Democracia e trivialização da maçonaria

Muito antes da atual polémica pública se instalar, ocorreu-me uma ou outra vez escrever sobre a maçonaria, os seus caminhos, atalhos, desvarios e remanescentes sinais da antiga e agora decaída grandeza. Ao longo dos anos 80 e 90, algum trabalho académico levou-me a encontros laterais mas regulares com a sua história muitas vezes heróica, algumas outras menos edificante, sempre rica em peripécias, escrita no curso dos últimos três séculos. Talvez por isso pudesse ter qualquer coisa de razoável a dizer sobre o assunto. Pareceu-me, no entanto, que muito do que poderia escrever iria acertar em pessoas concretas, algumas conhecidas e aos meus olhos inteiramente respeitáveis, que pertenciam honesta e convictamente à instituição maçónica. Além disso, vivia-se uma época na qual, para além dos cidadãos diretamente envolvidos, apenas os entusiastas das práticas esotéricas se interessavam pelo tema. Entendi por isso, pesando o interesse do caso, que a polémica na qual me iria meter não valeria o esforço. E dessa forma fui adiando o que tinha para dizer sobre esse mundo particular que passou agora, pelos piores motivos, para os grandes títulos da imprensa e dos telejornais. Mas não será ainda desta vez que o farei com detalhe, limitando-me a um curto apontamento.

Não vou repetir o que pode ser encontrado noutros lugares a propósito do papel da instituição no mundo e no Portugal de hoje. José Pacheco Pereira acaba, aliás, de publicar um esclarecedor artigo sobre o tema. Limito-me a sublinhar cinco aspetos que me parecem ignorados por alguns dos muito comentadores e pseudo-especialistas chegados de repente não se sabe de onde. Em primeiro lugar, creio que vale a pena ter em conta que a sua origem iluminista – na vertente «especulativa», proto-jacobina, ou na mais pragmática e conservadora – confere à maçonaria marcas de protagonismo histórico que não podem ou devem ser apagadas. Em segundo lugar, convém lembrar que falamos de um organismo complexo, unido pela característica comum da fraternidade entre pares mas capaz de atitudes sociais e políticas muito diferentes, que têm por vezes produzido fortes clivagens. Em terceiro, será bom sublinhar que o secretismo, associado a códigos e praxes mais ou menos elaborados, teve como objetivo inicial a consolidação da organização face à repressão dos poderes «obscurantistas» que procurava eliminá-la, embora hoje possa ser um fator antidemocrático, com traços deslocados e até algumas marcas de burlesco. Em quarto, é importante frisar que a formação, ao nível do conhecimento «iluminado» e enciclopedista, que presidia à identidade filosófica do maçon, de há muito foi ultrapassada e esquecida, substituída pelo papagueamento de verdades gerais mais assumidas de forma ritualizada, sublinhando a consistência simbólica ao grupo, do que de um modo militante, o que tem proporcionado a entrada de muitas pessoas sem formação cultural e valores de natureza ética compatíveis com a matriz da organização. Por último, em quinto lugar, é preciso reconhecer que existe ainda um bom número de maçons que o é de forma honesta, convicta e nobre, sem grande perceção do caráter deslocado da maioria dos valores fundadores da organização, da acentuada trivialização da sua identidade, e dos perigos que agora esta pode comportar para a própria sociedade democrática que um dia ajudou a fundar. Se tivermos em conta estes aspetos e evitarmos concentrar a análise nos episódios e nos pormenores, talvez cheguemos a um ponto no qual se possa compreender verdadeiramente a maçonaria, vendo que o mal não está nos seus princípios e nos seus rituais, por muito fora de moda que possam estar, mas sim em quem se serve deles, à margem da democracia ou da lei, para obter dinheiro, posição e poder.

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