Arquivos Mensais: Outubro 2011

Papéis Roubados #10

Henri Cartier-Bresson - «Roma» (1957)

Logo no início de O Chalet da Memória, acabado de sair nas Edições 70, Tony Judt evoca as formas e os ritmos da austeridade vivida na Inglaterra do imediato pós-Segunda Grande Guerra. Aqui fica, no original em inglês, o capítulo «Austerity», mencionado no post anterior – que procura situar historicamente a defesa de uma certa frugalidade não consumista defendida por Judt – e publicado num número da New York Review of Books saído em Maio de 2010. A atualidade do tema, e logo o seu interesse, parecem evidentes.

My wife earnestly instructs Chinese restaurants to deliver in cardboard cartons. My children are depressingly knowledgeable about climate change. Ours is an environmental family: by their standards, I am a prelapsarian relic from the age of ecological innocence. But who traipses through the apartment switching off lights and checking for leaking faucets? Who favors make-do-and-mend in an era of instant replacement? Who recycles leftovers and carefully preserves old wrapping paper? My sons nudge their friends: Dad grew up in poverty. Not at all, I correct them: I grew up in austerity.

After the war everything was in short supply. Churchill had mortgaged Great Britain and bankrupted the Treasury in order to defeat Hitler. Clothes were rationed until 1949, cheap and simple “utility furniture” until 1952, food until 1954. The rules were briefly suspended for the coronation of Elizabeth, in June 1953: everyone was allowed one extra pound of sugar and four ounces of margarine. But this exercise in supererogatory generosity served only to underscore the dreary regime of daily life.

To a child, rationing was part of the natural order. Indeed, long after the practice ceased, my mother convinced me that “sweets” (candy) were still restricted. When I protested that school friends appeared to have unlimited access to the stuff, she explained disapprovingly that their parents must be on the black market. Her story was all the more credible because the legacy of war was ever-present. London was pockmarked with bomb sites: where once there had been houses, streets, railway yards, or warehouses there were now large roped-off areas of dirt, usually with a dip in the middle where the bomb had fallen. By the early 1950s unexploded ordnance had been mostly cleared and bomb sites—though off-limits—were no longer dangerous. But these impromptu play spaces were irresistible for small boys. (mais…)

    Memória, Recortes

    Um ideal abandonado

    Thomas MannÉ provável que passe despercebida nas livrarias, ou que apenas congregue o interesse de um pequeníssimo número leitores, uma obra de Rob Riemen chamada Nobreza de Espírito, um ideal esquecido (ed. Bizâncio). O título faz ressoar a defesa de um conceito presumivelmente gasto e fora de moda. O que até nem será de admirar se tivermos em conta que este ensaísta e filósofo holandês define como assumida inspiração para o seu trabalho a vida e a obra de Thomas Mann. E em 1955, quando desapareceu, Mann era já um homem de «outra época», que na derradeira palestra pública, «Os Anos da Minha Vida», decidira, contra a tendência que já se formava no horizonte, falar do ser humano como criatura una na diversidade, capaz de moldar o tempo e viver a vida cultivando-os, de forma autónoma, num sentido globalmente comum e forçosamente partilhado.

    Mas ainda que possa corresponder a um ideal abandonado, seja o que for que possamos tomar por «nobreza de espírito» trata-se de algo, de uma escolha, de uma experiência, que apenas está ao alcance dos humanos. Irremediavelmente associada à fidelidade tenaz, necessariamente difícil porque requer coragem, a fatores que «nobilitam» – como verdade, liberdade, justiça e razão enunciados sem aspas – e, por isso mesmo, posta em causa sempre que se considera que valor algum tem uma dimensão universal, podendo caber, ainda que naturalmente adaptado a diferentes circunstâncias e distintas realidades, em qualquer tempo ou lugar. A relativização de todos os princípios e de todos os códigos, hoje imperante em muitas áreas do pensamento político, do saber científico, das práticas sociais ou do relacionamento entre os povos, tem feito desaparecer a afirmação de princípios gerais de entendimento, capazes de dotarem o humano de um sentido partilhado, solidário, que todos possam reconhecer e que a todos possa aproximar. Promovendo, de forma subtil mas contínua, um retorno histórico à sensibilidade pré-humanista, autárcica e anti-universalista que mergulha fundo na obscuridade medieval. Um ar do tempo que, no entanto, pode ser contrariado. O primeiro passo para o conseguir passará por uma compreensão das potencialidades da alternativa. Uma tarefa na qual, com este livro a contracorrente, Riemen procura participar.

    Versão revista de um texto publicado na revista LER de Outubro de 2011.

      Atualidade, Olhares

      O (mau) exemplo dos seniores

      A utilidade das movimentações de caráter desordenado, por vezes politicamente pueril, sem objetivos precisos ou uma capacidade de mobilização sustentada, é infinitamente superior à inação dos que se limitam ao lamento. Dos que esperam em vão que do céu caia uma dose de bom senso capaz de afetar quem realmente decide. Ou dos que só pensam agir quando «todas as condições» estiverem reunidas. Do editorial de João Garcia no último número da edição portuguesa do Courrier International.

      Os «à rasca», os «indignados», os «99%» são movimentos confusos e difíceis de perceber – é verdade. Tanto repudiam os grandes patrões como homenageiam Steve Jobs. Como bem refere Heinz Bude, do Die Zeit, nas críticas ao sistema não vão mais longe do que proclamar que «o sistema é bom, mas perdeu significado: a economia tem de estar ao serviço das pessoas e não da finança». Mas reduzi-los a rebeldes urbanos, desprezar estes movimentos por falta de objetivos e ideologia é, uma vez mais, olhar para a árvore e não querer ver a floresta. Afinal, se os seniores não sabem para onde levam o mundo, o que se pode pedir aos juniores?

        Atualidade, Recortes

        Uma fotocopiadora, uma cela

        Um estudo a correr no ISCTE, do qual acabam de ser reveladas algumas conclusões preliminares, aponta para a existência em Portugal de 500 postos de venda de livros fotocopiados. Refere-se apenas, muito provavelmente, a unidades comerciais que admitem como normal este tipo de prática, uma vez que serão em muito maior número as fotocopiadoras privadas ou em funcionamento em instituições de investigação e de ensino que, sem o admitirem, fazem diariamente cópias de livros, artigos ou capítulos de obras. Um dos responsáveis pelo estudo fala entretanto de um «efeito pernicioso no mercado». O resultado previsível da sua publicitação será com toda a probabilidade o reforço das medidas policiais e penais aplicadas em reprimir este género de prática. Mas as consequências sociais e culturais desta atitude serão devastadoras para a expansão do conhecimento e para a sustentação dos hábitos de leitura.

        Mesmo entre aqueles portugueses que deveriam fazer da leitura o centro da sua vida ativa, sabe-se que ler não será uma prioridade para um grande número, mas a verdade é que a falta de investimento na aquisição de títulos pela maioria das bibliotecas, levando muitas vezes à inexistência sistemática de edições recentes e à presença de um só exemplar de cada título – ao que pode juntar-se a inexistência de uma política de stocks e de preços acessíveis nas livrarias – faz com que sem o recurso à fotocópia se torne rigorosamente impossível para a maioria aceder a obras indispensáveis para o padrão de atividade a que se dedicam. Os principais afetados serão, naturalmente, os estudantes, os professores e os investigadores. Ou os amantes de obras e de leituras raras. Dito de outra forma: sem livros fotocopiados, não existirão livros atualizados disponíveis para as necessidades. A solução que tenha em conta os interesses de editores, autores, livreiros e consumidores só pode passar por medidas equilibradas que atendam às necessidades de todos e por uma política do livro ágil, justa e democrática. Não pelo policiamento das fotocopiadoras e pelo decretar da miséria dos leitores.

          Apontamentos, Atualidade

          How I Learned to Stop Worrying

          Peter Sellers

          Um grupo de técnicos de uma unidade industrial de Amarillo, Texas, dependente da National Nuclear Security Administration, acaba de concluir o desmantelamento daquele que o governo norte-americano afirma ter sido o último exemplar da B-53. O objeto não era de todo inofensivo, uma vez que continuava a ser considerado a bomba termonuclear mais poderosa do mundo, seiscentas vezes mais potente do que a lançada sobre Hiroxima em 1945. Esta arma assustadora fora um produto demencial da fase mais quente da Guerra Fria, e tinha sido concluído de forma acelerada, no início dos anos sessenta, na altura da Crise dos Mísseis de Cuba. A B-53, carinhosamente apelidada de Big Dog pelos militares que a haviam concebido com o objetivo de exterminar parte da humanidade, destinara-se a ser lançada de bombardeiros estratégicos de longo alcance B-52. Era capaz de rebentar com bunkers e de enviar ondas de energia através do solo semelhantes às dos sismos, fazendo desaparecer grupos de cidades ou países inteiros, e desimpedindo de vez o uso dos botões vermelhos da Casa Branca e do Kremlin. Despoletando então a batalha final, o dia antes do «day after», o fim dos tempos, esse Armagedão que, com forte sentido de realismo, Stanley Kubrick desenhou em 1964 na sequência derradeira do filme Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb (em Portugal Dr. Estranho Amor ou: Como Aprender A Deixar De Me Preocupar E A Amar A Bomba). No entanto, este gesto simbólico da administração americana não parece suscitar agora qualquer sentimento de alegria, alívio ou segurança, surgindo nas notícias como uma simples curiosidade. Na realidade, todos sabemos que a indústria da guerra foi entretanto inventando outros meios menos espetaculares, menos definitivos, mas mais insidiosos e eficazes de gestão do medo e do poder. Por isso este objeto estrondoso pode muito bem ser abatido sem danos de maior para a atual ordem do mundo.

            Apontamentos, Cinema, Memória, Olhares

            Trabalho de casa

            Há alguns dias deixei no meu mural do Facebook uma ligação para um post de J. Rentes de Carvalho publicado no Tempo Contado. A propósito da atual crise e da necessidade de muitos portugueses de classe média cortarem nas despesas correntes, referia-se aí o recurso imoderado aos serviços das chamadas mulheres-a-dias como sinal de um certo desperdício e de menosprezo pelo trabalho manual recorrente entre muitos de nós. A partir desse texto, abriu-se então uma conversa que divergiu em algumas direções: a necessidade ou o direito a fruir de trabalho manual pago, a relação entre esse tipo de serviço e o complexo horário de trabalho de quem a ele recorre, ou o modo como ele é importante para a economia doméstica das pessoas que dele fazem o seu meio de vida. No entanto, talvez tenha passado um pouco ao lado da discussão aquela que me pareceu ser a intenção do autor e a razão pela qual chamei a atenção para o que ele escrevera no seu blogue. Sublinho: a desvalorização do trabalho manual que afasta do horizonte de muita gente a simples possibilidade de sacudir uma passadeira, de cozinhar o seu próprio almoço ou de limpar o quarto de banho que sujou.

            O tema é tanto mais pertinente quanto se sabe que no norte da Europa – objetivamente mais rico, com mais pessoas de vida desafogada – esse tipo de serviço é usado apenas em situações especiais, não diria raríssimas mas bastante limitadas. Além disso, trata-se por ali de um serviço muito bem pago. No seu post, o escritor invocava o caso holandês e a influência da ética calvinista, que conhece diretamente, mas poderíamos alargá-lo a outros exemplos e tradições. Ao seu comentário, que não será indiscutível mas no essencial faz para mim todo o sentido, posso entretanto juntar um outro. O costume da casa burguesa arrumada todos os dias, com tudo no seu lugar, os metais a brilhar e o ambiente a cheirar a limpeza recente, é típico das classes média e alta do sul da Europa. Um estudo sociológico recente que me foi relatado – não tenho a referência completa mas a pessoa que me falou dele merece confiança – refere a forma como essa obsessão cultural pela limpeza irrepreensível é responsável até pelo agravamento, em alguns países, das condições de trabalho das chamadas donas de casa, por sua causa forçadas a uma sobrecarga de trabalho. É possível cartografar esta situação: Portugal, a Espanha, o sul de França, a Itália. A ética católica será aqui irrelevante, uma vez que a Irlanda não participa deste culto do detergente e do espanador. No norte, de facto, ninguém se incomoda tanto em ter de tirar uma pilha de papéis de cima de uma cadeira para se sentar ou receber as visitas. Ou de ter os brinquedos dos miúdos espalhados pela casa. Ou de reparar em que está um pouco mais de pó sobre o parapeito. Não sei se não teremos de nos adaptar rapidamente a tais hábitos.

              Apontamentos, Atualidade, Democracia, Olhares

              Dois novos romances

              Dois novos romances no mercado português, e por estes lados em fila de leitura, que tomam como argumento, a partir de circunstâncias geográficas e históricas muito diferentes, e com uma dimensão literária também ela desigual, o mesmo tema e o mesmo cenário da transformação do poder despótico, exercido em nome de «grandes causas», num fator incontrolável de horror e de arbitrariedade sobre as pessoas das quais se vai servindo e que vai triturando. Comissão das Lágrimas, de António Lobo Antunes (Dom Quixote), referindo os acontecimentos vividos numa Angola pós-independência em redor do golpe (e do contragolpe) de 27 de maio de 1977, e O Epigrama de Estaline, de Robert Littell (Civilização; original de 2009), sobre o combate sem futuro e o fim trágico do poeta e ensaísta russo Osip Mandesltam, merecem ambos a maior atenção. Nos episódios e circunstâncias históricas mencionados, omnipresente a sombra da cumplicidade e da cobardia dos intelectuais que se traíram a si próprios compactuando com a violência e servindo a tirania. Para desta receberem o respetivo prémio ensopado em sangue.

                Atualidade, Democracia

                Recusar e compreender

                Misrata
                Gente de Misrata

                Três apontamentos ainda a propósito da execução pública de Kadaffi e do filho Mutassim, bem como da repercussão que a divulgação mediática desses momentos tem merecido. São também três dificuldades na leitura de um horror que podemos não aceitar mas teremos de compreender.

                1. Mais chocante até do que a morte medonha do ex-líder líbio parece-me ser a do filho Mutassim. O que mais perturba a nossa sensibilidade é vê-lo, em fotografias e vídeos tomados depois da captura, bebendo água mineral por uma garrafa e fumando serenamente um cigarro. Percebermos que por minutos lhe foi oferecida a expectativa da salvação («pronto, acabou…»), seguindo-se a esta uma execução sumária e sem piedade. Dar e tirar repugnam a nossa consciência de matriz judaico-cristã, onde castigo e perdão são faces da mesma moeda. Mas nem todos pensam e agem como nós. E nem em todos os momentos ela tem validade. Na guerra, aliás, a primeira coisa a ser perdida é sempre a codificação ética aplicada em tempos de paz.

                2. Não tem sido devidamente considerado o facto de o fim horrível de Kadaffi ter chegado às mãos da famosa brigada de choque de Misrata, que jurara apanhá-lo à mão. Misrata, relembre-se, foi a cidade que mais sofreu durante o cerco imposto pelas tropas do ex-ditador, devastada e quase integralmente transformada em escombros, com muitos milhares de mortos, incluindo-se entre estes doentes hospitalizados. Lembrando-nos disto mais facilmente entenderemos a dificuldade do perdão e a tontura da vingança. E a vontade de transportar o corpo para a cidade e de o expor de modo a que as vítimas pudessem olhar de frente o rosto do algoz. Tem milhares de anos e é universal a tradição da decapitação e da exposição entre ao povo vencedor da cabeça do chefe vencido.

                3. Uma vez mais, a NATO, e em consequência «os americanos», estão a ser cegamente apresentados por alguns setores como principais responsáveis morais destes atos brutais e definitivos. É óbvio que esta barbárie filmada – e toda aquela que não pudemos ver – lhes escapou ao controlo e que, apesar de instrumentais no derrube de Kadaffi, teriam todo o interesse em evitá-la. Até pela consabida posição dúbia dos líderes ocidentais perante aquilo que se vinha passando desde há décadas na Líbia. Só quem não se esforce por entender a especificidade e a força dos conceitos de honra e vingança no mundo islâmico, ou os distúrbios potenciados por uma guerra civil, pode escandalizar-se com o que aconteceu no terreno e nas horas decisivas. Para nós lamentável e escusado, sem dúvida, mas para «eles» inevitável como exorcismo.

                  Apontamentos, Atualidade, Olhares

                  Esmagados pelo terror

                  Kazimir Malevich, «A Cavalaria Vermelha» (1928-1932). Em 1929, acusado de «subjectivismo» na imprensa, Malevich foi expulso das funções que ocupava, preso e torturado. Morreu só e na miséria em 1935.

                  Tradução de um artigo de Julia Luzán publicado na secção de arte do El País Semanal de 16 de Outubro de 2011. Sobre a exposição La Caballería Roja. Crea­ción y poder en la Rusia soviética de 1917 a 1945. Se for a Madrid até 8 de janeiro poderá vê-la no Centro Cultural La Casa Encendida. Informação detalhada a obter aqui. E pode clicar aqui para obter o programa em pdf.

                  Outubro de 1917. Ano zero de uma nova era. A revolução russa triunfara e o mundo inteiro assistia, entre o entusiasmado e o teme­roso, ao nascimento de um Estado que saudava um novo tipo de homem, um novo humanismo. Lenine estava no vértice, velando sempre, apesar dos acontecimentos se sucederem a uma velocidade estonteante. Os bolcheviques começavam a escrever a sua parte da História e era necessário dotá-la de sím­bolos, de imagens, de palavras. Os artistas, «engenheiros da alma», como os batizaria Estaline, meteram as mãos à obra enchendo a nova Rússia de ciência, técnica, livros e arte. (mais…)

                    Artes, História

                    Amendoim

                    Muitos portugueses jamais viveram assim pois nasceram e cresceram num tempo de ilusória abundância. Mas quase todos eram pobres, ou então, como se dizia, remediados. A pobreza não era uma situação, era uma condição; não era uma circunstância, mas um estigma. Quem nascesse pobre não tinha outro horizonte que não o da pobreza, se não tivesse a sorte de encontrar um bom padrinho ou de acertar no Totobola. Em aposta simples, pois a múltipla saía cara. Já remediados eram quase todos, seguindo um padrão de vida que no entanto seria hoje o da pobreza. Tinham dinheiro para o essencial, se poupassem muito e não fizessem o que não deviam. Evitar o mais possível os cafés, os cinemas, os passeios e as noitadas, não fazer férias longe de casa ou jogar cartas a dinheiro, eram deveres essenciais para permanecer remediado e não baixar de nível social. Nem mesmo as crianças escapavam ao regime: tinham brinquedos baratos de lata, pano ou madeira, que passavam de geração em geração, compravam rebuçados de meio tostão e na Páscoa tinham um saquinho de amêndoas que deviam partilhar com os irmãos. Num dia especial, conseguiam um cone de caramelo tingido a corante e embrulhado em papel vegetal. Quando cresciam um pouco e começavam a desinteressar-se dos doces, passavam à pevide ou ao amendoim torrado, companhia rotineira de uma laranjada bebida com moderação. Gelados, só os feitos pelas mães. Matraquilhos, só com os escudos contados. E eram filhos de funcionários públicos, de professores primários, de quadros técnicos, de polícias, até de militares de patente baixa. Não eram filhos de operários, camponeses ou empregados de comércio, pois esses nem com tais frivolidades podiam sonhar. Se tudo acontecer como previsto e a sagrada Europa quiser, será a esse tempo que sem as devidas distâncias tornaremos em breve.

                      Apontamentos, Democracia, Música

                      Ninguém mais escreverá ao coronel

                      Um parágrafo sobre o fim de Kadaffi. Toda a morte é lamentável e esta não o é menos. Observada daqui, em imagens horríveis, não deve alegrar ninguém. Já o mesmo não acontecerá, com toda a certeza, com quem viu pais, filhos, irmãos, amigos, presos, torturados e mortos sob o seu regime. E para quem o combateu, nesta fase definitiva, de armas na mão. Na guerra, e principalmente numa guerra civil, é muito difícil o perdão no momento do combate, pois trata-se de matar ou de morrer, e paira no ar um forte odor a vingança. Mas custa a entender que se possa condenar esta morte terrível sem condenar as outras que o morto assinou, só porque andam uns quantos aviões pouco inocentes a cruzar os céus em voo picado. Como custa a entender, lá mais adiante, o silêncio cúmplice diante dos milhares de mortos sírios de Bashar Al-Assad. O futuro agora é complexo, muitas e discordantes são e permanecerão as forças em presença, o petróleo líbio será sempre bastante tentador. A liberdade e a justiça, para os que vivem naquele país de pequenos oásis e um imenso deserto, fazem parte de um caminho longo e sinuoso, com troços intransitáveis, que apenas começou. Tudo está evidentemente por decidir. Teria sido melhor, é verdade, que o ciclo encerrasse de outra maneira. No entanto, assim o quiseram uns e os outros.

                        Apontamentos, Atualidade, Olhares

                        Os fantasmas descem à cidade

                        «No começo não há sangue, os indícios são inofensivos.»
                        (Hans Magnus Enzensberger, Perspectivas da Guerra Civil)

                        A violência de rua está nas primeiras páginas. Em Atenas, Roma ou Madrid, ela emerge como manifesto visível dos protestos dos mais lesados pela crise artificial, rigorosa e prolongada que afeta as sociedades do sul europeu. Em Lisboa – como em Dublin, que não fica a sul mas para lá vai resvalando – o ruído de uma indignação agressiva e da chuva de pedras caindo sobre os escudos da polícia é ainda ténue, resultado provável de uma maior predisposição cultural para a resignação, mas quando o último dos limites for ultrapassado cá chegará também. Não se trata de uma paisagem agradável, embora ela seja provavelmente necessária, ou pelo menos compreensível, uma vez que a ausência de uma resposta forte e sonora apenas acentuaria a condição de impunidade que domina os responsáveis últimos por toda esta situação. Esta não é, no entanto, a pior das violências a temer, uma vez que será sempre episódica e localizada. O mal, o verdadeiro mal, está na diminuição brutal dos direitos que a Europa está a viver e no descrédito da democracia, produzindo todas as condições para que o uso da força seja mostrado como instrumento de salvação e, em consequência, para que comece a moldar-se um futuro sombrio no qual as liberdades serão limitadas e os cidadãos viverão iludidos e humilhados.

                        Aproximam-se então dois cenários ainda há pouco considerados longínquos ou julgados impossíveis, apresentados como hipóteses académicas ou resíduos de um passado que pertencia apenas aos livros de História. O primeiro destes cenários subentende a emergência de um autoritarismo caracteristicamente conservador e de direita, de raiz populista, que apoiado no descontentamento dos cidadãos e no descrédito dos partidos tradicionais, possa tomar o poder através de eleições, destruindo depois o próprio regime, como aconteceu na Alemanha com a República de Weimar. Nada desta figuração se apresenta à vista desarmada, mas qualquer um percebe que, no presente momento, basta que apareça um nome e se reúnam algumas vontades para que a serpente saia do seu ovo. O segundo cenário não é, porém, menos dramático. Ele supõe o crescimento rápido de uma esquerda antiparlamentar, apoiada no entendimento da violência como «parteira da História» e nos velhos princípios do autoritarismo de matriz leninista, estruturalmente defensora da centralização do Estado e da repressão da divergência, observada sempre como «contra-revolucionária». Esta é uma possibilidade que, nas condições presentes, pode também ser imposta pelo voto de protesto anticapitalista da maioria dos cidadãos, de acordo com um panorama ainda há bem pouco tempo considerado delirante mas agora inteiramente plausível.

                        Num e noutro dos casos, é sempre o espetro da força e da coerção, a redução compulsiva do pluralismo e dos direitos individuais, que em nome de urgências maiores, como a necessidade de pão para a boca ou a sobrevivência do Estado-Nação, nos ameaça. Não de longe, mas já aqui, talvez mesmo ao virar da esquina. Estão praticamente reunidas, como dirá a cartilha, as condições subjetivas para que ele apareça à nossa frente. Resta esperar pelas objetivas, que podem não tardar muito. O filme, que parece de terror, está a correr depressa, demasiado depressa.

                          Atualidade, Olhares, Opinião

                          Ódio ao funcionário público

                          O mealheiro

                          No texto anterior falei do medo, neste falo do ódio. Porque neste momento é ele que nos rege. Imposto por pessoas que já não partilharam os conflitos, os debates, as causas e as expectativas que cavaram o fim do regime velho, gente que desde o ninho fundou a sua estreita noção de democracia no menosprezo da solidariedade social. Menosprezo apoiado num padrão de autoridade imposto por um Estado apenas destinado a arbitrar a defesa do interesse individual, a vertigem do poder do dinheiro e da especulação financeira, a exploração desregulada do trabalho assalariado. Não um governo ao serviço do interesse coletivo, da dimensão partilhada da existência e de uma dignidade fundada na justiça e na equidade distribuídas sem outro limite que não o do esforço e do talento de cada um. São pessoas que odeiam em particular, com «ódio de classe» – sempre odiaram mas agora têm pretextos para o mostrarem sem restrições –, a noção de interesse público e, em consequência, a atividade dos milhões que por ele, ao longo de décadas, deram e continuam a dar o melhor do seu esforço. Dos que nele se formaram, para ele convictamente trabalharam, e, tantas vezes, por ele foram perdendo a juventude, o quinhão de felicidade que lhes cabia, até a saúde. O ódio ao funcionário público, o remoque populista ao seu lugar na sociedade, tornou-se assim uma das molas reais do discurso oficial e da capacidade decisória do atual governo. Não tanto no exercício do direito à crítica dos excessos e dos desmandos do funcionalismo – obviamente existentes e que sempre mereceram a censura e a retificação – mas devido à vinculação do padrão de atividade profissional dessas pessoas a uma noção de interesse coletivo, de desenvolvimento comum ou de desígnio nacional, que tais aprendizes de Milton Friedman apenas invocam quando serve os valores do seu universo mesquinho fundado na desigualdade. Mas será possível governar um país odiando, e em consequência humilhando, uma parte tão significativa dos seus cidadãos?

                            Apontamentos, Atualidade, Opinião

                            Unir a luta para mudar de vida

                            Protesto

                            Se excetuarmos os ricos, os néscios, os especuladores e a enfatuada babugem do poder e do sistema partidário que lucra sempre com a gestão da desgraça alheia, todos os portugueses – incluindo por certo os moradores no distrito do Funchal – acordaram hoje em estado de choque com as medidas do próximo Orçamento de Estado divulgadas por Passos Coelho. Não se tratou apenas de um golpe de tenaz sobre o poder de compra e até sobre a mera sobrevivência material da maioria da população, em particular a da outrora chamada classe média, propondo assim matar o doente com base na terapia escolhida. Nem foi só um exercício descarado de inabilidade política, revelando a incapacidade absoluta para apontar uma saída, uma escapatória, um gesto de ousadia capaz de deixar nos cidadãos, pelo menos, a presunção de que aquilo por que vão passar serve para alguma coisa. O discurso de Coelho foi sintomático da incapacidade para encontrar um caminho, ou sequer de conceber uma alternativa a ponderar, por parte de um universo político cobarde e pouco inteligente que só reconhece a administração daquilo que existe, desinteressando-se do caminho que leva ao que pode existir. Dito de outra forma: incapaz de perceber que a negra crise na qual mergulhámos de cabeça é uma crise de sistema, e que a única solução é mudá-lo. Não é deixar que nos afundemos levando connosco o melhor das nossas vidas.

                            Mas a tragédia que estamos a viver não passa apenas pelo facto de quem nos gere ser atavicamente incapaz de outro estímulo que não seja o do pau e o da cenoura açulados por Frau Merkl e os seus cúmplices. Passa também por o setor em condições de criar uma outra possibilidade permanecer desde há largos anos incapaz de a pensar e de a propor, separando o essencial do acessório, com uma maleabilidade tática, uma consistência e uma força política e moral em condições de mobilizar os cidadãos. O protesto, naturalmente, é necessário, incluindo o protesto de rua que é nesta altura o único escutado por quem tem a faca e o queijo na mão. E por isso é importante que as manifestações deste sábado sejam concorridas e vibrantes, ainda que não se concorde integralmente com o discurso político que enforma algumas delas. No entanto, não adianta muito clamar contra a injustiça, bradar contra os ataques aos direitos das pessoas comuns – e não apenas «dos trabalhadores» – se não existe a possibilidade de, em termos práticos, definir uma plataforma de entendimento para a alternativa. Capaz, em consonância com uma forte opinião pública e um movimento social amplo e não-sectário, de apontar para uma saída credível. O pior de tudo, neste momento, não é apenas a aproximação do espetro da miséria e do estilhaçamento brusco da qualidade de vida da maioria dos cidadãos: é a ausência de esperança e do enunciar claro da probabilidade de uma saída. E aqui também os partidos, movimentos e correntes políticas críticos do neoliberalismo e dos seus desmandos têm responsabilidades. Eles têm sido incapazes de criar uma real alternativa, refugiando-se, desde há décadas, na mera política do protesto. Preocupados com a reivindicação e o combate pelo poder, mas não com uma larga convergência de objetivos e a sustentabilidade de um futuro solidário projetado para além do imediato e das fronteiras dos Estados. Ora como só a preparação deste futuro pode abrir uma clareira na floresta cheia de lobos e despenhadeiros na qual andamos às voltas, é tempo de mudarem de estratégia. E com a maior urgência.

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