Duas ou três coisas que eu sei sobre manifes

Fotografia: Patrícia de Melo Moreira/AFP

Depois de uma época na qual fui ativista profissional, a certa altura quase deixei de participar em manifestações de rua. As razões podem reduzir-se a três, sendo as duas iniciais com toda a certeza partilhadas. A primeira teve a ver com o recuo das causas durante os anos 80 e a forma como, falhas de imaginação e de um norte, as correntes que contestavam a ascensão neoliberal se limitavam a repetir até à náusea, receitas, motivações, bandeiras e palavras de ordem que tinham sido necessárias nos anos de resistência ao regime e durante o processo revolucionário mas já não se aplicavam a uma realidade em rápida mudança. A segunda razão ligou-se à apropriação das datas simbólicas por uma burocracia partidária, ou mesmo sindical, que procurou usar os movimentos de massas como ferramenta de estratégias sectárias, rejeitando uma corrente dinâmica, unitária e participada que pudesse exprimir-se também na rua. Banalizou-se assim o protesto, cada vez mais ritualizado, controlado, organizado para «marcar posição» e não para arquitetar futuros. A terceira razão, mais recente, não tem motivação política: justamente quando as circunstâncias mudaram e as manifestações de rua passaram a ter de novo um papel decisivo na mobilização cívica, algumas limitações de ordem física impedem-me de estar presente como queria e deveria. Por isso sou agora mais um apoiante do direito à manifestação do que um manifestante, o que, no entanto, não reduz o meu direito à crítica ou minimiza a minha condição de «homem da luta».

E no entanto nem sempre foi assim. Pelo contrário. Sensivelmente entre 1969 e 1981 participei, muito ativamente, em especial antes do 25 de Abril, em ações de rua, maiores ou menores, relâmpago ou mais extensas, micro ou mega, nos lugares e nos momentos mais diversos. Com tanta intensidade que por duas vezes fui preso e interrogado pela polícia, tendo a segunda prisão como consequência imediata o envio compulsivo, ainda teenager, para cumprir o serviço militar. Dessas manifes, sobretudo daquelas que antecederam a revolução de Abril, em luta pela democracia, contra a repressão política e contra a guerra colonial, retenho muito viva na memória, a par do risco e da bravura de quem se dispunha a participar, a imagem, sentida na pele, das cargas da polícia de choque ou da GNR, tantas vezes à bastonada, algumas com cavalos ou cães, que não poupavam a ninguém e tinham, claramente, muito mais a ver com a exibição da força do que com a conservação da «ordem pública». Vejo-os agora mesmo ainda à minha frente, aos «chuis», aos urros demoníacos, casse-têtes agitados no ar, os olhos vermelhos de raiva, a cara transtornada, vomitando pela força um ódio que o regime se esforçava por incentivar. Revejo a fuga pelos becos e quintais, o abrigo em pequenas lojas ou elevadores dos prédios, a dor a aumentar, os inchaços da pancada, por vezes o sangue. E posso garantir que uma das melhores mas também das mais estranhas sensações de liberdade que vivi logo a seguir ao 25 de Abril de 1974 foi poder gritar na rua aquilo que entendesse gritar sem por isso ter de me preparar para correr acossado ou pagar pela audácia.

A mudança foi brusca e foi, realmente, tão estranha quanto boa. De uma ou de outra maneira a democracia seguiu o seu curso imperfeito e os verdugos foram amansando ou mudando de vida. Antigos pides passaram a pacatos cidadãos, alguns compensados pelo governo com reformas por serviços prestados. Tenho até uma experiência única: no início da atividade como assistente universitário tive como aluno, cordato e aplicado, um ex-graduado da polícia de Coimbra (major na época, se não me engano, e o nome recordo-o bem), que fora o responsável pela minha última prisão e pelo interrogatório que a seguiu. Comportámo-nos como se não nos reconhecêssemos, com expressões regulares de cortesia por parte da fera amansada. Os tempos eram outros e o novo regime deixara de ver a expressão da opinião pública nas ruas, nas escolas ou nas fábricas como um crime, ao mesmo tempo que a própria filosofia de comando e os objetivos da polícia iam mudando. Nestas décadas de democracia, a imagem do «polícia mau» e da Estado-algoz foi desaparecendo, e isto traduziu-se na afirmação tendencialmente livre do direito ao protesto. E por isso é impossível aceitar as manifestações de ódio ao manifestante da qual parte das forças policiais tem dado provas nos últimos tempos, em particular no dia da última greve geral. Trata-se de um, de mais um, sinal do regresso ao passado, à ideia de uma ordem inquestionável, legitimada por um indefinível «interesse público» e imposta pelo medo. Antes que ele se torne um hábito, convirá pois inscrever nas bandeiras do combate cívico – e nas dos partidos que defendem inequivocamente a democracia – a própria ideia de liberdade e do direito inalienável à opinião. Por todas as vias e em quaisquer circunstâncias. No voto, pela palavra e na rua. Na rua.

    Atualidade, Memória, Olhares, Opinião.