A desgraça pública e a política de alianças

O pior dos tempos terríveis que estamos a atravessar é a ausência de esperança. Seria bem menos doloroso passar por tudo isto se pudéssemos pensar que se tratava somente de uma circunstância infeliz, de um transe, de uma passagem necessária, ainda que demorada, para uma situação melhor ou menos incerta. E ainda pesaria menos se pudéssemos vislumbrar uma alternativa política, uma viragem, em condições de devolver, se não todos os direitos perdidos e o quinhão de futuro que conquistámos e nos foi roubado, pelo menos uma gestão profundamente diferente e menos dolosa da coisa pública. Associada a uma política mais solidária e mais justa, menos cínica e insensível, que restituísse a tranquilidade e a segurança que nos fogem a cada manhã que passa. O drama, grande drama, é pois a ausência de uma possibilidade real de pôr termo ao estado comatoso em que a direita neoliberal pôs o país, as nossas vidas e o futuro coletivo. É ela que afasta a esperança e alimenta o desespero. E é ela também que propaga uma perigosa indiferença.

Parece cada vez mais claro que, em termos práticos, só uma aproximação das esquerdas, assente num programa partilhado de reabilitação do país e de reconquista da dignidade, poderá inverter a queda, contrariar o desânimo e mobilizar a maioria dos cidadãos para a regeneração da democracia e um retorno ao bem-estar e ao crescimento. Mas, e é esse o drama, é também cada vez mais claro que, irredutíveis de facto nos seus territórios, Partido Socialista, Partido Comunista e Bloco de Esquerda não parecem em condições de estabelecer o tão necessário diálogo tendo em vista algum entendimento. O PS, enredado nas suas contradições, nos seus compromissos clientelares e nas suas recentes responsabilidades de governo, obcecado com a obtenção de uma maioria absoluta e dominado por um «gestionarismo» que há muito empurrou os princípios do socialismo para a gaveta, não mostra, pelo menos como um todo, interesse real em ouvir aquilo que os outros têm a propor. Como não mostra sinais de querer propor alguma coisa nessa direção. Já o Bloco, que tem formulado essa intenção, encontra-se, na prática, manietado pelas suas próprias hesitações, por dificuldades internas, pela sua atual crise de identidade, não tendo condições, só por si, para poder impor tal aproximação. Sobre os constrangimentos do PS e do Bloco bastante se tem escrito e falado, mas sobre o PCP pouco tem sido dito. Como se não valesse a pena ou tal debate constituísse um tabu.

Pela sua longa experiência de luta, pela influência social que tem, pela capacidade de organização que não precisa ser reconhecida, o PCP poderia e deveria desempenhar um papel central como força aglutinadora, não dirigente mas aglutinadora, da alternativa. No entanto, continua a mostrar pouca vontade de cumprir esse papel. Parte desta dificuldade advém de não conseguir superar os limites de uma política de alianças que lhe limita as possibilidades de intervir como fator de unidade e de mudança. Trata-se de uma dificuldade com consequências pesadas para o país – e até para a renovação e o impacto político do próprio partido – que remete para um trajeto histórico de muitos anos.

No passado sábado, durante o comício no Campo Pequeno no qual foi evocado o centenário do nascimento de Álvaro Cunhal, o atual secretário-geral declarou que o partido «está pronto a assumir todas as responsabilidades que o povo queira confiar-lhe» neste momento, em que, como afirmou, o país precisa «de travar o passo à política de saque dos trabalhadores e do povo». Isto é, sugeriu a possibilidade de vir a ter responsabilidades de governo. Mas infelizmente não adiantou uma explicação clara, mobilizadora e geradora de esperança sobre como o conseguir e sobre o que fará se lá chegar. A sua proposta mantém-se, em termos de estratégia comum para inverter a situação presente, a mesma desde há muito tempo: afasta qualquer hipótese de um acordo parlamentar ou de colaboração política com o PS, ignora completamente o Bloco, apontando como fatores geradores de mudança um conjunto de forças «patrióticas e de esquerda» que não esclarece quais são, como se reuniriam, com base em que programa atuariam, e como governariam Portugal. Os seus companheiros serão quem, então? Os «Verdes», esse partido-fantasma que não existe fora do parlamento e foi montado para que o PCP tivesse alguém com quem se coligar? Os «democratas e outros patriotas» que ninguém reconhece fora do círculo de compagnons de route do próprio partido? Umas quantas personalidades avulsas disponibilizadas pelas circunstâncias? Infelizmente, na história do PCP, não é nova esta dificuldade de aglutinação.

Num esclarecedor artigo publicado em Álvaro Cunhal – Política História e Estética, obra coletiva organizada por José Neves e editada há pouco pela Tinta-da-China, o historiador João Madeira faz uma breve biografia dessa dificuldade. Ela foi desde logo notória quando o PCP, para adaptar à realidade portuguesa, marcada pelo peso da ditadura, a política frentista teorizada por Dimitrov e a partir de 1935 internacionalmente imposta por Estaline, definiu que a política de unidade seria construída em torno dos problemas e das reivindicações concretas dos operários e demais trabalhadores, e não, como aconteceu, sob diferentes condições, na França da experiência da Frente Popular, entre os partidos que se reivindicavam de um ideal genérico de socialismo. Com ligeiras variantes, esse seria o diapasão futuro da política de alianças do PCP, materializado em situações tão diversas como as protagonizadas pelo MUNAF (Movimento de Unidade Nacional Anti-Fascista, 1945-49), pelo MND (Movimento Nacional Democrático, 1949-57), pela JLN (Junta de Libertação Nacional, 1959-62), pela FPLN (Frente Patriótica de Libertação Nacional, 1962-70) ou pela CDE (Comissões Democráticas Eleitorais, 1969-73). Já em democracia, a criação da APU (Aliança Povo Unido, 1978-87) e, a partir desta última data, da CDU (Coligação Democrática Unitária), não alterou substancialmente aquela tendência para «unir na luta», rejeitando a aproximação com partidos e organizações que, à esquerda, possuíssem uma conceção programática de socialismo e da democracia que não fossem compagináveis com o programa do partido e a sua intenção hegemónica de proclamada «vanguarda». Optava-se antes por enquadrar a luta a partir da base, excluindo ou reduzindo ao mínimo os contactos de topo.

Ora esta política, se por um lado permitiu ao PCP estabilizar uma área de influência segura e com implantação, tendeu também a criar um fosso crescente perante organizações, partidos e até individualidades que este encarava como concorrentes na mesma área de influência social, produzindo dinâmicas que, já depois de 1974, tenderam a isolar o partido – um isolamento que a atividade sindical e o trabalho autárquico foram relativizando, é certo – e a inviabilizar qualquer estratégia governativa à esquerda. Estratégia apoiada numa base eleitoral ampla e consistente. Uma limitação que no seu campo a direita, como se tem podido ver, sabe aproveitar muito bem.

No presente momento, esta situação revela-se particularmente grave e danosa, tendo em consideração a urgência dramática da construção de uma alternativa – de natureza frentista ou, mais provavelmente, definida em termos de um acordo pré- ou pós-eleitoral – que possa, com base num programa mínimo e em objetivos realistas, emergir como uma opção credível, mobilizadora e exequível à desgraçada governação a que estamos submetidos. Os sinais de mudança de atitude da parte do PCP – como aqueles que são emitidos, ao nível das direções partidárias, pelo PS e pelo BE – não são, nesta matéria tão urgente quanto crítica, propriamente animadores. São muitos anos a laborar numa mesma perspetiva. Mas é justamente esta, como ficou dito no início deste artigo, uma das marcas da nossa desgraça. A alternativa é todas as partes aceitarem de um modo explícito e transparente que têm de ceder em alguma coisa para salvarem o essencial e serem capazes de contornar as nuvens muito negras que se perfilam no horizonte. Neste processo, o PCP deverá ter sempre um papel essencial. Não pode deixar de ser assim, pois sem ele não pode haver uma real alternativa de esquerda. Mas apenas com ele também não. Assim o compreendam e queiram aqueles que, no seu interior, saibam ler os sinais dramáticos que a realidade impõe e consigam contornar os vícios do sectarismo e da vontade de hegemonia que, formalmente negados, teimam em manter-se. Portugal agradecerá, e os portugueses ainda mais, se tal vier a acontecer. A outra possibilidade é passarmos de mal a pior. E por lá ficarmos por muitos e maus anos.

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