Após a primeira tomada de posse de Barack Obama, a forte dimensão simbólica de teor emancipatório que representava, a sua integração no combate pelos direitos cívicos, vinda dos anos cinquenta, foi insuficiente para que sectores associados à esquerda mais ortodoxa lhe dessem o benefício da dúvida, começando de imediato a erguer a voz contra o que nesse momento materializava um forte sinal de esperança para o povo americano e boa parte do mundo. Assim voltou a acontecer agora, a partir do próprio dia da tomada de posse de Joe Biden e Kamala Harris. Mesmo ocorrendo esta numa altura crítica, quando os Estados Unidos enfrentam a dupla e grande ameaça, herdada dos anos de Trump, expressa na ausência de uma política coerente contra a pandemia e na iniciativa agressiva da extrema-direita e do suprematismo branco.
Nem o facto de Biden ter assinado de imediato, no próprio dia da tomada de posse, diplomas de sentido progressista sobre a emergência climática, o fim do muro com o México, a desativação do projeto de pipeline que atravessaria terras de povos ameríndios, a regularização da entrada de estrangeiros e dos processos de concessão de nacionalidade, a desativação das medidas anti-imigração, o controlo dos despejos e execuções hipotecárias, a organização do combate à pandemia ou o regresso à Organização Mundial de Saúde – e, logo no dia seguinte, duas ordens executivas destinadas a combater a fome e a proteger trabalhadores de classe média-baixa com empregos destruídos pela pandemia – impediu os sectores afetados pela velha e persistente obsessão antiamericana, de começar, de imediato, a combater o novo governo, tomando-o como inimigo principal no plano da política internacional.
Uma lógica que continua a colocar dogmas e preconceitos à frente da realidade, definindo os EUA como inimigo principal de todos os projetos progressistas. Vale a pena recordar que, em «Imperialismo, estádio supremo do capitalismo», de 1917, Lenine deu o mote a esta perpétua fixação da América como inimigo principal. Para muitos, esta perspetiva tem sido mantida no seu quadro de análise do mundo contemporâneo, apesar de algumas importantes transformações vividas pelo equilíbrio mundial, em particular após o termo da Guerra Fria. Embora seja verdade que ao longo deste tempo a América, em diversas circunstâncias, fez por merecer o lugar de alvo principal dos que se batem por um mundo melhor e mais justo. Por aquilo que foi representando na ordem mundial, pelo lugar ocupado pela sua poderosa máquina industrial, financeira e militar, pela agressividade e o reacionarismo de parte da sua elite dirigente, e por muitas das criminosas ou desastradas intervenções externas que tem protagonizado.
Todavia, a forte tradição democrática e igualitária, de luta por direitos essenciais, que também comporta, e que remonta aos anos da luta pela independência e da aprovação da Constituição, torna cega e injusta toda a generalização que tenda a transformar em uno, inamovível e sem retorno o que é, de facto, diverso e dinâmico. Prova-o o que ocorreu no mandato de Donald Trump e agora com o episódio ocorrido a 6 de janeiro no Capitólio de Washington, D.C., mostrando em carne viva a aguda e dramática divisão da sociedade americana entre a parte que se bate pela separação democrática dos poderes, por uma sociedade mais justa, pacífica e inclusiva, pelo primado do conhecimento e da lei, e outra parte protofascista, associada à ignorância e mesmo ao crime, que defende de forma cega e violenta o autoritarismo, o racismo, a desigualdade social e a atitude imperial além-fronteiras.
Questionar o sistema político e social norte-americano e, ao mesmo tempo, nada dizer, apenas porque agem como adversários deste, sobre regimes autoritários, não-democráticos e igualmente agressivos como o são nesta altura o russo e o chinês, encarados até como aliados, como fazem os mesmos sectores da esquerda dogmática, constitui, no mínimo, um erro e um sinal de enorme cegueira. Naturalmente, defender a democracia na América, aceitar dialogar como o seu governo e compreender algumas das suas iniciativas, de modo algum é concordar com eles ou com os seus múltiplos e contraditórios protagonistas. Ou com a atitude imperial que por vezes assumem. Mas é reconhecer os Estados Unidos da América como parte integrante do campo democrático mundial, para cuja construção, aliás, a sua história, da praia de Omaha, na Normandia, à luta do movimento Black Lives Matter, tem dado também imprescindível contributo. Jamais como eterno e potencial inimigo, diante do qual as iniquidades praticadas pelos outros são vistas como irrelevantes.
Rui Bebiano
Fotografia de Emmanuel Milard / UnsplashVersão ligeiramente ampliada do artigo publicado no Diário As Beiras de 23/1/2021