Nota prévia: Esta é uma leitura «na mera ótica do utilizador». A eventual candidatura de António Costa à direção do PS poderá reconfigurar muita coisa. Mas esse não é o presente cenário.
Nas europeias do passado domingo o Bloco de Esquerda perdeu muitos eleitores para o PCP/CDU, para o Livre e até para o «partido do Marinho e Pinto». Sem estas perdas – a culpa não será por certo dos destinatários desses votos, que apenas fizeram o seu trabalho – o BE teria, muito provavelmente, um resultado estável e proporcional ao papel que se espera que cumpra. Mas tal não aconteceu, pese a justa eleição de Marisa Matias, e por isso precisa agora de refletir seriamente, sem medo e sem mais adiamentos, nas razões internas da aparatosa derrota. Nas razões internas, insisto, não na «culpa» dos outros. Mas também numa reorientação de estratégia e de política de alianças. Para evitar afundar-se mais ainda em termos eleitorais e poder retomar o lugar único e necessário que tem ocupado no espetro político nacional.
A forte possibilidade da hecatombe acontecer é-nos, aliás, facilmente revelada por um olhar rápido pelos resultados eleitorais que o BE tem vindo a acumular nestes anos mais próximos: 167.313 votos obtidos nas europeias de 2004, 364.971 nas legislativas de 2005, 382.014 nas europeias de 2009, 558.062 nas legislativas desse mesmo ano, e depois, já a descer, 288.973 nas legislativas de 2011 e 149.534 nas europeias deste domingo. Os números são frios e falam por si. As expectativas, a nada mudar substancialmente, são péssimas.
O atual declínio é pois tão evidente quanto o seu aprofundamento é perigoso para o equilíbrio e a representatividade do sistema político. Porque o Bloco tem vindo gradualmente a retroceder naquela que foi inicialmente a sua missão, que era oferecer uma alternativa real, no campo da participação cívica e da representação democrática, a muitas pessoas que não se reviam nem na militância nem nos modelos propostos pelo PS e pelo PCP. A pessoas que não esperavam nem esperam da esquerda uma gestão suave do capitalismo, assente numa opaca política de favorecimentos e caciquismo, como também não esperam o retorno a um sufocante estatismo, a políticas de pressão sobre a iniciativa privada e ao isolamento internacional.
O BE oferecia, e ainda pode oferecer, uma alternativa a pessoas que acreditam na possibilidade de erguer um modelo de Estado em condições de combinar três fatores essenciais: em primeiro, o socialismo democrático, sem medo do conceito e do lastro histórico mutante mas respeitável que este detém; em segundo, o desenvolvimento solidário, com tudo o que ele incorpora de planeamento, transparência e criatividade; e em terceiro uma liberdade sem fronteiras, como fator decisivo da qualidade de vida, de uma democracia plena e de participação numa Europa aberta e mais justa. Foi para isso que, com a sua heterogeneidade e naturais hesitações, o BE nasceu, foi esse o caminho que começou por trilhar e foi ele que lhe outorgou um crédito de apoio e simpatia, embora alguns dos seus militantes o tenham provavelmente esquecido ou, noutros casos, jamais o tenham verdadeiramente reconhecido.
A meu ver, e falando na estrita perspetiva do votante e apoiante crítico, esta urgente reflexão, para ter êxito, não poderá limitar-se a retoques de cosmética. Para assegurar o futuro do partido, só poderá assentar em princípios que lhe devolvam a singularidade identitária, que reconheçam a especificidade e o protagonismo da sua base social – a classe média, a população urbana, os jovens, os criadores, um volume até agora crescente de população instruída, sem esquecer, naturalmente, os trabalhadores e os mais desfavorecidos dos desfavorecidos, as minorias e os marginalizados –, e que aceitem, no necessário processo de transformar princípios em práticas de governação, ser seu dever privilegiar uma convergência séria e efetiva, sem outras imposições que não as determinadas pela necessidade de derrotar a direita e os pregoeiros do neoliberalismo, com outras forças à esquerda.
Entre outros aspetos, o Bloco terá então de deixar clara a matriz que faz confluir o ideal de socialismo com a aceitação do jogo democrático, deverá definir com detalhe o modelo de desenvolvimento económico e social que propõe, precisará mostrar sem hesitações que política europeia recomenda e pretende levar a cabo. Não poderá também deixar de se demarcar publicamente, com clareza, do PCP, com quem, podendo e devendo confluir nas questões centrais do combate contra a direita e o neoliberalismo, não pode ter meras «divergências de opinião» – tantas vezes caladas ou escondidas, aliás, embora os comunistas não se inibam geralmente de prescindir desse cuidado –, uma vez que um e outro integram perspetivas muito diversas no plano dos modelos de desenvolvimento, de democracia e até de cultura política.
Ao mesmo tempo, deverá ainda aceitar como missão um papel federador do que poderá vir a constituir, ainda que não de imediato, uma verdadeira alternativa aos partidos do «arco da governação». Começando, desde logo, por procurar convergências eleitorais bastante amplas e que não excluam ninguém da esquerda, evitando personalizar os conflitos, aceitando a diferença, e não cortando amarras no que é essencial e pode unir. O que se passou com o Livre é bom exemplo da atitude errada: um partido que teve praticamente metade da votação do Bloco já não representa apenas a voz de uma pessoa, como erradamente se fez crer a muitos eleitores. O BE precisará, finalmente, de aceitar que, na sociedade que vivemos, o papel das lideranças é crucial para agregar vontades, procurando encontrar uma solução realmente afirmativa.
Claro que da resolução de todos estes aspetos não resultará a descoberta de uma poção mágica capaz de, num instante, reintroduzir o Bloco no caminho do crescimento político e de uma intervenção efetiva na gestão dos destinos do país. E poderá até criar algumas clivagens internas, ou suscitar indesejáveis afastamentos. Mas é preciso começar, ou recomeçar, por algum lado, e as crises de crescimento são sempre dolorosas. Sem elas, no entanto, como vincou o velho Darwin há século e meio, a vida de cada espécie não se renovará e esta acabará por definhar até à extinção. A acontecer neste caso, tal seria péssimo, e a nossa imperfeita democracia ficaria bastante mais pobre.