Uma crónica publicada em 2002, aqui retomada em 2007 e agora de novo. Porque infelizmente permanece atual.
Nem sempre é fácil sinalizar a escrita. Arrumar as palavras, separando-as com pontos, vírgulas, pontos e vírgulas, hífenes ou travessões, mais dois pontos, parênteses curvos ou retos, colchetes… reticências. Mas também com aspas («_»), esse adorno – análogo às comas duplas ou vírgulas dobradas (“_”), usadas para citar ou introduzir uma expressão em língua estranha – que confere um valor significante diverso do habitual à palavra ou à expressão que entre elas se insere. Com «indecorosa» intenção normativa, D’Silvas Filho, autor de um Prontuário editado há uns anos pela Texto, declara que a aposição das aspas constitui uma prática que serve para grafar «termos ou expressões que se devem evitar, termo estrangeiro, reserva no que se escreve (ortográfica, fonética, semântica, eventualmente autoria)». Preceito que a ser seguido com rigor, neste tempo de contínua mudança da fala e da escrita, faria de toda a leitura um labirinto cravado de armadilhas.
De inegável utilidade pública na construção de sentidos esconsos e álibis, as aspas, são sinais de vida fácil e atribulada, inúmeras vezes objecto de abuso. Abre aspas, por dá cá aquela palha, fecha aspas. Solícitas, sem pudor, servem para contornar insultos, podendo afirmar-se na sua companhia que o senhor diretor «é um valente “pulha” (entre aspas)!», assim minimizando a ofensa. Noutros momentos, ouvimos o comentador desportivo afirmar que “o jogador saltou para cima do adversário. «Para cima» entre aspas, naturalmente”. Ou então lemos, nas letras grossas de um daqueles jornais regionais especializados no obtuso desperdício das referidas sinalefas, que «os turistas espanhóis “invadiram” a cidade». Não fossemos nós, tontos leitores, pensar que, por ablação das ditas, aquilo fosse literal.
Existem entretanto modos menos caricatos de abusar das aspas. Eles definem-se, para abreviar a descrição, em três possíveis sentidos: o primeiro define-as como instrumentos destinados a contornar a pobreza da retórica, o segundo relaciona-as com a desresponsabilização do discurso, o último associa-as à incapacidade para afirmar processos de conhecimento próprios e não tutelados. Mas, nestas coisas de formular «verdades», nada melhor que ser claro para dissipar a escuridão:
Remendar a retórica. Esta é uma estratégia vulgarizada, que podemos ouvir em diversas situações. Ora o orador e, faltando-lhe o exacto termo ou a figura de linguagem adequada, adianta a aproximação aspada. Proclama assim: «Porque serão justamente os cidadãos menos favorecidos, senhores deputados, aqueles que têm menos hipóteses de se eximir ao ónus dos impostos? É caso para dizer, usando a sabedoria popular, que quem se [faltando-lhe neste preciso momento o termo] “prejudica” (entre aspas) é o mexilhão!». Também apresentadores televisivos, professores, conferencistas, advogados e outros profissionais da fala recorrem com frequência a este expediente, de toda a vez que lhes escapa a palavra certa ou entendem ornamentar o próprio verbo sem correr grandes riscos.
Desresponsabilizar o discurso. O sentido aqui é outro, aparecendo, seja na escrita ou na oralidade, naquele exacto momento em que se depara algum temor de que à palavra ou à expressão utilizada se possa atribuir um sentido que não aquele, um pouco menos taxativo, que se lhe pretende dar, suscitando o descontentamento ou o despeito. Afirma o eventual «prevaricador» (com aspas): «Considero a atitude anteriormente tomada como uma “asneira”, podendo vir a afectar “pesadamente” o futuro desta instituição. Sinto-me, pois, algo “constrangido” em relação à possibilidade de lhe conceder o meu aval.» Usa-se frequentemente em reuniões de trabalho ou nas actas públicas das mesmas.
Recusar a criatividade. Esta é a situação menos vulgar mas de mais pesadas consequências. Traduz uma incapacidade, demonstrada na produção de discursos de natureza interpretativa, para contrariar formas de conhecimento dominantes e produzir novos conceitos ou alargar os existentes. A construção de formas de saber diferenciadas e o encontro com realidades e lógicas anteriormente desconhecidas, conduzem a que se criem novas palavras ou expressões, muitas vezes usadas de maneira necessariamente experimental, mas que correspondem à afirmação de leituras possíveis e legítimas. Aqui, sim, é preciso assumir sem receios a queda das aspas. Por exemplo, a noção de campo criada por Pierre Bourdieu – aquele fragmento do mundo social que é regido por leis e códigos próprios – não pode ser confundida com a paisagem do Campo de trigo com corvos, o último quadro de Vincent Van Gogh. Não sendo preciso acompanhá-la, para que percebamos a diferença, desses tristes e incómodos sinais da ortografia.
As aspas são pequenos demónios que tantas vezes tornam mais pobre e mais opaca a comunicação. Por isso, o melhor que temos a fazer é usá-las com bastante parcimónia, evitando que se transformem em grilhões da palavra ou alavancas da pura tolice.