Heróis, precisam-se

Fot. Luis Cardia

Condenado à morte por haver conspirado contra o czar, e após ter visto a pena ser comutada para prisão e degredo quando já se encontrava perante o pelotão de fuzilamento, Dostoievski acabaria por ser deportado para a Sibéria, onde seria mantido em regime de trabalhos forçados entre 1849 e 1854. Como se tal não tivesse bastado, avaliações posteriores iriam, na terra que fora a sua, condená-lo a um novo exílio. Assim, até 1953 os manuais de história e de literatura em vigor na União Soviética repudiaram a sua obra como «expressão da ideologia reacionária burguesa individualista». O fundamento desta acusação e da condenação liminar dos seus romances não se encontrava tanto nos enredos ou na evocação neles contida de valores considerados caducos, próprios de um tempo que a revolução de Outubro pretendera vencer, mas na tipologia dos seus heróis, preocupados acima de tudo com a fidelidade aos princípios e aos objetivos morais, mesmo quando, momentaneamente, as circunstâncias («o social», como alguns diriam) os podiam, ou deveriam, fazer vacilar.

O próprio romancista comentou um dia que o seu mal, o seu tormento, provinha de «uma doença incurável chamada consciência», enfermidade própria de quem tinha pouco sentido prático e preferia viver como impenitente sonhador. «E vocês sabem o que é um sonhador, cavalheiros?», deixou-nos ele nos Escritos Ocasionais, «é um pecado personificado, uma tragédia misteriosa, escura e selvagem, com todos os seus horrores frenéticos, catástrofes, devaneios e fins infelizes». Depois continuava: «Um sonhador é sempre um tipo difícil de pessoa porque é enormemente imprevisível: umas vezes muito alegre, outras vezes muito triste, às vezes rude, outras vezes terno e compreensivo, num momento um egoísta e logo noutro capaz dos mais honrados sentimentos (…). Não é uma vida assim uma tragédia?». A noção da tensão entre aquilo que se é e o que profundamente se deseja ser faz, pois, parte da matriz dos heróis dostoievskianos, e é justamente ela que os torna perduráveis. No Mito de Sísifo, Albert Camus comentou que todos esses heróis se interrogavam sobre o sentido da vida, sem excessivo pragmatismo, sem exagerado calculismo, vincando que «eles são modernos por não temerem o ridículo». Não pode existir melhor elogio à grandeza de viver com um propósito, corajosamente, confrontado sempre, num esforço da vontade, aquilo que as circunstâncias parecem impor.

Por este tempo de incertezas e de revogação de futuros, submerso em práticas e valores que tendem a desconsiderar as convicções e todos aqueles que se batem por elas, valorizando em contrapartida o egoísmo e a mansidão, promovendo a aceitação do pior como resultado de uma inevitabilidade, da fatalidade do destino, é sempre reconfortante reencontrar o modelo de herói proposto por Dostoievski. Não apenas pelo simples prazer de imaginar outras vidas, menos previsíveis, menos cinzentas, menos dóceis, mas também pelo que ele nos revela a propósito da capacidade humana para superar as piores adversidades e, sem se conformar ou desistir, olhar para além delas, procurando um sentido para todas as coisas. Bem estamos precisados de um tal exemplo. (Por todas as razões, dedico esta crónica à memória de Nelson Mandela.)

Publicado originalmente no Diário As Beiras.

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