Quando o horizonte se estreita e a vida se complica ao extremo, é fácil perdermos a paciência. Diante da crise social que se adensa e da ausência de perspectivas, a tentação de correr para a frente, vendo inimigos em todo o lado que não seja o nosso e esquecendo os princípios elementares da civilidade democrática, começa a fazer-se notar de forma preocupante. Vive-se uma realidade inaceitável, que tem os seus responsáveis e as suas vítimas, crescendo a tendência para que uns e outros se organizem em campos opostos. A velha luta de classes parece voltar a calçar as botas e a meter-se ao caminho, enquanto aumenta a distância entre os que entendem que o mal está no excesso de direitos e aqueles que lutam para evitar perdê-los.
Entre alguns destes corre então, de novo, a presunção de que só uma deriva radical pode reverter o curso dos acontecimentos, pensando de novo em Revoluções redentoras a caminho de outros «amanhãs que cantam». Embora ninguém saiba como despertá-los e menos ainda o que fazer com eles. A noção legítima, necessária, de que outra política é necessária, de que outro mundo é imprescindível, é então devorada por devaneios colectivos que confundem mudança com salvação. Pelo meio, a vida verdadeira, a das pessoas que não sonham com estandartes a adejar ao vento mas sim com uma vida digna, pacífica e livre numa sociedade solidária, é ignorada em nome de um retorno à luta de opostos. Esquecendo uns quantos que, tal como a história do século XX se encheu de provar, nenhum regime perfeito pode ser construído sobre a penúria e a terra queimada.
Aquilo que estamos a viver obriga-nos a repensar o futuro e os modelos, sem dúvida, mas também nos desafia a olhar a realidade e a procurar soluções. Por isso, na situação actual, recusar discutir com o poder questões das quais pode depender a sobrevivência das pessoas só porque se coloca à cabeça a impossibilidade de ouvir aquilo que o governo que irá negociar com o FMI tem para dizer – como fizeram hoje os dois partidos parlamentares à esquerda do PS – contribui para as deixar indefesas. Pode ser muito bom para multiplicar o descontentamento e capitalizar o devaneio de uma mudança que «tudo resolverá», mas é duvidoso que traga benefícios eleitorais e de certeza que não ajuda ninguém a sobreviver no meio da tormenta. É preciso ousadia, sim, e luta também, mas algum realismo pelo meio dará jeito. A fuga para a frente não serve para outra coisa que não seja para fornecer oxigénio, escasso oxigénio, a essas «teorias e conceitos» que, como escreveu certa vez Hannah Arendt, de pouco servem em tempos sombrios.