Imperdoável, Mr. Eastwood

Clint Eastwood em Gran Torino

Boa parte do cinema que tem pautado os modos de ver ou de imaginar uma certa identidade norte-americana passa pela carreira longa e pela figura esguia de Clint Eastwood. Começou a participar em filmes, ainda como ator secundário, em 1955, mas a projeção mundial obteve-a como «Homem Sem Nome» («Joe», «Manco» ou «Blondie») na trilogia «dos dólares», modelo do western spaghetti, rodada entre 1964 e 1966 por Sergio Leone: Por um punhado de dólares, Por mais alguns dólares e, mais conhecido, O Bom, o Mau e o Vilão. Aí protagonizou o tipo de herói, comum na ficção americana, mostrado como um indivíduo violento e sem grandes princípios, em conflito à escala diminuta com a ordem dominante, que as circunstâncias empurram para atitudes que o espetador reconhece como «justas» e nas quais, por isso mesmo, a violência, incluindo a mais extrema, parece aceitável. Este será o modelo retomado pelo Eastwood das décadas de 1970-1980, na pele do detetive Harry Callahan, «Dirty Harry», num conjunto de filmes onde, uma vez mais, a brutalidade e a falta de escrúpulos do polícia duro e automarginalizado surgia como uma necessidade determinada pela procura da justiça.

Foi por essa altura que Eastwood começou a carreira como realizador, onde atingiu, como se sabe, notoriedade idêntica à obtida como ator. Mas os personagens que construiu e espalhou pelas dezenas de filmes que dirigiu, conservaram quase sempre os traços de «Blondie» ou de «Harry», anunciando um combate individualista por algo – seja esse algo uma causa, uma memória, um ato de justiça ou a defesa de um princípio – que mesmo não sendo aceite pela maioria, mesmo não sendo «politicamente correto», define uma relação de complexidade com o público, determinada em larga medida pela enorme maestria do ator e do realizador. Talvez baste recordar filmes como Imperdoável (de 1992, onde surge como o pistoleiro aposentado que não perde o dedo para o gatilho), como Million Dollar Baby (de 2004, onde é um treinador de boxe pouco dócil, casmurro e à moda antiga) ou como Gran Torino (de 2008, onde aparece como vizinho solitário e duro, racista, misógino e antiquado, em combate, no fio da navalha, contra tudo aquilo que poderia perturbar a memória de uma América que existia apenas na sua cabeça).

Clint manteve sempre – e os exemplos podem ser multiplicados, incluindo-se nestes os dois filmes-biografia que o redimiram junto de alguma crítica de esquerda pelo facto dos biografados serem músicos de jazz negros (Thelonius Monk e Charlie Parker) – essa atração pelos heróis únicos, em luta por um destino que é essencialmente individualista e, num certo sentido «americano». Uma atração que parece ter transportado para a intervenção política que tem mantido na vida do lado de cá das câmaras. Clint é, desde 1951, membro do Partido Republicano. Participou ativamente nas campanhas presidenciais de Richard Nixon e de John McCain, bem como na campanha para governador de Arnold Schwarzenegger. Em 2005 produziu mesmo uma piada de mau gosto a propósito do realizador Michael Moore, no jantar anual da National Board of Review, afirmando, em jeito de bravata: «Moore e eu temos muito em comum, ambos gostamos de viver num país com grande liberdade de expressão. Mas, Michael, se apareceres em frente da minha casa com uma câmara, dou-te um tiro!». Agora, aos 82, tornou-se uma das figuras mais destacadas da campanha presidencial de Mitt Romney.

A tomada de posição não é nada agradável para quem, como tantos de nós, aprecia, ou aprecia muito, o trabalho de Eastwood. Não se trata de questionar o seu posicionamento político, que afinal, nos traços mais essenciais, mantém há pelo menos 61 anos. Só que, desta vez, assume um lugar de primeiro plano na campanha de um candidato que se comporta como um idiota perigoso, defensor do rearmamento unilateral, apoiando o negócio da venda livre de armas, adotando uma política belicista para o Médio-Oriente, fechando a América ao diálogo internacional e propondo-se destruir o serviço nacional de saúde que Obama conseguiu fazer aprovar. Não é por terem sido fascistas e antissemitas que deixamos de admirar Céline ou Ezra Pound, mas também não é por terem sido os escritores que foram que os desculpamos como «bons rapazes». Provavelmente, Clint Eastwood verá no grosseiro Mitt mais um dos seus heróis, batendo-se por uma justiça antiga para a qual pede, mesmo sem um rosto afetuoso ou simpático, o apoio dos eleitores americanos. Nós outros, que amamos o seu cinema, temos por isso todo o direito de não gostar deste script. De considerar que fez uma escolha… imperdoável. Ou, vá lá, que fez uma escolha que vai ser bastante difícil perdoar.

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