Arquivo de Categorias: Devaneios

O dogmático falhado

Poucas vezes escrevo apontamentos num registo autobiográfico. Entre outros motivos, porque sei que a autobiografia é sempre complacente e, em consequência, porque experimento algum pudor em expor aos outros essa indulgência. Porém, de vez em quando lá liberto um episódio, no qual, de uma forma óbvia, aos meus próprios olhos sairei bastante favorecido. Este é a propósito da tendência natural que tenho para resistir ao pensamento dogmático e às atitudes que, por fé, medo ou ignorância, excluem o olhar sempre crítico, embora em regra convicto, que nesta vida procuro manter.

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    Quando deixámos de nos tocar?

    Há algumas décadas ainda era natural, aqui em Portugal, ver pessoas que davam grandes abraços na rua quando se encontravam, amigas que passeavam de mão dada, homens que caminhavam de braço dado enquanto conversavam. Para além do hábito, hoje quase raro, de ver namorados de mão na mão à mesa do café ou nos bancos de praças e jardins. Nas fotografias de grupo, em jantares e encontros, os dedos por cima do ombro ou a apertar a cintura do amigo ou da amiga, eram igualmente comuns. Juntando-lhes o costume do beijo fraterno entre homens e mulheres, entre mulheres e mulheres ou, embora menos frequente, entre homens. É difícil precisar em que momento este hábito começou a recuar e estas formas de aproximação passaram a ser, como agora acontece, excecionais.

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      Reforma e idadismo

      Desde que há cerca de ano e meio fechei a fase da minha vida pessoal como professor no ativo e passei à condição de «aposentado» – um quase eufemismo utilizado para mascarar a dimensão negativa, em regra pejorativa, muitas vezes socialmente associada à palavra «reformado» – começando, como é natural, a ter uma vida algo diferente da que antes tinha. Não que me falte trabalho para realizar ou projetos para desenvolver, e alguns amigos já nem me devem poder escutar a repetir que trabalho mais agora do que antes, o que até é verdade, embora num horário bem mais maleável e sem ter de cumprir os fretes impostos pela burocracia, mas porque mudei inevitavelmente alguns dos meus hábitos, ritmos e trajetos.

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        «Relógios de repetição»

        Os «relógios de repetição» para uso doméstico ou no pulso surgiram por volta de 1890, possuindo a característica inteiramente inovadora de anunciarem com clareza, de forma acústica, uma hora pré-programada, ou tocarem um alarme por duas ou mais vezes sucessivas. Por analogia, passaram a ser pejorativamente apelidadas de «relógios de repetição» aquelas pessoas com tendência para falarem sempre do mesmo assunto, ou pronunciarem constantemente, como num eco, frases produzidas por outrem. 

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          Operários em construção

          Por um destes dias, se entretanto não mudar de ideias, procurarei escrever algo substancial e historicamente sustentado sobre o tique «obrerista» – sempre justificado no plano teórico, como é óbvio – que fez e faz com que muitos quadros de partidos e organizações ligados ao amplo e diversificado movimento comunista sintam o dever de, mesmo não tendo sido de facto operários, ao longo da vida se fazerem passar por tal.

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            Problemas de um contador

            Como a maior parte das pessoas sabe, embora nem todas levem esta perceção às últimas consequências, ficção e realidade constituem dimensões diferentes, ainda que sempre se misturem. Seja no domínio dos factos, das representações ou da linguagem. Jamais a ficção pode prescindir da realidade, pois é esta que lhe fornece os códigos básicos de comunicação. E jamais a realidade pode dispensar a ficção, pois sem ela não passaria de um conjunto de ocorrências mecânicas e sem sentido algum. Por isso não é possível deparar com ficção ou com realidade em forma pura.

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              Envelhecer (bem ou mal)

              Humanos que somos, todos envelhecemos, todas envelhecemos. Uns muito depressa, outras de uma forma imperceptível. A diferença na era das redes sociais está em que não só o fazemos a céu aberto, mostrando de que modo o tempo vai marcando a nossa existência – embora exista sempre quem jamais torne pública fotografia sua -, como podemos ter à frente, usando-as enquanto termo de comparação, imagens sem rugas que chegam do passado.

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                Quando «alguém» morre

                Jamais a alguém, vivo ou morto, incluindo a mim próprio, aparentemente vivo, considero «acima de toda a suspeita». Impressiona-me o elogio de pessoas públicas, quando estas desaparecem, feito como se elas fossem perfeitas, sem a mínima ruga ou pecado. Quando, na realidade, não existe ninguém – eu não conheço, nem mesmo ao meu mestre Camus, que ponho acima de Cristo – sem defeitos, alguns até dificilmente desculpáveis. Basta conhecê-las um pouco melhor, e eu tenho conhecido algumas, não apenas dos livros ou da televisão, cuja partida nem por isso deixei de sentir com alguma ou muita dor.

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                  Anotar é viver

                  Não será forçosamente uma qualidade, mas é uma maneira de viver. Jamais me relaciono com o mundo como mero espectador ou simples mensageiro. Muito ou pouco, de forma mais completa ou ligeira, com detalhes ou superficialmente, de forma emotiva ou mais racional, tenho sempre, muitas das vezes apenas para mim próprio, algo a dizer ou a acrescentar. A tudo: uma conversa, uma notícia, um discurso, um artigo de jornal, um livro, uma peça de teatro, um filme, uma peça musical ou um jogo de futebol. Seja sob a forma de comentário, de dúvida ou de simples anotação. 

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                    A síndrome da avestruz

                    As avestruzes a enfiarem a cabeça num buraco cavado na areia quando se sentem ameaçadas não passa de uma lenda. Na realidade, isso jamais acontece. Mas como metáfora a lenda tem feito o seu caminho, aplicando-se às pessoas que, confrontadas com uma situação incómoda ou inesperada, para a qual não encontram resposta que as deixe satisfeitas, ou que outros associam a uma solução contrária às suas certezas, contornam o tema e evitam falar dele, agindo, num processo de negação, como se não tivesse ocorrido. Ou então como se não tivesse a importância e o sentido que outros, que nem aceitam ouvir, lhe atribuem, embora possam, em alguns momentos, reconhecer que talvez eles tenham uma pontinha de razão.

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                      Neste país de fadistas

                      Fado, como se sabe, é o destino que «marca a hora», a sorte, a fortuna, encarados como inevitáveis. Daí o tom plangente do género musical homónimo. No tempo da outra senhora, era associado pelo próprio regime a uma dinâmica fatalista – relevem o oximoro – que procurava mostrar como inevitável a via da desgraça e da pobreza. Pois é esta que parece de regresso quando vejo as previsões fatalistas de muitos amigos e muitas amigas a propósito de uma hipotética vitória da direita nas eleições do próximo dia 30. Todavia, todas as sondagens – que eu saiba, exceto uma – atribuem uma vitória clara à esquerda no seu conjunto, desta expectativa apenas destoando os comentadores televisivos, alguns diretores de jornais e, claro, a própria direita em campanha frenética. É nestas pessoas que se fundam esses amigos e essas amigas para preverem tal cenário? Será imposição do genoma? Andam a ver demasiada televisão? Ora «vamo’láver»: vão é votar no sítio certo e convençam outros tantos a não deixarem de o fazer.

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                        Ler de lápis na mão

                        Não recordo o momento preciso em que deixei de ler só banda desenhada ou os livrinhos da coleção «Seis Balas», e passei a ocupar-me com volumes inteiros de centenas de páginas. Talvez por volta dos dez, quando atravessei a fase Enid Blyton, logo seguida da Emilio Salgari e da Júlio Verne. Mas desde essa época mantenho um hábito inalterado: jamais ler um livro sem ter à mão um lápis, para o sublinhar e anotar nas próprias páginas, ou então, se o não puder fazer, numa folha A4, dobrada em quatro, que serve também de marcador. Agora, quando sobretudo no campo da teoria leio mais em formato digital, faço a mesmíssima coisa, uma vez que os programas de leitura eletrónica já permitem o expediente.

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                          Blá-blá-blá, «na minha opinião»

                          Palavras e frases entram e desaparecem, como bordões da fala, de acordo com diferentes tendências ou modismos. Ao facultar exemplos, a comunicação social, em especial a televisão, tornou este processo, mais constante e célere do que ocorria em passados mais distantes. Entretanto, quem tem a profissão de professor tem a sorte (algumas vezes, também o azar) de perceber melhor esta transformação, pois os seus alunos são um bom indicador das palavras ou das frases que estão em voga, bem como daquelas que estão a desaparecer ou de todo eles já não usam. Por vezes, isto já me aconteceu em alguns momentos, o próprio professor adquire aquele tique e, sem dar por isso, de repente já o está a usar, colaborando na sua disseminação. Outras vezes é forçado a mudar para ser plenamente entendido. Não vejo nada de mal nesta tendência, que apenas torna mais veloz o processo infinito e constante de metamorfose das línguas. Aliás, língua alguma, salvo aquelas julgadas mortas, escapa a essa dinâmica, por muito que alguns puristas procurem evitá-lo ou disfarçá-lo com normas excessivamente rígidas.

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                            Exercícios de estilo

                            Tenho dito e escrito isto em diversos lugares e diferentes momentos: aquilo de que mais gosto quando leio um texto de não-ficção (alguns de ficção também) é de pensamento complexo expresso de forma clara e razoavelmente transparente. É claro que quando falo de pensamento complexo não me refiro a juízos crípticos, mas a raciocínios que não são meramente lineares, de mera causa-efeito. E que quando falo de formulações claras, não estou a falar de discursos simplórios, expectáveis e cravados de clichés.

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                              A experiência de escutar

                              Talvez tenha alguma sorte, mas, sem falsa modéstia, creio que também a procurei. Ao longo da vida, a possibilidade, determinada pela profissão, que mantive de um contacto com sucessivas e bem distintas gerações de jovens adultos, acompanhada de um esforço de atenção a todas as experiências, a todo o conhecimento, a todas as linguagens, foi-me permitindo manter uma relativa proximidade, ou pelo menos alguma capacidade de diálogo, com pessoas diferentes e mais novas que eu. Jamais deixando de ser quem sou.

                              Naturalmente, as diferenças existem, em alguns momentos vão até sendo ampliadas – só alguém cujo cérebro num dado momento petrificou pensa e age aos sessenta como o fazia aos vinte -, mas aquilo que verdadeiramente importa para uma relação não estagnada com o mundo, é saber escutar e saber falar sem impor essa absoluta «verdade» absoluta que jamais existe. É aceitar a diversidade de tudo e manter a consciência de que todas as experiências são diferentes, numa escala que nem sempre é qualitativa. 

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                                Os cafés e a nostalgia positiva

                                Para o franco-norte-americano George Steiner, um dos marcadores centrais de uma certa «ideia de Europa» foi desenhado pelo roteiro dos cafés, desde meados do século XVIII lugares ímpares «de entrevistas e conspirações, de debates intelectuais e mexericos», como escreveu o filósofo num curto ensaio sobre o tema. Abertos a todos desde manhã cedo até quando as ruas ficavam quase silenciosas e desertas, funcionaram até há relativamente pouco tempo, desde Odessa até Lisboa, passando por Viena, Paris ou Barcelona, sempre à sombra da antiga influência turca, como espaços-fortaleza de sociabilização e de reconhecimento identitário, por vezes decisivos na evolução política e cultural das cidades e dos Estados.

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                                  Como acontece com boa parte das pessoas com quem me relaciono nos espaços de sociabilidade que nos últimos tempos, devido às circunstâncias, mais tenho frequentado – como o Zoom que se multiplica por si só, o Email que jamais vai ao zero, o Instagram, o Twitter, o Messenger, o WhatsApp, o Doodle, o Academia.edu ou o Facebook, esses lugares onde é possível sentir por estes dias o rumor crepitante das multidões – tenho experimentado um cansaço constante, determinado pela progressão geométrica de trabalho a eles associada.

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                                    Pensei que se tratasse de brincadeira quando alguém me disse que Marco Paulo tinha gravado uma versão do ‘Bella Ciao’. Temi, naturalmente, o pior. Não por ter sido o cantor a fazê-lo – dentro do género, até será dos mais profissionais dos «artistas» -, mas porque, com forte grau de probabilidade, dado o estilo totalmente despolitizado dos temas que canta, este iria desvirtuar o sentido de uma canção de profundo significado na história e na memória cultural do antimilitarismo e do antifascismo. Na minha própria memória pessoal, como na de várias gerações de outros homens e mulheres que participaram na resistência à ditadura, ela é recordada em associação com momentos nos quais funcionou como instrumento de incentivo ou de encorajamento.

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