Episódio recente fez voltar alguma atenção para a história do Gulag soviético, bem como para a de outros «sistemas de campos» erguidos em nome dos projetos progressistas que perverteram. Sobre o tema existem hoje muitos milhares de livros e artigos, bem como milhões de documentos publicados, sobretudo no campo da história e da reflexão política, bem como nos do memorialismo e da literatura. Isto torna quase impossível entender, salvo por ignorância ou cegueira, como é possível haver ainda quem negue, legitime ou defenda o feroz sistema repressivo que, também porque mais duradouro, um maior número de vítimas causou. Com a agravante de o ter feito – e de ainda o continuar a fazer, se olharmos o que se passa hoje na China e na Coreia do Norte –, formalmente em nome do direito à igualdade, à liberdade, à justiça e à dignidade humana, que afinal pôs em causa de forma brutal. Levando ao extermínio e ao sofrimento de largos milhões de seres humanos – entre eles também de um número imenso de comunistas e de antifascistas – e manchando o grande ideal do socialismo e do comunismo. Grande parte dos seus defensores ainda não fez o suficiente para se emancipar dessa vergonha, preferindo muitas vezes menorizá-la ou mesmo negá-la.
Deixo aqui um extrato do meu livro No Labirinto de Outubro. Cem anos de revolução e dissidência (Edições 70, 2020, aqui a págs. 106-112), onde o tema é abordado em articulação com um quadro de compreensão teórica ausente, todavia, deste fragmento.
«(…) Entre 1936 e 1939, o «Grande Terror» desencadeado por Estaline irá fundar a sua própria legitimidade no carácter necessariamente impiedoso para com os «inimigos internos», efetivos ou eventuais, da ditadura do proletariado, mas também sobre a tradição de dureza e impiedade desenhada por Lenine, conduzindo-a agora a proporções gigantescas e dirigindo-a em muitos casos para o levantamento de processos sumários de purga política e de eliminação física a um número impressionante de convictos comunistas, muitos deles devotados militantes desde os tempos do czarismo, quadros importantes do Partido e do Estado, independentemente da sua posição e das provas dadas no tempo dos czares e nos primeiros anos da revolução. Para além destes comunistas da primeira hora, os sobreviventes dos partidos democráticos que haviam participado na Revolução de Fevereiro de 1917, determinados grupos sociais, adversários «naturais» dada a sua condição de classe ou a impossibilidade pelo seu trajeto de merecerem confiança política e elementos ou dirigentes de diversas minorias nacionais, compuseram o lote de «inimigos do povo» cujo fim rapidamente ficou decidido com os primeiros «grandes processos de Moscovo» iniciados em Agosto de 1936. Sobre eles, o exercício da violência foi uma constante e desenvolveu-se em crescendo.
Mais alguns dados. Só a «primeira ordem operacional», a número 00447, de 30 de Julho de 1937, levou à prisão de 767.397 pessoas, das quais 386.798 foram fuziladas. Dias depois, uma outra ordem, a 00486, ordenará a prisão de cerca de 18.000 mulheres e 25.000 crianças, familiares de muitos dos primeiros detidos, e que foram condenados como «inimigos do povo». Entre Outubro de 1936 e Novembro de 1938, o número de detidos foi de 1.565.000, sendo 668.305 deles executados e os restantes enviados para o Gulag. Sublinhe-se que alguns estudos recentes consideram estes números subvalorizados, uma vez que não existe registo de muitos dos presos e dos fuzilados. E isto apenas para período do «Grande Terror», não contabilizando as vítimas dos grandes processos da década de 1940 e dos inícios da década seguinte.
A construção orgânica do Gulag, a Glavnoe Upravlenie Lagerei (Administração Central de Campos), iniciada com o levantamento do campo das ilhas Solovetsky, no Mar Branco – a transição formal do mosteiro para o campo de concentração foi iniciada em 1922, apesar de já antes ali ter sido instalado um campo de detenção particularmente severo –, define a forma mais perfeita e organizada de violência. Aquela que se exerceu sobre as vidas e as capacidades de milhões de pessoas, em nome da sua eventual «reeducação» política, do indefinido prolongamento do castigo para os «incorrigíveis» e da utilização sistemática do trabalho escravo para a prossecução de metas políticas e económicas do Estado Soviético. Em Gulag. Uma história, publicado em 2005, Anne Applebaum procede a uma exaustiva análise documental do historial, do funcionamento, dos objetivos e dos resultados do sistema. Ultrapassa, mas confirma também, os dados apresentados na obra de Alexandre Solzhenitsyn, publicada no ocidente em 1973, […] debaixo de uma grande controvérsia, que funcionou ainda não tanto como livro de história, mas como um libelo acusatório. No seu historial do horror direcionado, Applebaum distinguirá Auschwitz do Gulag essencialmente pelo facto deste último «não estar propositadamente organizado para a produção em massa de cadáveres», embora, como não deixa de acrescentar, «em certas ocasiões o tenha feito». O número dos sentenciados e dos mortos, independentemente das controvérsias que sobre a sua verdadeira dimensão existam, situaram-se, em qualquer caso, na ordem dos milhões.
Ao mesmo tempo, a deportação em massa de cidadãos soviéticos de diversos grupos sociais, regiões e etnias, irá amplificar a dimensão da violência interna imposta a uma parte muito substancial da população. Ela visou formalmente os «elementos socialmente perigosos», os grupos sociais olhados como uma potencial «quinta coluna» do inimigo externo e interno em caso de guerra, os povos que devido a determinados comportamentos ou tradições «mereciam» ser punidos, as elites nacionais dos territórios anexados pela União Soviética. Mas integrou também, por parte do poder, uma lógica de utopia e de voluntarismo edificadores, materializada num esforço de engenharia social: uma mão-de-obra abundante e praticamente sem custos destinada a obras gigantescas de domesticação da natureza ou a determinadas áreas de produção, mas de igual modo forma de esbater os particularismos nacionais e étnicos produzindo a utopia de um «povo soviético» homogéneo. Estima-se que, entre 1923 e 1953, 130 operações de deportação em massa tenham afetado pelos menos 14,5 milhões de seres humanos, destinados ao Gulag ou a regiões distantes, uma parte dos quais veio a morrer por dificuldades de adaptação ao clima, severa escassez de meios de subsistência ou desumanidade do regime de trabalho, muitas vezes associado a punições de natureza disciplinar.
Quando penetramos nos relatos daqueles que conseguiram sobreviver aos espaços carcerários de extermínio ou de trabalho, desde os Lagern nazis à rede imensa e complexa do Gulag soviético erguido sobretudo entre as décadas de 1920 e 1940, percebe-se, porém, que a caracterização do encarceramento concentracionário – «a experiência do século» como lhe chamou o escritor Heinrich Böll – diverge entre os dois sistemas que na Europa a ele recorreram num aspeto crucial. Nos grandes campos alemães, o detido era-o num tempo que antecedia a mais do que previsível inevitabilidade da morte. E sabia-o de antemão, uma vez que pertencia, em regra, a um grupo destinado a ser erradicado de forma mecânica, absoluta e implacável. Uma inflexibilidade revelada até na impiedade nazi perante as crianças, atitude pouco comum nos campos soviéticos. A norma quotidiana nos redutos do Holocausto era a da luta sem tréguas e mais extrema do prisioneiro, a cada instante imerso no medo, no horror, na disciplina de ferro, no tormento mais intolerável e na antevisão da morte, pela conquista de um estreitíssimo limiar de sobrevivência. Apenas mais uma noite, só mais uma hora, um minuto mais, um breve instante para olhar a luz do dia pela última vez. É esta crua realidade que evocam, entre muitos outros, os conhecidos relatos memorialistas de Élie Wiesel ou de Primo Levi, quando enfatizam dramaticamente a ausência de limites na mais brutal luta pela vida.
Já com as vítimas da Administração Geral dos Campos de Trabalho Corretivo, esboçada logo na época do Terror Vermelho pelo poder bolchevique – Applebaum recorda que o primeiro estabelecimento foi aberto em Semenovsky, perto de Moscovo, logo em Outubro de 1918 –, não eram necessariamente a origem étnica e a condição social a determinar a pena e o encarceramento. Detidos e deslocados pelos mais diversos motivos, os internados eram genericamente classificados como representantes do «inimigo de classe», sobreviventes incómodos de um tempo a ultrapassar, obstáculos vivos, quase sempre tomados como irrecuperáveis, que apenas embaraçavam a caminhada triunfal do «homem novo» e deveriam ser banidos por uma vez da sociedade. Por isso, a desumanização e a demonização do prisioneiro, sendo reais, foram em regra circunscritas ao seu lugar de alvo a ferir no combate por uma necessidade histórica que a ditadura do proletariado e a construção do socialismo pretendiam forçar. Nestas condições, o essencial do esforço carcerário era aplicado na erradicação dessas pessoas do convívio social normal, ou, num certo número de casos, na sua «reeducação» pela via da disciplina e do trabalho. Não na mecanização sistemática do extermínio, o que impõe uma qualificação diversa do sistema concentracionário soviético.
Esta característica é decisiva para compreendermos um lado da vida no imenso território do Gulag que uma boa parte da sua memória escrita e oral nos oferece. A evocação que fazem os autores que puderam sobreviver ao maior, mais duradouro e mais povoado dos sistemas de campos da História não se limita ao testemunho individual do sentimento de injustiça, da dor, da solidão, da exaustão e do silenciamento, ou, em alguns momentos, ao relato da punição arbitrária e da tortura, suficientes para deixarem, junto deles, dos seus familiares ou dos poucos amigos e próximos que lhes não fugiram, metástases de um passado que não foi possível apagar. Ela integra também uma outra dimensão, permitida por uma expectativa persistente de sobrevivência, «apesar de tudo», que moldou existências pessoais e sociabilidades, e foi traduzida, no quotidiano dos campos, na busca de um caminho redentor confinado aos pequenos refúgios de conforto pessoal, de conservação da dignidade e de demanda do humano, associados por vezes a uma particular consciência de missão que forçava a sobrevivência.
A violência funciona aqui como um enquadramento geral da existência humana, considerada, do lado daqueles que a impõem, do lado das vítimas que a suportam, e também na perspetiva dos cidadãos comuns, que de alguma forma a incorporam no quotidiano, em condições de impor uma naturalização da intervenção do próprio Estado, que tem o sistema repressivo como eixo e como fator omnipresente. Em Sussurros, Orlando Figes propõe, recorrendo a uma pesquisa aturada que integrou depoimentos de diferentes gerações, uma história da União Soviética construída a partir de experiências da vida privada, individual ou familiar, que documenta muito impressivamente esta presença constante, em larga medida interiorizada, ou então assumida como parte de um dever social – traduzido na vigilância ou na denúncia, e no medo a elas associado – que normaliza um império da autoridade que reduz ao máximo a dimensão humana da privacidade, a autoestima dos indivíduos e até a própria noção de felicidade pessoal.
O que mais importa na observação deste processo de imposição de uma determinada conceção da violência, entendida como necessidade revolucionária, prende-se com a forma como ela contribuiu, em larga medida, para a construção e a ampliação de um modelo centralista, autoritário e unívoco do sentido do processo revolucionário que 1917 abrira; e, ao mesmo tempo, como ela determinou a exclusão de outras possibilidades interpretativas e de diferentes agentes da mudança, silenciados ou incapacitados para o reconhecimento de outras possibilidades. Por outro lado, ajudou a legitimar e a definir um modelo de governação autoritária e repressiva, apoiada em diretivas rígidas, na intervenção da polícia política e na censura, que virão a ser replicados, ainda que sob diferentes formas orgânicas, nas experiências de socialismo de Estado inauguradas e desenvolvidas após o termo da Segunda Guerra Mundial.
A partir do final da década de 1980, logo após a abertura parcial dos arquivos do Estado conservados na ex-URSS e nos países do antigo bloco socialista, que se seguiu ao colapso dos regimes aí instalados, a atitude de condenação, até essa altura principalmente fundada em pressupostos de uma natureza política ou ideológica, passou, num primeiro impulso, a ser sustentada por um amplo conjunto de testemunhos e de documentos que então surgiam em catadupa. Nos derradeiros anos da União Soviética, a atividade da Associação Memorial, criada em 1988 por um grupo de dissidentes do regime – entre os quais se encontrava Andrei Sakharov, Nobel da Paz em 1975 – materializou esse esforço associado um reconhecimento mais objetivo e completo do passado, preenchendo áreas e experiências silenciadas ou abertamente reprimidas durante décadas. «1917», longe de corresponder apenas a uma data brilhante, a comemorar em desfiles políticos e otimistas sessões públicas, ou de servir como instrumento de mobilização para a hipótese revolucionária, passou, de uma forma crescentemente pública, a evocar também o arranque e o trajeto histórico da primeira grande experiência do século XX justificada por uma metanarrativa legitimadora do caráter imperativo das escolhas definidas a partir do centro do sistema político.
O volume de testemunhos dessa experiência é particularmente esmagador, tanto na quantidade, quanto pela extrema dureza do sentido. Particularmente porque, ao contrário do que seria de esperar da parte de quem foi alvo, ao nível pessoal, familiar ou de comunidades inteiras, de semelhantes processos, a larga maioria dos depoimentos mais consistentes e importantes não assume a condição de libelos contra o regime saído da Revolução de Outubro, embora o sejam, sem dúvida, em relação aos seus executantes na área do poder e às escolhas que impuseram. De facto, um número importante de cidadãos que foram objeto da repressão considerou mesmo, e repetidamente, a possibilidade de estes ficarem a dever-se a infelizes enganos ou a excessos de zelo, e não a uma efetiva culpa em condições de requerer punição.
Sobre este tema existe um número muito considerável de depoimentos escritos, tanto do ponto de vista da narrativa memorialista dos factos, quanto no plano da ficção romanesca e mesmo da produção poética. Obras como as da antiga bolchevique Melgunova-Stepanova, do escritor, jornalista e poeta Varlam Shalamov, da dirigente socialista-revolucionária Ekaterina Ulitskaya, da escritora Eugenia Ginzburg, para além da incontornável produção de Alexander Soljenitsine, são testemunhos simultaneamente pungentes e acompanhados de um esforço de racionalização de incontestável valor histórico. Em anos mais recentes, porém, e tal como tem ocorrido a propósito do Holocausto nazi, a perceção desta realidade tem sido objeto de formas de negacionismo. Logo após a morte de Estaline, e principalmente a partir do XX Congresso do PCUS, a denúncia pública dos «excessos cometidos» e mesmo dos crimes, foi levada a cabo, como estratégia de fuga perante a culpabilização pública, por algumas das figuras e autoridades que por eles haviam sido responsáveis. Os números avançados por Krushtchov, e antes dele, de forma particularmente significativa, por Lavrentyi Beria, desde 1938 o todo-poderoso comissário do povo para o Interior, com responsabilidade total sobre a atividade do NKVD, da censura e da rede de campos destinada a internar opositores reais e, sabe-se hoje, frequentes vezes imaginários, são dessa tentativa claro testemunho. Anne Applebaum remete para os documentos oficiais nos quais Beria, pouco após a morte de Estaline, procedeu a esse inventário, os quais, para o período entre 1936 e 1953, rondam sempre números na ordem de sensivelmente entre 1,3 e 2,6 milhões. Krushtchov falava de dezassete milhões de presos que passaram pelos campos de trabalho apenas entre 1937 e 1953. Sendo os dados apresentados pelos próprios responsáveis, naturalmente pecarão sempre por defeito, excluindo, além disso, os prisioneiros mortos nos campos ou em trânsito.
A recolha de testemunhos foi, naturalmente, muito ampliada durante a perestroika. Todavia, circunstâncias diversas têm vindo não apenas a desencorajar essa busca, mas mesmo a silenciar a existência dos mecanismos repressivos ou até a justificar a necessidade da sua existência. O governo de Boris Ieltsin e depois os de Vladimir Putin desencorajaram de todo qualquer esforço nesse sentido, em boa parte apresentado como desprestigiante para o Estado russo. Em entrevista concedida ao diário britânico The Guardian, a escritora, jornalista e ensaísta bielorrussa Svetlana Alexievich, Nobel da Literatura em 2015, afirmou, comentando esta tendência, que para os governos de Moscovo «Estaline e o Gulag não são história».