Os dados estão lançados

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À hora a que termino estas linhas deve ter acabado já o encontro aberto do Fórum Manifesto destinado a debater o passado recente e o futuro do Bloco de Esquerda. Sou um daqueles seus votantes e/ou simpatizantes – com a presunção de aqui pertencer a uma maioria – que não fora a presença forte desta corrente muito dificilmente se teria conservado nessa qualidade por mais de uma década a fio. O reconhecimento desta proximidade acaba, aliás, de ser confirmado pelo documento que serviu de ponto de partida para o debate de hoje, uma vez que me revejo no essencial da sua análise da actuação recente, das debilidades, das forças e das necessidades imediatas do partido. Discordo de pouca coisa, anotando apenas a falta de uns quantos temas que me parecem decisivos, entendendo essa ausência como motivada pelo desejo de «unir em vez de dividir». Mas como sou daqueles que reconhece também a necessidade de, em alguns momentos, «dividir para unir», ou mesmo «para reinar», aqui fica, embora a destempo, o meu pequeno contributo.

O documento-base para projectar a discussão integra algumas ideias absolutamente fundadas e elementares que destaco: «apenas se devem recusar as explicações que desresponsabilizam», «recusamos qualquer leitura que despreze os sinais dados pelos eleitores, criando uma falsa dicotomia entre luta social e luta institucional, entre a rua e as urnas, entre o protesto e a representação parlamentar», «assumimos a defesa do Estado Social e do modelo constitucional democrático como eixos de convergência fundamentais, num tempo em que um e outro se encontram sob ataque e em vários domínios sob risco», «o Bloco sofre ainda do peso excessivo das correntes fundadoras na vida do partido», «a renovação da equipa dirigente apresenta-se como um processo inevitável e inexorável», «nascemos para contrariar um bloqueio à esquerda, marcado por um PS desistente das alternativas e tantas vezes protagonista da agenda neoliberal, e um PCP fechado numa perspectiva estritamente resistente», «não desistimos da construção da “esquerda grande”, por difíceis que tenham sido os primeiros ensaios», «é fundamental iniciarmos um outro [ciclo] na nossa vida interna, começando por estimular uma mais activa  participação democrática dos aderentes na vida do partido». Excluo apenas, por passar um pouco ao lado dos aspectos que aqui quero sublinhar, a também importante argumentação sobre as razões práticas da debilidade orgânica do partido.

Aceitando o essencial da crítica, passo então a adiantar aspectos que me parecem tratados de forma débil ou que, apesar da sua importância, estão praticamente ausentes do documento (ainda que implícitos, o que não basta):

– Não vivemos em tempo de modelos de sociedade colocados no horizonte utópico dos nossos desejos. Sabemos que na história do socialismo essa pulsão conduziu a dramas e a erros colossais, mas não deve ser por causa disso que uma ideia de esquerda se deve refugiar num estrito pragmatismo, passando para segundo plano ou omitindo, se o problema do poder está de facto na sua agenda (e julgo que deverá estar), aquilo que conta fazer com ele;

– Tenho fortes dúvidas sobre se o fim das correntes dentro do Bloco (a «descorrentização», eis um neologismo escusado!) é o melhor caminho nesta precisa altura marcada por um debate acesso. Estou até convencido de que foi justamente a «correntização» do Fórum Manifesto que lhe deu a capacidade de intervenção e de que a sua diluição pode dar força ao que resta das correntes originais, que habituadas de há longo tempo a trabalhar nos bastidores não precisam de uma definição formal para procurarem impor, numa dinâmica de extremo activismo, os seus pontos de vista minoritários. Como numa partida de futebol, jogar à defesa é sempre o princípio da derrota;

– Parece-me uma vez mais um erro criticar o PCP apenas pelo seu sectarismo e carácter de exclusivo «partido de protesto» sem definir claramente que, ao contrário, o Bloco tem no seu horizonte ser «partido de poder». E também sem deixar claro que os malefícios do PCP derivam da sua definição estruturalmente sectária, arrogante e dirigista, associada à defesa persistente de modelos de sociedade antidemocráticos (sobre os quais o próprio PCP deverá repensar-se, embora não seja essa, obviamente, uma competência do Bloco);

– Não se define claramente a posição europeísta e de nítida identificação dessa «esquerda grande» que permitirá ao Bloco erguer-se como factor de desenvolvimento integrado do país e da Europa e como motor de uma política de alianças assente no diálogo e numa política de negociação com outras forças (incluindo-se nestas, nas condições da sua própria evolução, o PS e o PCP);

– Não se insiste claramente no facto de uma política de esquerda se construir muito mais sobre factores de justiça (social e internacional), do que sobre posições de princípio, muitas vezes de uma natureza dogmática, que têm feito, inúmeras vezes, com que a política de solidariedade – em termos de política interna mas também ao nível das relações internacionais e dos problemas da paz e da guerra – caminhe no sentido de uma injusta «justiça selectiva», com posições erradamente apriorísticas sobre quem são os bons e os maus;

– Está presente neste documento, mas julgo que merece ser enfatizada, a articulação de uma política de intervenção democrática no quadro legal com a adopção de uma clara e ininterrupta política de causas, incluindo-se nestas as mais difíceis e dificilmente consensualizáveis. Uma política dentro da qual, como ultimamente tem acontecido, estas não continuem a ser menosprezadas em função daquelas sobre as quais é mais fácil obter a unanimidade.

Claro que ce n’est qu’un début, isto é só um princípio. Todavia, os dados estão lançados…

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