Desde 1968, o ano em que, com Paris e Praga, despertei para a necessidade de ter uma opinião política própria e de a exprimir, habituei-me – mesmo naqueles anos, entre 1971 e 1976, em que fui bastante inflexível – a tomar o lado esquerdo do futuro e da vida coletiva como necessariamente plural. Capaz de conter, a par de uma vontade transversal e profunda de justiça social e de fraternidade, uma grande diversidade nas formas de as conceber, de as conquistar e de as defender. Estas diferenças notam-se sobretudo quando olhamos os programas, as linguagens, as formas de organização e a base social, mas de uma forma muito particular quando se confrontam os valores da liberdade, da equidade e dos direitos humanos.
Foi nestes domínios que cedo fui deparando com homens e mulheres para quem estes três fatores são, de facto, de uma importância relativa, sobretudo se o caminho que vislumbram para alcançar e conservar o poder político, o seu ou o dos seus aliados, requerer a sua relativização e a sua passagem para segundo ou terceiro plano, quando não a sua omissão. São pessoas que mantêm palavras sobre justiça, igualdade, paz, liberdade e democracia na ponta da língua, mas que as assumem, verdadeiramente, apenas dentro do seu próprio quadro de explicações e interesses, jamais como valores absolutos e inegociáveis, associados a uma humanidade plena e ao convívio na diferença das escolhas e opiniões. Consideram tais valores, na realidade, como luxos dispensáveis, e nos momentos críticos isso torna-se evidente.
É neste quadro que se torna possível compreender que não questionem os dois maiores sistemas concentracionários e tirânicos do século XX, a União Soviética de Estaline e a China de Mao, apenas contestando aquele outro, o da Alemanha de Hitler, que em número de vítimas – mortos, presos, torturados, deslocados, empurrados para campos de trabalho ou extermínio – de facto se encontra em terceiro lugar na negra contabilidade. Têm também defendido regimes tirânicos e de partido único desde que estes se apoiem numa verborreia «socializante» ou antiamericana, enquanto em outros momentos e lugares declaram defender os valores da esquerda democrática. Embora sabendo dessa ambiguidade, pois não sou ingénuo e conheço razoavelmente a história, fui convivendo politicamente com essas pessoas, sempre em nome de objetivos prioritários pelos quais poderíamos desfilar debaixo da mesma bandeira.
Existem, todavia, momentos em que esta contradição entre o que se prega e aquilo que se faz ultrapassa os limites, revelando, em quem a pratica, um fundo moral perante o qual é honestamente inevitável uma profunda desilusão. Se tivesse vivido o Pacto Germano-Soviético de 1939, talvez tivesse há muito experimentado algo desta natureza, como tantos comunistas e outras pessoas progressistas na época experimentaram com grande desilusão e uma amargura que nunca se extinguiu, mas admito que, em situação vivida na primeira pessoa, seja realmente agora a primeira vez que chego a um tal limite.
A guerra de invasão da Ucrânia e as chocantes posições de conciliação diante do espetáculo da morte e da destruição de um país e de um povo da parte dessas pessoas, a forma como pactuam com a mentira e até com teorias da conspiração, falando ocasionalmente de paz sem apontar o dedo aos agressores diretos, estão a fazer com que as transfira agora, provavelmente em definitivo, para o lado de lá barricada do combate pela minha noção de democracia, de justiça e também de honestidade pessoal. Não mais desfilarei ao lado de quem, como os fascistas ou os criminosos, pactua com a morte, a tortura e a devastação, aceitando recorrer à mentira ou à deturpação, ou desculpando-se com contextualizações ocas e contemporizadoras, não menos assassinas que as proclamações abertamente agressivas. Em questões desta natureza traço no chão linhas vermelho-vivo.
Rui Bebiano