Como seria de esperar, a morte de José Hermano Saraiva (1919-2012), está a dar lugar, a par das demonstrações de pesar que são devidas sempre a quem parte, a um cortejo de elogios excessivos. Mas deteta-se também a invocação de algumas de críticas ao seu trabalho no campo da História e a exibição de comprometedores silêncios sobre o seu papel como cidadão. O peso do lugar que ocupa no nosso imaginário coletivo justifica um olhar sobre estes três aspetos.
Os elogios decorrem, naturalmente, da sua popularidade como divulgador da História de Portugal, ou, de acordo com algumas leituras, como historiador. Os seus programas televisivos, ampliados pela enorme capacidade histriónica que detinha, tornaram-no figura única, em termos de popularidade, na sua área de especialização. Relato um episódio que me foi contado há já uns anos por um colega, historiador e professor da Universidade do Porto, que é bastante revelador do peso dessa aura. Tendo sido a dada altura decidido fazer aos alunos do 1º ano de História da Faculdade de Letras um inquérito sobre os seus conhecimentos da disciplina, e tendo-lhes sido pedido que indicassem o nome de três historiadores portugueses vivos, nem um só deles deixou de indicar o nome de José Hermano Saraiva. O curioso, e também significativo, é que vários indicaram como segunda e terceira escolha… Alexandre «Saraiva» (referindo-se a Herculano, claro, falecido em 1877) e Vitorino Magalhães «Saraiva» (Godinho, como é bom de ver). «Saraiva» tem, pois, para muitos portugueses, uma relação de sinonímia com «historiador», reforçada pelo facto de, nesta profissão, poucos serem conhecidos fora dos círculos académicos ou dos setores educados da classe média.
Aqui chegamos às críticas. José Hermano Saraiva era um homem em regra bastante mal visto entre a larga maioria dos profissionais da História. E não apenas por possuir uma linguagem antiga e ostentar uma conceção muito ultrapassada do conhecimento histórico. Era-o, em boa parte, por razões compreensíveis para quem faz da História profissão ou a ela se dedica com rigor: uma dose importante da informação que foi fornecendo ao público em séries de televisão, em conferências públicas e em publicações esparsas, era quase completamente inventada, ou deduzida, sem grande cuidado, a partir de informações objetivas que depois desenvolvia ad libitum sob a forma de improviso. Mas também era mal visto no meio por razões menos edificantes para quem o criticava. Uma historiografia por longo tempo marcada pela sobrevalorização do trabalho erudito e pelo mito da «cientificidade» da História, herdeiro do velho positivismo, fez durante muitos anos gala de demonstrar total desprezo pela ideia de «divulgação», que confundia com facilitismo, e pelo papel da «subjetividade» na construção da História, que olhava como o pecado mortal de todo o historiador «sério». Divulgador e imaginativo, Saraiva tornou-se assim, ao longo dos anos, numa espécie de emblema de uma certa heresia.
Quanto aos silêncios, eles tornam-se particularmente pesados nos tempos sombrios, de revisão sem pudor dos fundamentos da democracia, que estamos a atravessar. Ao contrário do seu irmão, o professor, ensaísta, oposicionista e militante de causas António José Saraiva, José Hermano foi sempre um paladino do salazarismo: deputado à Assembleia Nacional, membro da Câmara Corporativa e Ministro da Educação entre 1968 e 1970, sendo então ator de primeiro plano no desencadear e na repressão da «Crise Académica» de 1969, depois da qual Marcello Caetano o substituiu por José Veiga Simão nomeando-o Embaixador no Brasil. Além disso, foi também, nos últimos anos, responsável pelo alastramento da lenda revisionista de um «Salazar benigno» («um santo!», como chegou a referir-se-lhe) com a qual alguns setores têm procurado anestesiar a consciência histórica democrática dos portugueses. Não falar disto, por troca com elogios ditirâmbicos, representa uma omissão perigosa capaz de favorecer um inaceitável obscurantismo.
Adenda a 21/7/2012: Um segundo post ainda sobre a intervenção pública de JHS.