Brinquinho madeirense

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De vez em quando é necessário escrever sobre temas que nada trazem de novo, que apenas relembram verdades conhecidas, limitando-se a dizer o óbvio e a fazer ecoar o que já todos sabem. Este post vai ser assim, pois vai falar da Madeira e de Alberto João Jardim, assunto sobre o qual já se disse e já se escreveu tanto que se tornou real e virtualmente impossível inovar grande coisa. Além disso, episódio algum pode surpreender e criar uma situação sobre a qual poderemos lançar um novo olhar, pois nada do que possa ocorrer espantará quem não tenha acordado agora de um coma prolongado ou chegado de uma estadia em Marte.

Li e concordo parcialmente com um post do Daniel Oliveira saído no Arrastão («Responsabilizar criminalmente Jardim pela dívida é desresponsabilizar a democracia»). Penso também que a situação madeirense não é da responsabilidade única da clique partidária instalada na ilha ou dos seus mansos patronos (e patrocinadores) de Lisboa, implicando igualmente uma legitimidade democrática que corresponsabiliza a larga maioria do eleitorado regional. Aceito ainda que em determinadas circunstâncias – e muito em particular nas atuais – reeleger o arruaceiro da Quinta Vigia converte os eleitores da Madeira em «cúmplices de um crime.» Que face aos dados esmagadores dos quais dispomos agora, confirmar nas urnas a continuidade do primeiro responsável pela prática continuada de um crime público altamente doloso é partilhar com ele a responsabilidade pelos seus atos e pelas pesadas consequências que transportam consigo.

Só que, em parte porque conheço razoavelmente a Madeira e observo os madeirenses para além do que o fazem os continentais-«cubanos» vulgares de Lineu – nos últimos trinta anos, por razões familiares, tenho conservado uma intensa ligação à ilha que me permite ter dela e dos seus habitantes uma mais completa perspetiva de insider –, tenho uma perceção particularmente aguda do modo como as condições objetivas em que decorre a vida social e política do arquipélago impossibilitam a compreensão, pela larga maioria dos seus moradores, desse grau de gravidade e de cumplicidade. As razões são múltiplas e por isso limito-me a anotar as mais óbvias.

– Devido ao apertado controlo económico e político dos meios de comunicação, a maioria dos cidadãos não está realmente informada sobre a realidade dos factos que no Continente e na Europa se têm vindo a tornar de domínio público. A Internet e a televisão por cabo escapam ao controlo, é verdade, mas têm uma penetração socialmente muito reduzida na ilha, e mesmo um jornal considerado de oposição, como o Diário de Notícias do Funchal, tem sido parco em informações e relativamente moderado na abordagem crítica e analítica do assunto da dívida;

– A quantidade de famílias com elementos cujo emprego depende direta ou indiretamente do Governo Regional é enorme. Ao mesmo tempo, sabendo-se que não existe no arquipélago uma única atividade industrial ou agrícola de dimensão razoável criadora de riqueza e de emprego – para além de uma “indústria do turismo” que se tem vindo a degradar e a banalizar à medida que se vai massificando –, acaba por tornar-se vital para muitíssimos madeirenses a conservação do statu quo fantasioso e protetor no qual se habituaram a viver;

– Nestas condições, e graças também ao regime de partido único «de facto» que tem dominado a região nos últimos 35 anos, a rede clientelar é extensíssima, tentacular e absolutamente vital para a sobrevivência material de um grande número de pessoas, dentro ou fora da idade para elegerem ou serem eleitas;

– A maioria dos madeirenses habituou-se de há muito a benesses sociais ou contratuais oferecidas ou promovidas pelo governo local que colocam o seu nível médio de vida muito acima do experimentado pela generalidade dos portugueses. A observação empírica do parque automóvel madeirense e do nível e amplitude da construção civil são aliás bem ilustrativos deste aspeto;

– A «obra feita» – estradas modernas e impecáveis, viadutos sobre viadutos, túneis prodigiosos que furam a montanha, centros de saúde bem equipados, escolas novas ou renovadas, arrojado arranjo urbanístico dos centros das cidades e das vilas, apoio social em diversas áreas – é real, visível, e, para a maioria esmagadora dos cidadãos, «obra do Alberto João». Por isso, que o folclórico inauguracionismo jardinista esteja acima das suas posses e contrarie a experiência dos outros portugueses não é assunto capaz de comover e de  interessar particularmente o eleitorado local;

– O nível geral de politização dos cidadãos é dos mais baixos do país, dada a desconsideração social do debate político, observado como coisa «dos senhores lá do continente» que visivelmente «não têm mais nada que fazer», e o já referido controlo informal da informação e da opinião. É habitualmente mal visto «discutir política» e muitas vezes sente-se uma coação ao nível da liberdade de expressão como em mais lado algum de Portugal é possível experimentar. Ninguém é preso por discordar, por procurar debater, obviamente, mas é objeto de desconfiança e de cerco na vida social ou no local de trabalho;

– A oposição tem-se conservado geralmente frágil, pouco coesa e pouco consequente, e, no caso do PS, principal partido da oposição, incapaz de apresentar uma alternativa credível e muitas vezes permeável à própria teia de influência e à rede clientelar-empregadora do partido do governo;

– O discurso populista e «anticolonialista» ainda colhe, sobretudo junto de cidadãos com uma formação política débil e que, na maioria dos casos, jamais conheceram outro universo físico que não o madeirense. É fácil, nestas condições, apresentar toda a crítica vinda dos lados do Portugal europeu como de índole colonialista, e todos os reparos feitos a partir do interior como modalidades de traição. Uma estratégia de vitimização que, como é sabido, os regimes autoritários utilizam sempre para explicarem as suas dificuldades. No caso em apreço, serve também para ampliar a intervenção chantagista junto do governo de Lisboa;

– Receosos e, eles sim, totalmente cúmplices, os políticos nacionais dos partidos do arco do governo, têm sido, na prática, coniventes com uma situação desde há muito tempo notória e documentada, reduzindo as críticas a tímidos balbucios e, principalmente, evitando tomar medidas objetivas, forçosamente incómodas e impopulares na região, que reponham a democracia no seu caminho e criem uma situação equilibrada e de justiça relativa em relação ao todo nacional.

Nestas condições de despolitização, de desproteção e de dependência, de uma manipulação que nem sequer se esforça por parecer subtil, é muito difícil responsabilizar o madeirense comum pela concessão de um aval político cuja dimensão a maioria não está ainda em condições de aquilatar. Por isso, nas eleições regionais a decorrer, ela irá dar de novo a vitória, com uma expressão provavelmente absoluta, ao PSD «do Alberto João». Se me enganar darei pulos de alegria, garanto. Ficarei a gostar mais ainda da bela ilha que de vez em quando me acolhe, e da maioria de gente boa e honesta, grande parte dela integrante do eleitorado laranja, que a habita.

Como prometido no início deste post, fica pois reforçado o óbvio.

    Atualidade, Opinião.