Por um conjunto de razões que não tenho agora tempo para esclarecer, as eleições parlamentares de hoje em Angola fazem-me rememorar uma frase de Paul Theroux deixada no seu Viagem por África: «Em países onde os políticos corruptos se vestem todos de fatinho às riscas, as melhores pessoas andam esfarrapadas.»
O objetivo do Ministério da Educação de, já no ano letivo de 2013/2014, introduzir na organização do sistema de ensino alterações tendentes a fazer com que os «estudantes com notas fracas» sejam forçados à aprendizagem de ofícios «como eletricista, talhante, agricultor ou canalizador», é um golpe brutal nos princípios da escola democrática. Princípios que, no essencial, presidiram após o 25 de Abril à organização do ensino obrigatório e tendencialmente universal. Este objetivo do governo revanchista de Coelho e Portas foi hoje mesmo criticado, com agudeza e detalhe, em dois artigos que recomendo vivamente: «O erro Crato», de André Macedo, e «Cada criança no seu galho», de José Soeiro. Não duplico os dados e a reflexão que estes apresentam, uma vez que os reproduzo no final deste post, mas chamo a atenção para dois aspetos específicos e uma circunstância particular que não têm sido suficientemente vincados na sua dimensão social e na sua completa perversidade. (mais…)
«abaixo a república dos cobardes». De Masculin Féminin (1966), o filme de Jean-Luc Godard, diretamente para a nossa vida. Com Jean-Pierre Léaud. [outra versão aqui]
Segundo o Público, os organismos de veteranos que tutelam a praxe de oito academias – Évora, Porto, Aveiro, Minho, Beira Interior, Trás-os-Montes e Alto Douro, Leiria e Coimbra – vão reunir-se no início de Setembro «para defenderem as tradições académicas», isto é, as praxes, procurando criar um regulamento geral capaz «de separar muito bem o que é a praxe e o que não é». O objetivo último da iniciativa, declaram alguns dos que a preparam, é conter os abusos, impedindo «barbaridades» e estimulando «o respeito». De acordo com o responsável de um desses organismos, tal respeito será necessariamente «dos mais novos em relação aos mais velhos, mas também dos mais velhos em relação aos mais novos». As regras não colidirão com os vários códigos da praxe, destinando-se apenas a impedir os excessos e o enviesamento dos objetivos corporativos que visam essas práticas «tradicionais» e datadas. (mais…)
Em 1912 a Scotland Yard comprou a sua primeira câmara fotográfica para identificar com maior rigor e controlar as mulheres que de forma ativa se batiam pelo direito de voto. No ano seguinte foram postas a circular folhas impressas, contendo reproduções fotográficas dessas sufragistas destinadas ao conhecimento das autoridades no terreno e à repressão eficaz das «fora-da-lei». Só em 1918 viria a ser aprovado o Representation of the People Act, que no Reino Unido estabeleceu o voto feminino.
No final de agosto de 2011, há precisamente um ano, após alguma medição dos prós e dos contras, este blogue passou a seguir o último Acordo Ortográfico da língua portuguesa. A propósito da data, regresso a dois posts que entretanto escrevi – um nessa altura, o outro há apenas seis meses – republicando-os em conjunto com ligeiras alterações formais. Não procuraram justificar uma posição olhando para os detalhes, o que remeteria para a longa polémica na qual têm intervindo especialistas e leigos. Mas tentaram contrariar o sectarismo e cegueira que nada resolvem.
1. Ação! (para o bem e para o mal) (Agosto de 2011)
Ainda não falei da decisão de passar a servir-me, neste blogue como na vida lá fora, do Acordo Ortográfico da língua portuguesa em vigor. Sem referir argumentos utilizados no debate longo e por vezes exaltado que antecedeu a sua aprovação e tem envolvido a sua aplicação, invocando razões para se ser contra ou a favor às quais fui algumas das vezes igualmente sensível, poderia explicar-me com as imposições que me chegam de fora: documentos oficiais que tenho de redigir e assinar nos quais a partir de 2012 me será exigida a aplicação da nova norma, por exemplo, ou as recomendações de redações e de editoras que pedem com insistência os originais num português atualizado segundo o Acordo. Noutra direção, poderia dizer que o fazia para me revelar um sujeito à la page, desperto para os upgrades do real. Mas só isso não chegaria para me levar a mudar a medida da escrita da qual me sirvo há mais de meio século. Acrescento por isso duas outras razões. (mais…)
No dia exato em que Nelson Rodrigues, do Recife e do Rio, deveria fazer 100 anos.
«Hoje é muito difícil não ser canalha. Todas as pressões trabalham para o nosso aviltamento pessoal e coletivo.»
«O homem não nasceu para ser grande. Um mínimo de grandeza já o desumaniza. Por exemplo: um ministro. Não é nada, dirão. Mas o facto de ser ministro já o empalha. É como se ele tivesse algodão por dentro, e não entranhas vivas.»
«Acho a velocidade um prazer de cretinos. Ainda conservo o deleite dos bondes que não chegam nunca.»
Após o 25 de Abril, a extensão da liberdade de expressão e o desenvolvimento do sistema multipartidário alimentaram em Portugal uma forte aproximação entre as diversas instâncias do poder e a vida dos jornais. Políticos e jornalistas compreenderam rapidamente que a sua atividade e os seus destinos se encontravam agora unidos: os partidos e as instituições democráticas precisavam da comunicação social para se relacionarem de forma mais direta e eficaz com aqueles que formalmente representavam, enquanto esta encontrava na divulgação da atualidade política um motivo de interesse para fidelizar os diferentes públicos. Todavia, o processo não foi linear, tendo-se em alguns momentos produzido a relação de promiscuidade entre os dois universos que ainda persiste. Neste cenário, o pior que pode acontecer, para a saúde da democracia, mas também para a vitalidade da informação, é esse relacionamento não ser observado de uma forma crítica e contextualizada. É por isso de grande interesse e proveito a leitura de Apogeu, Morte e Ressurreição da Política nos Jornais Portugueses, da jornalista, investigadora e professora Carla Baptista. (mais…)
Não parece que a proposta de dois rostos para coordenar o Bloco de Esquerda possa ser uma boa ideia. Para além da sua justificação mais simples surgir associada por Francisco Louçã a um certa dose de novidade e de imaculada correção política – de fundamentação e de eficácia, aliás, bastante duvidosas –, evidencia a intenção óbvia de esbater, através dessa forma de representação «bicéfala», alguns dos problemas mais óbvios desse equilíbrio político interno que se encontra na matriz do Bloco e com o qual, desde a fundação, este tem convivido sem dramáticas ruturas. Trata-se de uma sugestão bastante discutível, que, a concretizar-se, pode ter custos políticos muitíssimo elevados. Desde logo por ser um óbvio caso de «meter a carroça à frente dos bois», indicando um novo modelo de direção sem que este venha associado a um programa político claro, realmente renovado e com capacidade de mobilização. Mas também porque, se for consumada, terá consequências difíceis de prever e certamente nada positivas para o partido.
Num mundo como o atual, submetido à omnipresença dos média e à força imensa da imagem, numa sociedade em crise aguda como esta em que estamos, no sistema político representativo como aquele em que vivemos, o papel da liderança é, para os partidos, ainda crucial na agregação de apoios, na mobilização do universo eleitoral e na negociação de soluções. Por isso, ela deve ter um rosto único, expressivo, com autoridade política determinada pela biografia de quem a personifica, com capacidade para fazer convergir diferenças, com estofo político e humano para saber propor metas, para moderar os inevitáveis problemas pessoais e conflitos internos, para ser a voz do coletivo na primeira linha dos combates mais necessários. Ora uma solução como esta, frágil e de confeção burocrática, de facto de continuidade e de «consenso possível», sabe a remédio amargo e não parece responder a estas necessidades. A ocorrer, só pode trazer maus resultados para o Bloco e más notícias para quem nele deseje encontrar uma parte forte da solução para o futuro próximo deste país em tormenta.
[O segundo parágrafo foi ligeiramente retocado cerca de uma hora depois de publicado.]
A passagem do tempo é danada e por isso estão a acontecer tantas mortes de pessoas com quem aprendi a fábula do mundo. No verão de 1967, eu era um pré-adolescente que vivia numa pequena vila de província onde nada acontecia de imprevisto ou de incompreensível. Entretinha-me por isso, como muitos outros em lugares idênticos, a imaginar vias de escape, vidas possíveis, menos frágeis e mais excitantes, alternativas de cidades, hipóteses de estradas, remixes de ambientes onde tudo fosse obrigatoriamente diferente da monotonia pequena com banda sonora de fado plangente e zumbido de moscas. Os cenários previstos eram copiados dos romances de aventuras, das revistas de atualidade, dos filmes e das séries que passavam na televisão, das músicas que podia ouvir e guardar dentro do que era possível ouvir e guardar no Portugal daqueles anos.
Como para milhões de jovens, dali, de outros países e de todos os lugares, um dos pontos de fuga e alternativa possíveis era a cidade de São Francisco. Por causa da ponte suspensa e das ruas paralelas e onduladas mostradas no Vertigo de Hitchcock ou no Bullit de McQueen, talvez, é provável; mas principalmente por ser a cidade eleita daqueles ingénuos bandos de rapazes e miúdas de longos cabelos floridos, «a whole generation with a new explanation», que pareciam anunciar (eles acreditavam que sim) o princípio do mundo. Um mundo outro, mais feliz, com toda a certeza, porque menos igual àquele que os (e nos) limitava. Por isso, como tantos mais, ouvi nesse verão, infinitas vezes, em loop eterno, o primeiro disco que comprei, contendo o hino de Scott McKenzie convocando para um encontro algures em San Francisco. Lugar para onde partiria, se me deixassem e o oceano não fosse tão largo, de olhos fechados e com um brilho na alma. Vai então, Scott, e, man, pá, «be shure to wear some flowers in your hair». É o mínimo.
Na mitologia grega, Ortro, o cão bicéfalo, filho da mulher-serpente Equidna e de Tifão, que tinha cabeça de cavalo e comandava os ventos fortes, era irmão do tricéfalo Cérbero, o terrível guardador do Hades, lugar de destino dos mortos. O dono de Ortro era o pastor Gerião, disforme gigante de três cabeças, três corpos, seis asas e seis braços que se apoderou dos bois vermelhos destinados a Hércules. Motivo pelo qual este o matou.
A fotografia que acompanha este post foi tirada em Sófia e documenta uma intervenção estética integrada no movimento global de solidariedade que após a sua prisão, há já cinco meses, tem apoiado as três Pussy Riot e divulgado a intervenção que protagonizam. A introdução da balaclava – o acessório inventado durante a Guerra da Crimeia por umas caridosas senhoras britânicas que é o sinal visual da banda punk moscovita – sobre as cabeças de algumas das figuras de um grupo de soldados do Exército Vermelho representados na estrutura erguida durante o pesadelo do realismo socialista numa praça central da capital búlgara, acentua a dimensão iconoclasta do seu ativismo. E sublinha agora a importância da sua luta pela liberdade. (mais…)
No ar a espiral empurra a brisa, leva-a
quarenta léguas adentro do Mar Oceano.
Perto, o silêncio simula a tranquilidade,
o céu esconde-se, as árvores inquietam-se.
Um vulto passa vadio, quase a adivinhar
a chuva que vem como vapor de lavandaria.
O Oldsmobile de 57 parece nascido ali
e não ao longe, num subúrbio de Detroit.
Na marginal deserta os rostos vacilam
certos da presença ameaçadora dos cães.
O horizonte ignora a tempestade, inábil,
tão próxima quanto a sombra que a veste.
O mesmo jornal Avante! que se aplica, sem um momento de quebra ou desânimo, a vituperar como «terroristas» todos aqueles que na Síria se opõem ao regime de Al-Assad, não tem uma palavra na sua edição online sobre o massacre, ou sequer a dura luta por melhores condições salariais, dos mineiros sul-africanos. Nem sobre a atuação reivindicativa e iconoclasta que culminou com o castigo brutal imposto agora às três Pussy Riot. Nem sobre a campanha de intimidação com a qual o governo angolano está a tentar impedir qualquer surpresa eleitoral. Para o PCP, um ANC cada vez mais autoritário, a Mãe Rússia, bastião do anti-imperialismo, e o MPLA, «partido do trabalho», ainda não tombaram do altar. Convém tomar nota.