Em 1949 a terra ainda estava empapada de sangue e cheirava a pólvora. As recordações dos que haviam sobrevivido à Guerra continuavam, como continuariam por muitos anos, a preencher-lhes as insónias sacudidas pelo eco das bombas e das botas militares. Alguns chegaram mesmo a dizer que já não eram capazes de se adaptarem ao sossego da paz. Quando, nesse ano, Adorno falou da impossibilidade de escrever poesia depois de Auschwitz – podia ter falado de compor uma sinfonia, de pintar um quadro, de realizar um filme, de olhar o futuro na plenitude da esperança – referia-se ao desespero que nos assola e derruba depois de olharmos o horror mais indizível. O filósofo poderia ter perguntado ainda se seria possível comer, rir, trabalhar ou amar, conjeturando sobre se algum desses gestos valeria a pena. Deixando no ar que não, que não valeria, e empurrando-nos para o fundo mais fundo do desalento.
A devastadora perda de sentido do humano que ocorreu no campo de Auschwitz, como nos outros dos quais ele se manteve o símbolo e o espetro, conduziria então, sem hipótese de apelo, ao triunfo do silêncio. À impossibilidade de cantar, de preservar o riso, de conhecer a euforia da criação e da vida, por um minuto que fosse, diante da mais negra violência. Ao grau último da infelicidade, próximo da morte. E, no entanto, mesmo nesses lugares de sofrimento e medo, ali no território da Polónia agredida e ocupada, como, milhares de quilómetros a leste, nas planícies geladas de Kolyma, no Gulag, havia lugar para instantes de luz e calor, para réstias de esperança, para lembranças da felicidade passada e, por vezes, para devaneios de futuro. Havia até, lembram-no os que sobreviveram, como Elie Wiesel ou Varlam Shalamov, um esconderijo seguro no qual a solidariedade, a criação e até o humor podiam existir por breves instantes.
Por isso, nestes tempos de adversidade e nevoeiro, ainda que incomparáveis aos que passaram os antigos deportados, precisamos de projetar futuros, temos de criar, de saber rir, não podemos deixar-nos sucumbir a um mundo sem chama e poesia, limitando-nos a viver condicionados por decretos infames, por leis iníquas, por imposições que nos parecem negar uma hipótese de futuro. Tenho reparado, por estes dias insanos, como muitas pessoas que conheço já quase deixaram de ouvir música, de ler poesia, de se divertir com comédias despretensiosas, de contar piadas, até de ir ao futebol ou de passear sem pesarem o quanto isso lhes irá custar. O combate de crítica ou de contestação a políticas erradas tem de ser feito com firmeza, mas não pode sucumbir à amargura e ao desgosto constante que nos é imposto. Sob pena de ampliar a infelicidade e de impedir um projeto de vida para lá da linha do horizonte. Com a certeza de que não terminaram as manhãs nas quais poderemos acordar com um sorriso de otimismo.
Publicado originalmente no Diário As Beiras.