa tem vindo a ser aproveitado para promover uma erosão preocupante da herança material e simbólica construída em torno do 25 de Abril. Não o afirmamos por saudosismo bacoco ou por populismo de circunstância. Se não é de agora o ataque a algumas conquistas que fizeram de nós um país mais justo, mais livre e menos desigual, a ofensiva que se prepara – com a cobertura do Fundo Monetário Internacional e a acção diligente do «grande centro» ideológico – pode significar um retrocesso sério, inédito e porventura irreversível. Entendemos, por isso, que é altura de erguermos a nossa voz. Amanhã pode ser tarde. (mais…)

                Atualidade, Democracia

                Achtung, camaradas!

                W. Merkel

                Wolfgang Merkel – não, que se saiba não é nada à outra senhora – não se trata de um sujeito qualquer. É cientista político, investigador emérito no Centro de Investigação em Ciências Sociais de Berlim, e noutros tempos foi conselheiro, calculem lá, dos senhores Blair, Schroeder e Zapatero. Um de cada vez, bem entendido. Está de passagem por Lisboa e ontem respondeu assim a duas das perguntas que o Público lhe fez.

                A Terceira Via parecia ser a resposta da social-democracia à globalização. O seu sucesso também acabou. Essa corrente ainda contém elementos para essa resposta do centro-esquerda à globalização?

                Enquanto metáfora, acabou. Quanto aos seus elementos constitutivos, há um legado negativo e outro positivo (…). Deixe-me citar primeiro dois ou três fracassos. Um dos maiores foi aquilo a que eu chamo o «Estado dos impostos». Eles não pensaram realmente que a social-democracia precisa de um Estado forte e que este tem de ser capaz de cobrar impostos a todas as classes da sociedade. E o que fizeram foi reduzir os impostos às empresas, às corporações, aos altos rendimentos, isso abriu as portas àquilo a que o grande economista Douglass North chama o «caminho da dependência». Passou a ser extremamente difícil voltar atrás, porque qualquer força política que o fizesse seria logo acusada pelos adversários de querer aumentar os impostos e isto faz perder eleições em quase todos os países europeus. O enfraquecimento do «Estado dos impostos» foi certamente um dos principais fracassos.

                O segundo foi terem sobrevalorizado os efeitos positivos da globalização, levando-os ao credo na desregulação financeira. Foi um erro. Não viram que o impacto da globalização, que se traduziu num aumento de bem-estar geral, deixou de fora o terço mais pobre das nossas sociedades, que se dividiram entre os ganhadores e os perdedores da globalização.

                O terceiro erro eu diria que foi terem deixado de fora o espaço da UE como espaço de acção política. Estes três erros acabaram por acelerar os problemas da social-democracia.

                As coisas boas?

                Não são tão fáceis de enunciar. Uma delas foi a importância que deu à sociedade civil, dizendo que o Estado não pode fazer tudo pelas pessoas. E, pelo menos em teoria, a ênfase que colocaram na educação, educação, educação.

                  Apontamentos, Recortes

                  Amanhã vai ser outro dia

                  São quase três da manhã a 13º Celsius, o prédio está em silêncio e da minha varanda não se vê ninguém. Aqueço a sensação de que ninguém me lê, ninguém me escuta, posso escrever aquilo que me apetecer na direcção de Saturno. Faço então as contas à contradição na qual me vejo embrulhado. Num momento em que me sentia amaciar, tendendo, quanto mais não fosse por recomendação dos licenciados, para a moderação da vida burguesa, eis que a realidade não deixa. Neste país de democracia suspensa e futuro encostado à parede, estou condenado, como tantos outros mortais – sabe-se lá o que pode a imaginação fazer à pobre realidade –, a radicalizar-me de novo. Temo pelos perigos desta radicalidade nova, construída sem projecto de futuro, sem caminho à vista e voz audível na qual seja possível confiar. No horizonte dos que resistem não se encontram agora cidades maravilhosas, lideres inspiradores, miragens de futuros perfeitos e inevitáveis. Talvez reste apenas a possibilidade longínqua de um recomeço, de um estado de esperança capaz de partir outra vez do quilómetro zero a caminho de uma Nova Califórnia. Irá doer e demorará, sem dúvida, correr-se-ão os tais riscos, mas há-de partir porque o mundo não vai acabar aqui. E não será por serem agora três da manhã, por não se ouvir sequer o motor de um carro rasgando a chuva ou o latido distante de um rafeiro, que acredito menos nisso.

                    Atualidade, Devaneios, Música, Olhares

                    Câmara lenta

                    My office

                    Têm sido dias danados, estes últimos. Para a maioria dos portugueses em primeiro lugar. Mas também para o autor deste blogue. Ao estado de tristeza e indignação que partilha com tanta gente, juntou-se uma estirpe de gripe que se prolongou por semanas, associada a muito trabalho acumulado e a alguns reacertos forçados na ordem dos seus dias. Daí este blogue andar outra vez menos movimentado, arrastando-se num estado aparentemente letárgico. Saibam no entanto que é só aparência. Logo que possível, em breve espera-se, A Terceira Noite regressará à normalidade. E mais: prepara uma surpresa para os seus (e as suas) mais indefectíveis cúmplices. Se tudo correr bem e o FMI não nos tramar de vez, lá para Maio perceberão do que se trata. Keep in touch, portanto!

                      Etc., Oficina

                      A sombra

                      a sombra

                      Inteiramente de acordo com o texto do Daniel Oliveira sobre o péssimo gesto e o mau sinal que foi a recusa do PCP e do Bloco de Esquerda a apresentarem-se nas reuniões dos partidos políticos portugueses com a delegação do FMI. Não gasto tinta em argumentos, uma vez que a maior parte do que aqui poderia dizer já ficou dito pelo DO. Como a posição do PCP é coerente com aquilo que o PCP tem desde há muito tempo mantido, resta-me acrescentar, enquanto cidadão que desde a primeira hora considerou o Bloco uma peça imprescindível da democracia portuguesa – e nele tem esperançosa e persistentemente votado –, ter começado a temer que a situação crítica que vivemos tenha em alguns dos seus dirigentes retirado da hibernação os velhos fantasmas do maximalismo kamikaze. Ou isso ou então a Ruptura-FER tomou já o poder e ninguém avisou a malta.

                        Apontamentos, Atualidade, Opinião

                        Disfunções havanezas

                        havanesa

                        Vinte e cinco anos depois, lembra-o hoje o El País, chega a Cuba um plano de reformas económicas semelhante ao imposto em 1986 no Vietname para dar algum fôlego à iniciativa privada, tentando superar as dificuldades determinadas pelo paradigma ultracentralizado e burocrático imposto pelo governo comunista. Por essa altura, já Deng Xiao Ping tinha começado a aplicar esse «socialismo de mercado» que iria transformar a China na superpotência económica, agressiva e cheia de desigualdades sociais, que hoje conhecemos. A receita, principalmente em Pequim, sabe-se bem qual foi: conjugar o pior do «socialismo de «Estado» (a total supressão da liberdade de expressão e de organização, e a repressão brutal de qualquer forma de protesto) com o pior do capitalismo (a exploração desgovernada dos trabalhadores e o crescimento selvagem de uma iniciativa privada protegida pelo Estado, conjugados com a completa proibição da intervenção moderadora dos sindicatos).

                        A diferença, em Cuba, não está assim no modelo, cujos resultados práticos no desenvolvimento dos outros dois «Estados-irmãos» são bem conhecidos. Está em tudo ir ser feito debaixo da orientação das mesmíssimas pessoas que agora apontam erros graves e deformações ao trabalho pelo qual durante mais de meio século foram responsáveis. Não é, pois, difícil presumir que tendo existido liberdade de crítica e pluralidade de opiniões muito mais cedo e com muito menos custos para os cubanos se teria chegado a idênticas conclusões. O que não significa, obviamente, que estas levem a alguma coisa de positivo, para além do que já produziram na China: um acentuar dramático das desigualdades, um crescente alheamento das responsabilidades sociais do Estado e uma sofisticação da repressão política. Cuba não precisa de continuar a afinar os velhos motores, mas sim de máquinas novas. Não precisa de uma operação de cosmética, de «corrigir disfunções», mas antes de uma vaga de liberdade e de mudança na qual todos os cubanos, sem quaisquer reservas, possam participar.

                          Atualidade, Olhares, Opinião

                          Cavalgada | Os livros que sublinhei, 2

                          cavalaria vermelha

                          Retomo a série de livros deixados para trás e que num destes finais de semana recuperei do silêncio. Volto aos sublinhados a lápis e dou de frente com um outro eu (ainda assim, lá muito no fundo e limpando bem a poeira, provavelmente o mesmo).

                          Alexandre Serafimovitch, A Torrente de Ferro [Edições Maria da Fonte, 1977]

                          Acreditava que, dada a data da edição portuguesa, já me teria chegado no refluxo da crença total num modelo finalista de evolução da humanidade e na dimensão redentora da Revolução de Outubro. Mas afinal parece que este romance-panfleto, publicado pela primeira vez em 1924 por A. Serafimovitch (1863-1946), um antigo cossaco reconvertido em jornalista e escritor que o regime soviético elevou aos limites da fama e das honras públicas, ainda tocava uma qualquer corda sensível.

                          «Os homens transmitem uns aos outros, palavras, fragmentos de frases tomadas aos oradores, sem saber muito bem o que dizem, mas sentindo que, separados do mundo pelas estepes imensas, pelas montanhas intransponíveis, pelos bosques espessos e obscuros, realizaram, na parte modesta que lhes cabia, o mesmo que se executava na Rússia, aos olhos do mundo inteiro, sem qualquer ajuda. Realizaram-no eles, sozinhos. Não o compreendem bem. Sentem-no e não sabem exprimi-lo.

                          Os oradores sucederam-se e falaram até sobrevir o azul do crepúsculo. Gradativamente, crescia em todos um sentimento de felicidade impossível de conter: o sentimento do vínculo novo que os unia com aquela imensidão tão conhecida e tão ignorada de todos, que se chama a Rússia dos Sovietes.»

                            Memória, Olhares

                            Fuga para a frente

                            fuga para a frente

                            Quando o horizonte se estreita e a vida se complica ao extremo, é fácil perdermos a paciência. Diante da crise social que se adensa e da ausência de perspectivas, a tentação de correr para a frente, vendo inimigos em todo o lado que não seja o nosso e esquecendo os princípios elementares da civilidade democrática, começa a fazer-se notar de forma preocupante. Vive-se uma realidade inaceitável, que tem os seus responsáveis e as suas vítimas, crescendo a tendência para que uns e outros se organizem em campos opostos. A velha luta de classes parece voltar a calçar as botas e a meter-se ao caminho, enquanto aumenta a distância entre os que entendem que o mal está no excesso de direitos e aqueles que lutam para evitar perdê-los.

                            Entre alguns destes corre então, de novo, a presunção de que só uma deriva radical pode reverter o curso dos acontecimentos, pensando de novo em Revoluções redentoras a caminho de outros «amanhãs que cantam». Embora ninguém saiba como despertá-los e menos ainda o que fazer com eles. A noção legítima, necessária, de que outra política é necessária, de que outro mundo é imprescindível, é então devorada por devaneios colectivos que confundem mudança com salvação. Pelo meio, a vida verdadeira, a das pessoas que não sonham com estandartes a adejar ao vento mas sim com uma vida digna, pacífica e livre numa sociedade solidária, é ignorada em nome de um retorno à luta de opostos. Esquecendo uns quantos que, tal como a história do século XX se encheu de provar, nenhum regime perfeito pode ser construído sobre a penúria e a terra queimada.

                            Aquilo que estamos a viver obriga-nos a repensar o futuro e os modelos, sem dúvida, mas também nos desafia a olhar a realidade e a procurar soluções. Por isso, na situação actual, recusar discutir com o poder questões das quais pode depender a sobrevivência das pessoas só porque se coloca à cabeça a impossibilidade de ouvir aquilo que o governo que irá negociar com o FMI tem para dizer – como fizeram hoje os dois partidos parlamentares à esquerda do PS – contribui para as deixar indefesas. Pode ser muito bom para multiplicar o descontentamento e capitalizar o devaneio de uma mudança que «tudo resolverá», mas é duvidoso que traga benefícios eleitorais e de certeza que não ajuda ninguém a sobreviver no meio da tormenta. É preciso ousadia, sim, e luta também, mas algum realismo pelo meio dará jeito. A fuga para a frente não serve para outra coisa que não seja para fornecer oxigénio, escasso oxigénio, a essas «teorias e conceitos» que, como escreveu certa vez Hannah Arendt, de pouco servem em tempos sombrios.

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                              Música e R E V O L U Ç Ã O

                              volume

                              Uma amiga criou no Facebook um grupo aberto chamado (Banda Sonora para) Uma R E V O L U Ç Ã O – assim mesmo, com espaço, para deixar a palavra respirar melhor – e inscreveu-me como membro. Ao contrário de Julius «Groucho» Henry, o meu Marx favorito, não tenho problemas em que me inscrevam como sócio de um grupo que me queira como tal, e por isso deixei-me ficar. Ocorreu ao final da tarde deste domingo, e poucos minutos depois a respectiva página continha dezenas de clips de canções de alguma forma conotadas com formas de intervenção cívica mediadas pela música popular. Poucas horas passadas, eram já centenas, com uma aparente tendência para o crescimento exponencial. Misturam-se os estilos, as línguas, as intenções, os slogans, os recados poéticos, pedaços de agitprop chegados de diferentes tempos, tudo unido pela ideia-fixa de que «a cantiga é uma arma». Combinam-se também os participantes, pessoas muito diferentes, de distintas gerações, percursos discordantes ou mesmo divergentes, perfis que por vezes parecem afastá-las. Mas é por isso mesmo, por causa desta diversidade, aproximada apenas por esse enorme sombreiro maternal que se chama (ainda) Esquerda, que não deixa de impressionar a coincidência de sensibilidades, de gostos e de memórias. Mesmo sem se simpatizar com a unidade à força – pessoalmente prefiro a ideia de proximidade na acção, que aceita e valoriza a diferença – dá para perceber de que forma, afinal, tantas vezes zangados dentro do seu próprio casulo sectário, tantos/as partilharam e continuam a partilhar devaneios semelhantes, indignações contíguas, um património musical, talvez uma noção imaterial de R E V O L U Ç Ã O, a ele unida, construída colectivamente como uma necessidade.  Se isto leva a alguma coisa, isso não sei. É assim e tenho a impressão que ainda bem.

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                                Vermelho ondulante

                                vermelho

                                Nas circunstâncias dramáticas que estamos a viver, torna-se necessária uma tentativa de concertação de estratégias que ponham em marcha a resistência à ditadura canibal dos mercados e à política de sonegação de uma vida decente para a esmagadora maioria dos cidadãos. Neste sentido, faz todo o sentido que o Bloco de Esquerda e o PCP se tenham reunido, e se venham até a encontrar mais vezes, para acertarem estratégias comuns. Em nome dos problemas reais, inadiáveis, que nos estão a cair aos pés e com os quais ambos os partidos se preocupam. Acordos pós-eleitorais podem, sem dúvida, ajudar a construir uma resistência mais forte e audível à piratagem que se aproxima das nossas costas, ajudando também, essa será sempre a esperança, a parte não malsã do PS a assumir uma atitude corajosa e anti-capitulacionista, empurrando o lixo aparelhístico para o vão de escada de onde jamais deveria ter saído. Nesta medida, parece-me exagerada a posição de votantes e até de militantes do Bloco a quem já ouvi dizer que preferem abster-se, ou mesmo votar PS, a darem qualquer aval a uma aliança com o PCP. Aquilo que tenho dito a estas pessoas é que não me parece que tal aliança seja crível, embora aproximações pontuais possam e devam acontecer. (mais…)

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