Escrevo isto sem prazer. A experiência do rancor tem acompanhado parte substancial do percurso histórico da esquerda. Essa sombra pode ser encontrada nos seus fundamentos teóricos, bem como em muitas das escolhas e atitudes que foram construindo a sua identidade como fator de mudança. Toma aí a forma de instrumento do combate político, geralmente fatal quando os conflitos se agudizam. Por outro lado, pode ser observada no relacionamento entre os segmentos e sensibilidades nos quais ela se foi repartindo e espartilhando ao longo de mais de dois séculos. Este é um poderoso paradoxo, capaz de pôr em causa a dimensão agregadora, solidária e antiautoritária inscrita no seu código genético. Separando de forma dramática e irreversível, por vezes com a máscara do ódio, aquilo que poderia ou deveria ter permanecido próximo.
A enunciação do ódio nasceu, porém, como proposta julgada necessária e que se desejava regeneradora, dentro dos fundamentos teóricos do jacobinismo e depois do marxismo. Para as duas correntes do pensamento político moderno, a edificação de um mundo novo, progressivo, tendencialmente perfeito, bem como a preservação da sua conquista para além do instante revolucionário, presumiam a destruição forçosa, irrevogável e violenta, do antigo. Ao mesmo tempo, impunham a liquidação das forças situadas na origem última de todas as injustiças e o combate frontal àqueles que de algum modo as pudessem representar, defender ou sequer evocar. Para os revolucionários franceses o fim definitivo do Antigo Regime passava pelo combate sem tréguas àqueles que o haviam sustentado ou que com os seus valores caducos aceitassem pactuar. Meio século mais tarde, para aqueles que no interior do movimento operário e socialista começaram a opor-se de forma organizada à ordem perversa do capitalismo, a violência que inevitavelmente compreendia a intervenção da luta de classes impôs-se também como imperativo.
Por outro lado, já nesses momentos fundadores podiam observar-se sinais da instalação de uma dinâmica do rancor, assumindo o caráter imperativo da eliminação pela força de toda a divergência perante um programa político tomado como certo e salvífico. Robespierre e Saint-Just viam inimigos por todo o lado, em particular nas fileiras da própria revolução, de cuja alma se criam senhores, lançando-se sobre todos aqueles que questionassem o grau de irredutibilidade e de pureza de princípios da nova ordem. «Deveis punir não apenas os traidores, mas também os apáticos; deveis punir quem for passivo na República», proclamava o «Arcanjo do Terror» à sombra da guilhotina. Ainda que numa escala incomparavelmente mais benévola, Marx e Engels cedo procuraram mostrar que o caminho irrevogável para o comunismo não seria possível sem uma direção revolucionária em condições de interpretar o sentido da história e de comandar a guerra, a «luta final» – com a violência como «parteira da História» – que traria consigo a afirmação da plena igualdade e a felicidade definitiva. Alguns dos textos mais influentes de Karl Marx foram justamente aqueles nos quais direta e aguerridamente polemizou contra os que no seu campo do combate social pugnavam por vias diferenciadas das suas, minimizando o seu contributo para a derrocada do capitalismo, a abertura do horizonte da igualdade social e a própria linha do processo histórico.
A revolução russa, e em particular a dinâmica bolchevique, impuseram ao marxismo um salto neste processo. A irredutível «razão» da vanguarda política, sob a forma de partido centralizado de revolucionários profissionais, não pareceu compatível com a aceitação da vontade da maioria social, tomada como «massa», ou sequer com um qualquer diálogo sobre a legitimidade das razões dos outros grupos políticos que haviam lutado contra o czarismo. Lenine e Trotsky, em particular o primeiro, nunca deixaram dúvidas a esse respeito. Grande parte da obra de Lenine como polemista fez-se, aliás, contra aqueles que se lhe opusessem dentro do movimento operário e socialista, dentro do seu próprio partido e, nos poucos anos que ainda viveu de forma ativa depois de 1917, dentro também das estruturas do poder dos sovietes. A retórica violenta que utilizava, transformando todo o que dele discordasse num adversário a abater, usando sem hesitar o ataque ad hominem como instrumento fulcral do combate político, viria a servir, de futuro, como arquétipo para o padrão de discursividade mimeticamente utilizado, dentro de uma parte significativa dos partidos e movimentos de orientação comunista, para isolar, afastar, e em muitos casos aniquilar, todos os que tivessem a ousadia de divergir ou, pior, de verbalizar publicamente a divergência.
Os processos de depuração postos em prática em diferentes momentos e latitudes, ao longo do que Hobsbawm chamou de «era dos extremos», sensivelmente o curto século que vai de 1914 a 1991, possuem essa marca. E, se é verdade que foram particularmente ampliados por Estaline e Mao – só para referir os principais modelos, que acompanharam práticas genocidas com a complementar perseguição de um volume incontável de comunistas real ou imaginariamente «desviantes», numa dimensão de paranoia persecutória institucionalizada –, a verdade é que nasceram da dinâmica primitivamente imposta na vulgata marxista-leninista. Dinâmica que associava a «ditadura de classe» e a própria ideia de revolução ao conceito de verdade científica, única e irredutível, núcleo do pensamento único. A história dos Estados do «socialismo realmente existente», da antiga União Soviética à sobrevivente Coreia do Norte, é tristemente eloquente a tal propósito. Como o foi o laboratório da Guerra Civil espanhola ou o cego apoio de tantos compagnons de route aos Processos de Moscovo de 1936-1938 e às suas sequelas dos anos quarenta. Nada que Orwell e Camus não tivessem compreendido a seu tempo, chamando a atenção para as dinâmicas persecutórias do pesadelo. Aliás, a história da esquerda, devedora do «socialismo científico» mas situada fora da experiência do poder de Estado, integrou também a vertigem do ódio, não escapando a ela os grupos e os grupúsculos nos quais, particularmente a partir da década de 1960, se dividiu e subdividiu a extrema-esquerda. Nesta, um «antidogmatismo» ultradogmático emergiu mesmo, ainda que verbalmente tal fosse negado, como espetro superveniente da paranoia estalinista, com o seu cortejo de medos, de ostracismos e até, em situações-limite, de execuções sumárias.
Em Portugal, ainda que sob condições sob diversos aspetos menos dramáticas, este processo não deixou de fazer também o seu caminho. Após o 5 de Outubro de 1910, já podemos deparar com a paisagem da divisão e do rancor entre os setores republicanos, por vezes levados ao limite da ostracização e do assassinato. Mas é sobretudo na história do Partido Comunista e dos grupos que procuraram combatê-lo «pela esquerda» que podemos encontrar esse padrão de vertigem do rancor. É verdade que parte dessa irredutibilidade foi determinada pelas condições de clandestinidade, que impunham uma vigilância severa e a necessidade de firmeza e de desconfiança nos aspetos relacionados com a segurança, mas o percurso do PCP, na clandestinidade ou, a partir de 1974, já fora dela, atesta de que modo a definição da linha dominante passou quase sempre pela diabolização da alteridade ou da expressão pública da dúvida nos assuntos que tivessem a ver com a aplicação literal da linha política.
Particularmente longe foi, neste processo, um dos poucos textos teóricos débeis de Álvaro Cunhal, O Radicalismo Pequeno-Burguês de Fachada Socialista, publicado em 1971 mas até hoje reeditado por diversas vezes, continuando a fazer parte das «leituras recomendadas» aos jovens militantes. Nele o combate aos setores e agrupamentos esquerdistas, na altura em rápida expansão entre a juventude universitária, os setores profissionais liberais e alguns círculos da emigração, foi acompanhado por generalizações absurdas e ataques assumidamente pessoais de uma grande violência, procurando excluir do combate antifascista, e até do relacionamento pessoal, quem neles pudesse estar envolvido. De acordo, aliás, com a lógica idêntica que uma boa parte dessas correntes minoritárias desenvolvia em relação aos comunistas ou no seu próprio combate de fações. Os episódios, alguns rocambolescos, outros dramáticos, vividos nos meios da oposição emigrada – no Brasil, em Paris, em Argel ou em Praga, provavelmente também em Moscovo, embora aqui os dados escasseiem – documentam de forma eloquente esse panorama de conflituosidade extremada e inflexível. Parte da qual ainda subsiste na memória daqueles que a testemunharam.
Naturalmente, o processo revolucionário que se seguiu ao 25 de Abril, com as suas contradições, urgências e dificuldades, e a intensidade do combate político que impôs, não só não resolveu como dilatou esse clima. Os quarenta anos de história da democracia nascida a 25 de Abril fizeram-se, pois, dentro de um cenário que preservou traços dessa ecologia do rancor. De um lado, o PCP, excluindo liminarmente, em defesa da identidade definida pela sua direção, quer uma eventual aproximação aos «social-democratas» do PS, quer uma interação efetiva com a esquerda situada à sua esquerda, que aliás se esforça por ignorar. Do outro, dentro desta «esquerda extrema», continuou a operar-se uma fragmentação que tem na irredutibilidade perante fações concorrentes, mais do que em efetivas divergências no plano da intervenção pública imediata, o seu fundamento maior. Na viragem do milénio, a experiência do Bloco de Esquerda, com a sua dinâmica integradora e «frentista», com a sua linguagem urbana, moderna e democrática, contrastante com a velha língua de pau da ortodoxia marxista-leninista, com a abertura social que revelou no plano das causas transversais e que lhe valeu um rápido e justificado êxito eleitoral, pareceu escapar a esse universo atávico. A evolução mais recente, associada uma redução do léxico político e a uma recusa de qualquer aliança que possa traduzir-se em concessões no plano de objetivos maximizados, tem todavia trazido de volta a instalação de alguma crispação na abordagem da divergência pessoal e política, bem como da política de alianças.
As condições de circulação da informação e de democratização da opinião trazidas pela Internet e pelas redes sociais tem entretanto, na medida em que estas dão voz a um conjunto sem limites de escolhas políticas e de cidadãos a quem basta digitar um teclado ou um smartphone para projetar alguma voz, proporcionado uma ampliação desse clima de permanente conflito e animosidade, demasiadas vezes de distinto ódio, que tem dividido historicamente a esquerda. Basta lerem-se alguns blogues e uns quantos comentários do Facebook para ver emergir uns quantos Saint-Just fora do prazo de validade. Basta acompanhar referências a temas sobre os quais as respostas moderadas e as respostas radicais se separam para deparar com a jactância ou, pior, a injúria e a discriminação liminar de quem não pensa exatamente da mesma forma. Poderá argumentar-se que se trata de universos reduzidos, quase sempre com um certo grau de identificação geracional, o que é verdade, mas a sua persistência não deixa de representar um sinal nefasto.
Desta forma, a dimensão saudável da divergência, a riqueza da pluralidade das escolhas, o valor da persuasão e da aceitação das regras essenciais da interação democrática no campo das diversas esquerdas, metamorfoseiam-se recorrentemente num linguajar babélico, feito de exclusões, de ofensas, de conflitos extremados, que envenenam qualquer esforço de convergência, afastam o cidadão comum e apenas enfraquecem o que de momento é dramaticamente urgente: a construção de uma alternativa ousada, credível e inteligente ao estado de calamidade pública. Este panorama é geral, atravessa fronteiras, mas toca-nos mais profundamente quando o confrontamos com o nosso inferno particular. Pois como é possível unir e projetar a mudança se se começa por condenar e excluir quem de facto nos está mais próximo?