Em memória do Manuel António Pina (1943-2012), o MAP, com quem falei apenas em duas ocasiões, mas que sem o saber, e com toda a certeza sem o querer, foi um dos meus heróis. Uma crónica sua.
Aos Nossos Heróis
Éramos jovens e habitávamos um lugar cercado de paredes onde os ecos do longínquo mundo chegavam esparsos e abafados. E, no entanto, o nosso coração pequeno-burguês (des gens de la moyenne como cantava Colette Magny sobre o Dia do Estudante de 1966) estava maduro, pulsante de sentimentos excessivos e de palavras por dizer. De algum modo, Maio de 68 aconteceu dentro do nosso coração. Era aí que, também nós, nos barricávamos então contra a pequenez do nosso tempo e do nosso lugar. E, sim, também nós (conselhistas, anarquistas, guevaristas, trotskistas, enragés de todas as espécies), dentro do coração nos sentíamos, mansamente embora, la pègre e la chienlit.
Os livros, os discos, as revistas, passavam de mão em mão, trazidos clandestinamente e, nos cafés, murmurávamos, ansiosos, nomes de súbito familiares: Rudi Dutschke, Sauvageot, Geismar, Cohn-Bendit (oh, os olhos límpidos de Dany le Rouge enfrentando, numa fotografia de página inteira do Paris Match recebida pelo correio a embrulhar, juntamente com outras folhas de jornal, um presente anódino, a face bruta de um CRS!). Em Paris, a faúlha incendiara toda a pradaria, de Nanterre à Sorbonne, da Place de la République a Denfert-Rochereau, do Jardim do Luxemburgo ao Boulevard Saint Michel, e nós, a mil quilómetros de distância, cercados e acossados, ardíamos por dentro.
Amávamos sem regras, escrevíamos poemas, cantávamos canções, saíamos à noite para pintar afrontas nas paredes («Abaixo a Guerra Colonial», ou, mudando duas letras, transformando o «Droga = loucura, morte» governamental em «Tropa = loucura, morte») ou lançávamo-nos em correria pelas ruas da Baixa apedrejando as montras de bancos e dispersando antes da chegada da Polícia. Para nós eram tão risíveis os fatos escuros dos ministros como a sisudez operária do PC e dos maoistas.
Explodiríamos desordenadamente um ano depois, em Coimbra. Contra o poder político e académico, contra a Polícia de Choque (Vous êtes reconnaissables/ vous les flics du monde entier/ les mêmes imperméables/ la même mentalité, cantava Dominique Grange na instalação sonora da Associação Académica), contra os controleiros de serviço, distribuindo flores e balões nas ruas, nas faculdades, na Porta Férrea, na Escadaria Monumental ou atirando panfletos na noite de S. João e na final da Taça no Estádio Nacional.
Que é feito dos nossos heróis? Corrompidos pela vida, de fato e gravata, ocultando as memórias da juventude como uma doença vergonhosa, é ver agora alguns deles a reescrever comemorativamente a sua própria história e a votar leis de despedimentos no Parlamento. E a pior das humilhações: escutar Cohn-Bendit defendendo o «mercado» e as intervenções militares na Bósnia e no Afeganistão.
Não, não são os revolucionários os cornudos da História, são as Revoluções. Não ensinam melancolicamente os dicionários (aprendemos à nossa custa que é insensato desprezar os dicionários) que Revolução é o movimento de um corpo que, descrevendo uma curva fechada, passa sucessivamente pelos mesmos lugares?
Manuel António Pina (Notícias Magazine, 04.05.2008)