Longe de ser consensual ou de causar indiferença, a escolha do Nobel da Literatura deste ano tem suscitado reações extremadas, algumas um tanto irracionais. Ainda bem que assim acontece, pois não é todos os dias que tantas pessoas, incluindo-se nestas algumas que pouco ou nada se interessam realmente por literatura, e mais em particular por poesia, exercem o seu direito a pronunciar-se sobre a justeza ou a desrazão de um prémio desta natureza. Nas redes sociais, onde o repentismo e a facilidade da escrita são um microfone aberto, essas opiniões têm sido particularmente ferozes.
Em boa medida por razões geracionais, fiquei feliz com a escolha. Bob Dylan – ou melhor, os diversos Dylan de um trajeto obstinado e sinuoso – tem, sem dúvida, um lugar fulcral na banda sonora e na educação poética da minha vida. Além disso, sempre fui dos que valorizam tanto o texto quanto a música das canções nas quais reparam e de que gostam. Mas tal não significa que tenha julgado a opção do Comité Nobel necessariamente a melhor. Se me pedissem antes para escolher vinte candidatos ao prémio, talvez não colocasse lá Mr. Zimmerman, mas isso aconteceria também com a muitos dos autores premiados pela academia sueca. O que me interessa aqui é outra coisa: qual o motivo que levou a decisão a paroxismos de análise e à exaltação dos ânimos? Respondo centrado em dois aspetos.
O primeiro prende-se com a forma como algumas pessoas entendem a relação entre o que em tempos se chamou a «alta cultura» e o peso da nova «cultura popular», com tudo o que esta representa nos países mais industrializados e suas periferias, sem nada já a ver com a perspetiva estritamente etnográfica. Prende-se também com um entendimento limitado a propósito do que são, desde o início do século passado, os suportes materiais das diversas formas de arte. Hoje de forma alguma limitados aos livros em papel consultados no silêncio das bibliotecas, à música escutada em reservadas salas de concerto ou às exposições propostas da forma mais tradicional, apenas física, por museus e galerias.
O debate, que se presumiria já fechado, entre a negação de Adorno e o fascínio de Benjamin a propósito do papel da arte como advento da reprodutibilidade técnica e processo de «desartização» (Entkunstung), parece, afinal, estar ainda para durar. Alimentado, principalmente, por quem entende que a sagrada «aura» da obra, seja qual for a modalidade artística em que seja produzida e revelada, é parte integrante da sua essência, devendo, por isso, ficar remetida a momentos, locais, espíritos e instrumentos que não podem ser vulgarizados. Curiosamente, este confronto permaneceu transversal ao eventual choque entre a cultura conservadora e uma outra que se presume progressista, partilhando, muitos dos seus defensores, a mesma rejeição pelo que entendem como a descida do objeto artístico à rua.
O segundo aspeto tem a ver com o contexto. De início numa área central que partiu dos Estados Unidos e do Canadá, se estendeu depois à Europa (incluindo, embora a um ritmo mais lento, parte dos países do «socialismo real»), à América Latina, e por fim a quase todo o restante planeta, emergiu a partir dos meados da década de 1950, acompanhando a explosão demográfica, o crescimento da classe média e a definição da juventude como estado social autónomo, um padrão cultural e um estilo de vida partilhado que incorporou uma forte dimensão libertária e mesmo igualitária. É verdade que foi também nessa altura que se definiu a dinâmica opressiva da sociedade de consumo e uma certa padronização do gosto associada à cultura de massas, mas essa foi apenas a parte menos diurna do processo.
Muita da democratização da política, da sociedade e até da vida privada passou por este percurso, que teve nos ambientes associados à música moderna de expressão anglófona saída dos sixties, bem como às atmosferas criadas pela contracultura norte-americana, uma das suas vias. Dos Estados Unidos ao Japão, da Argentina à Checoslováquia. Até em países como a Espanha e Portugal ele se implantou e cresceu de forma constante e muito rápida, contribuindo aqui, tanto quanto a luta mais assumidamente política, para construir entre a juventude estudantil e operária, a classe média, os artistas, os intelectuais e muitos profissionais liberais, um clima de desafetação e de resistência à moral conservadora e às ditaduras.
Esta revolução não passou apenas pela construção de uma sensibilidade estética e de uma perceção do mundo, erguida em boa medida à margem das grandes ideologias, e encontrou em vozes, músicas, imagens e palavras como as do bardo Dylan – um dos expoentes máximos e mais elaborados dessa agência –, o seu alimento e o seu veículo. Esta influência, diversificada ao longo de cinco décadas e meia, desde o primeiro álbum de 1961, tem permanecido no arsenal da cultura contemporânea. Treinando a vida em contramão, «like a complete unknown, like a rolling stone», como sublinha a notável canção do álbum Highway 61 Revisited. O que nem todas as sensibilidades estarão em condições de compreender e sobretudo de aceitar como instrumento de libertação e legítimo ideal de felicidade pessoal.
Quanto à dimensão de Bob Dylan, para além do seu papel histórico «por ter criado novos modos de expressão poética no quadro da tradição da música americana» (palavras do Comité Nobel), desdobrando-a, com um impacto sem precedentes, até novos públicos, e também como autor e poeta no sentido mais canónico, deixo-a para a observação daqueles que o oiçam e leiam com verdadeira atenção. O que nada tem a ver com gostar-se ou não, aceitar-se ou não, esta escolha. Eu teria preferido Claudio Magris, por exemplo, mas fiquei feliz na mesma. Muito e, acreditem, cada vez mais.
Nota: Não gosto de fazer publicidade ao que escrevo (…mania geracional, bem sei), mas relembro um livro meu que procurando bem talvez encontrem ainda por aí: O Poder da Imaginação. Cultura, rebeldia e resistência nos anos 60 (Angelus Novus, 2003).