Nasci e vivi até aos dezasseis numa vila do interior beirão. Na época, não existiam por aqueles lados, como não existia em praticamente lado algum, estradas decentes e rápidas. Uma reta de cem metros era tão rara que parecia uma pista de ensaios para fanáticos da velocidade. Notavam-se mais ainda esses limites quando se vivia numa região de montanha que transformava qualquer jornada numa pequena aventura. O trajeto que leva hoje 45 minutos a fazer durava então o dobro, por vezes mais. Além disso, poucos possuíam automóvel e ninguém sem profissão estável e razoavelmente remunerada tinha sequer carta de condução. O isolamento era aí, sobretudo aí, a condição natural da existência, agravado pelo facto da informação que chegava ser parca, lenta e filtrada pela censura. Era o país possível, no qual tudo decorria modelado por aquele «viver habitualmente», sem o calor da novidade ou do desassossego, que à imagem do rústico temeroso das cidades Salazar quisera para todos.
Para um rapaz a crescer com uma vontade grande de aprender coisas novas, de conhecer o mundo inteiro e de participar da sua ebulição, tudo isto era uma terrível fonte de náusea. Pior ainda quando a maioria das pessoas conhecidas pareciam conformadas a essa doentia quietude, quando não a vigavam ou alimentavam. Longas, terrivelmente longas, eram as tardes naquele universo de silêncio e impassibilidade, no qual dia após dia nada acontecia, e que parecia feito para durar até à eternidade. Foi esse o grande e doloroso primeiro encontro com o conformismo, que tantos rapazes e raparigas da minha geração, só o descobri depois, viveram com o mesmo grau de aflição e de calada revolta. No entanto, quantos foram os que acabaram por aceitá-lo, isolando-se para sempre nas suas pequenas ilhas de sociabilidade, aceitando a inevitabilidade das leis do pequeno mundo e desesperando de que um dia algo pudesse ser diferente.
Quando mergulhei no universo da cidade universitária, cheio de grandes esperanças, percebi como esse estado de consentimento da letargia e do imobilismo era afinal quase generalizado. Existe hoje um perigoso romance, construído à volta da «geração rebelde» que existiu mas apenas parcialmente. A verdade é que a maioria dos jovens, mesmo dos jovens de leituras à la page e escolhas pessoais avançadas, acabava muitas vezes por sucumbir, tolhida pelo medo, pela falta de expectativas ou simplesmente pela inércia, ao clima geral de quietude e lassidão. Fala-se muito, e com justeza, dos jovens estudantes ativistas da altura, do seu papel no combate pela democracia, mas a maioria integrava de facto o universo dos indiferentes, dos chamados «amorfos». Aqueles que apenas seguiam as tendências do momento e, em muitos casos, só aceitaram posições de confronto com a ditadura quando os outros, os mais inconformistas, foram capazes de abalar a relação de forças e de impor uma alternativa de vida e de futuro. Uma manhã, confrontado com uma situação de prepotência de dois agentes da polícia que procurava impedir uma pequena e pacífica concentração, um colega, cujo rosto pelas piores razões jamais esqueci, à minha imprecação juvenil contra quem aceitava sem resistência as ordens brutais da autoridade, atirou-me com um «a vida é assim, terás de te habituar» que compreendo agora corresponder já então à atitude dominante.
O conformismo tem raiz numa lógica de normalização que transforma a divergência, principalmente a que assume uma forma organizada e sistemática, em algo que poucos estão em condições de ultrapassar. O erro de todos os ativismos, que se lamentam a propósito da forma como a maioria dos cidadãos facilmente se deixa desmobilizar e baixa as bandeiras, é justamente o de acharem que o seu próprio exemplo pode dar fruto para todo o sempre, vivendo na ficção de uma mudança estrutural dos comportamentos. Não é assim: a larga maioria das pessoas, durante a maior parte do tempo, e mesmo em épocas difíceis, procura sempre defender-se na esfera da privacidade, da normalidade, do escudo de proteção – ou da bolha, como agora se diz – que construiu. As irrupções revolucionárias, envolvendo multidões, fazendo ouvir em alta voz o descontentamento, enfrentando de peito aberto os poderes instituídos, são raríssimas. Sob ditaduras reais ou em democracias caricaturadas, como aquela na qual estamos agora a viver.
Caberá talvez, a quem tenha a consciência desta condição, o esforço de saber criar e recriar em todos os territórios os fatores da mudança, sem vanguardismos que acabam por se tornar estéreis, sem expectativas que rapidamente se revelam ingénuas e excessivas. Mobilizando o que houver a mobilizar nos momentos decisivos, sem contar que quem se rebela hoje o faça necessariamente amanhã e depois. Percebendo que a atração por esse «puro, desesperado, ordenadíssimo tédio», do qual em finais do século XIX falava Rudyard Kipling, é sempre a mais natural e a mais repetida das inclinações humanas. Se o conseguir aceitar, mais dificilmente cederá ao desânimo e à lógica da amargura, deixando de proclamar a cada derrota que «este povo tem o que merece». Mais facilmente se mobilizará, e saberá mobilizar, para as situações de exceção nas quais se concentram verdadeiramente as dinâmicas da mudança.