Publicado em Outubro de 2003 na extinta revista Periférica
Senti uma certa simpatia por Václav Hável no dia em que o vi, numa fotografia a preto e branco tirada na Praga nocturna dos dias da Carta 77, durante um concerto dos Plastic People of the Universe. Nada ali fazia supor que Hável seria um dia o último presidente da Checoslováquia e o primeiro da República Checa. Naquela imagem não se notavam ainda os retoques cosméticos adquiridos pelo homem de Estado: a camisa desapertada mostrava a pele muito clara, na mão direita segurava uma enorme caneca de cerveja, o suor escorria pela cara, um cigarro acesso mantinha-se entre os lábios, enquanto o escritor conversava com alguns companheiros de ocasião. O fumo de tabaco saturava o ambiente, sublinhando o carácter pouco convencional do momento, humanizando os rostos, afastando-os das máscaras gélidas da velha guarda no poder, que a essa mesma hora dormitava em casas repletas de retratos medalhados, tirados nos desfiles do Primeiro de Maio.
Relembro essa imagem em plena fúria legislativa antitabagista, que começou a ser barbaramente imposta quando os maços de cigarros, as cigarrilhas e os charutos passaram a ostentar aquele selo horrível, acusador, proclamando a negro que «Fumar Mata». Trata-se de um óbvio caso de exagero e de abuso de confiança, mas é também a expressão de um falso moralismo escrutinador dos costumes, imposto pelas autoridades que, ao mesmo tempo, permitem o fabrico e comercialização de automóveis que atingem velocidades absurdas, relevam o consumo criminoso de bebidas alcoólicas ou, para não ir mais longe, fecham os olhos diante das responsabilidades poluentes dos escapes dos automóveis e das indústrias químicas.
Nascida nos Estados Unidos, esta expressão de um fundamentalismo galopante e farisaico tem marcado a vida contemporânea, violentando a própria memória de alguns dos seus ícones e mitos. Foi assim que, nos selos de correio da República Francesa, André Malraux perdeu o seu eterno cigarro. Já foram consideradas impróprias, e por isso censuradas, muitas fotos de fumadores inveterados, como Humphrey Bogart e Marguerite Duras (esta por acaso fumava Gitanes, quase tão fortes quanto o velho Mata-Ratos). E nem mesmo Lucky Luke, o herói da banda desenhada, conseguiu impedir que lhe trocassem a inevitável beata de tabaco enrolado por uma ridícula palhinha ao canto da boca.
Um livro sobre a história cultural dos cigarros, publicado há alguns anos pelo professor e crítico Richard Klein, pode ajudar-nos a resistir a este ataque proibicionista e rancoroso. Intitula-se Cigarettes are Sublime, e, tendo sido curiosamente escrito para acompanhar o autor no seu esforço pessoal para deixar de fumar, relata com uma grande compreensão o processo de afirmação cultural e social do pequeno vício ao longo de todo o século XX. O seu uso é aí descrito como gesto herdado, integrado na vida de um grande número de pessoas enquanto instrumento fundamental de socialização e prática capaz de gerar a sua própria tradição. Para Klein, ela pode conter, como todos os outros gestos humanos do quotidiano, tanto de bom como de mau, dependendo de quem o pratica e da forma como o faz. Nada de mais sensato e mentalmente higiénico.
Claro que não é possível negar os malefícios do tabaco, tal como não podemos negar os do álcool, os do vento gelado para quem sai à rua de manga curta, ou os da excessiva exposição ao sol de ruivos e albinos. Podemos olhar para estes factores como momentos da vida colectiva que podem atrair efeitos nefastos. Mas que produzem também a volúpia de que cada um de nós necessita, não sendo aquilo que trazem de negativo, para a imensa maioria das pessoas, mais do que chamadas de atenção para que se não exagere a dose. Eles representam o que Kant chamava de «prazeres negativos», os quais, contraditoriamente, induzem aqueles que os procuram a encontrar, no possível malefício, justamente a vertigem minimal, a rápida ocasião de puro gozo, que os leva a praticá-lo. E a saboreá-lo.
O soldado das trincheiras no momento em que a batalha é interrompida, o condenado à morte a quem é concedida a última vontade, o moribundo que deseja profundamente um último acto de prazer, conheceram esse instante de deleite à beira do fim, embora não estejam por cá para abonarem a seu favor. O deprimido, o vagabundo ou o reformado sem eira nem beira, partilham também do mesmo deleite, capaz de lhes devolver um instante de paz e de conforto. Momentos únicos de liberdade individual agora apresentados como derradeiros crimes.
Um lado mais positivo do tabaco, é, porém, definido através do conjunto de circunstâncias que têm levado um grande número de pessoas a consumi-lo. A tradição cultural é a mais conhecida de entre elas, como sabem perfeitamente os antropólogos. A história fornece também testemunhos constantes, a partir daquele, primordial, que refere o primeiro encontro de um europeu, no caso Cristóvão Colombo, com o povo arawak, habitante do actual El Salvador e sequioso fumador da erva, sugando-a por intermédio de um tubo de madeira, o tobago.
O gesto de fumar foi, ou tem sido, tomado também como figura de emancipação. A dos rapazes que, pela via do acto proibido, mais rapidamente se imaginavam adultos ou grandes sedutores. A das raparigas e das mulheres que, através do cigarro, procuravam afirmar a igualdade de direitos, ou a simples capacidade para possuírem alguns perante os seus parceiros masculinos. A dos intelectuais, apoiados no cachimbo ou no cigarro como muletas da reflexão, que, por via de um vício que conscienciosamente cultivavam e exibiam, desenvolveram formas de auto-representação da sua singularidade enquanto prevaricadores da ordem estabelecida.
Mas existe ainda uma outra situação a ter em conta, determinada por um processo de socialização mais sofisticado, a qual vê no momento de fumar um instante de encanto e conquista. Jean Cocteau anotou a atitude: «Não devemos esquecer o maço de cigarros, o cerimonial da sua abertura e o acto de extrair cada cigarro, o gesto de acender o mesmo com o isqueiro, essa estranha nuvem que nos penetra e que fazemos sair pelas narinas, pois é por meio de poderosos charmes que se torna possível a conquista o mundo.» Um «apelo estético» do acto de fumar – que nos tempos mais recentes se fixou particularmente no consumo de charutos – transformou-o assim em ocasião de reconhecimento social do parecer individual, apenas comparável aquele que pode ser conferido pelo vestuário. De Marlene Dietrich, Groucho Marx e Coco Chanel a Serge Gainsbourg, Tom Waits e ao homem da Marlboro, passando por Churchill ou Fidel, o estilo e a afirmação pública da imagem pessoal dependeram em larga medida do volátil rolo, mais ou menos cilíndrico, que mantiveram apertado entre os dedos.
Demonizar o tabaco – como o procuraram fazer também Luís XIV, Napoleão e o próprio Hitler – consiste, no fundo, em tentar integrar na dimensão do ilícito um dos actos calorosos, profundos e democráticos que têm servido para organizar a nossa existência colectiva. É, por isso, completamente estúpido tentar consegui-lo por decreto. Estúpido e perigoso. O que nos iria acontecer se alguém vislumbrasse um qualquer malefício no perfume das flores? Ao abrigo de uma nova norma, veríamos, muito provavelmente, os jardineiros reconvertidos em mutiladores de plantas. Ou em negociantes de arranjos de mesa plastificados. Perante este pesadelo, como Jorge Palma, prefiro pedir a alguém que me dê lume.
Alguns acessórios:
Livros: Cigarettes Are Sublime, de Richard Klein; Complete Idiot’s Guide to Quitting Smoking, de Lowell Kleinmann; Os Malefícios do Tabaco, de Anton Tchekov; Prazeres, de Eduardo Barroso.
Filmes: Casablanca, de Michael Curtiz; Smoke, de Wayne Wang.
Discos: Carmen, de Georges Bizet; Le Poinçonneur des Lilas e Love On The Beat, de Serge Gainsbourg; Grapefruit Moon, de Tom Waits; Dá-Me Lume, de Jorge Palma.
Adendas em Abril de 2007:
Curta-metragem: Les Derniers Condamnés de la Cigarette
Videoclip: Cigarette in your Bed