Arquivo de Categorias: Leituras

Um anticamuseanismo ciclicamente retomado

Através de um artigo que me foi enviado, acabo de tomar conhecimento da edição em França, ocorrida em setembro do último ano, do livro Oublier Camus (Esquecer Camus), da autoria de Olivier Gloag, académico francês que ensina em Ashville, EUA, na Universidade da Carolina do Norte. A sua preocupação central é denegrir a personalidade e a obra de Albert Camus (1913-1960), um dos autores do século XX mais lidos em todo o mundo, e também um daqueles que, pelo seu humanismo e preocupação com a dimensão ética da política, maior e mais duradoura influência tem mantido ao longo do tempo, incluindo até hoje, mais de seis décadas transcorridas após a sua bem trágica e prematura morte.

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    Artes, Biografias, Heterodoxias, Leituras, Opinião

    Uma situação editorial incompreensível

    Sou dos que se formaram e viveram grande parte da vida na cultura do livro e do papel, sabendo, todavia, que já se torna difícil, quando não impossível, acompanhar o mundo de hoje de uma forma próxima e atualizada se nos cingirmos a ela. Como sei que para a larga maioria das pessoas mais jovens, sobretudo no mundo industrializado, em boa parte ela já foi totalmente substituída. Porém, apesar de ter vindo nos últimos anos a doar boa parte da minha biblioteca física, ainda tenho perto de 12 mil volumes, sendo, ao mesmo tempo, leitor diário de ebooks e textos em pdf.

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      Atualidade, Cibercultura, Leituras, Olhares, Opinião

      Entre o «tu» e o «você»

      As formas de tratamento, como todos os processos usados para verbalizar a interação humana, mudam de acordo com o tempo e os lugares. Em Portugal sempre foram complexas, e nos Estados de língua oficial portuguesa, por vezes consoante as regiões como acontece no Brasil, essa complexidade é replicada. Em Formas de Tratamento na Língua Portuguesa, livro de Lindley Cintra publicado em 1972, descreve-se particularmente a formação, em boa parte por decreto régio da primeira metade do século XVIII destinado a realçar as hierarquias, das fórmulas mais cerimoniosas. Como aquele intimidatório «Vossa Excelência» que alguns ainda utilizam. No geral e em todas as línguas, essas fórmulas tendem sempre a transformar-se, acompanhando a natural evolução vocabular e o contexto cultural e social em que esta sempre ocorre.

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        Apontamentos, Democracia, Etc., Leituras, Olhares

        Enid Blyton e os criadores de imbecis

        Creio que os primeiros livros com mais de cem páginas e exclusivamente de texto que li me foram oferecidos entre os oito e os dez anos, em pequenos embrulhos com três ou quatro volumes de cada vez, na qualidade de prendas de aniversário e de Natal. Como para muitos rapazes e raparigas mais ou menos da minha geração, as histórias d’Os Cinco (Famous Five), de Enid Blyton, no caso em versão traduzida, foram uma introdução ao maravilhoso da aventura e do mistério, à construção de uma distinção entre o bem e o mal, e ainda à saborosa arte de bem merendar. A série de 21 volumes foi escrita entre 1942 e 1963, trazendo consigo o mundo benévolo e inquietante do Júlio, um jovem de bom-senso, da Ana, moça desembaraçada, do brincalhão David, da Zé, a «maria-rapaz», como se usava dizer, e do imprescindível cão Tim. Sem dúvida o meu primeiro bando de heróis.

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          Apontamentos, Atualidade, Democracia, Leituras, Olhares

          21 de Março: Dia Mundial da Poesia

          Em ‘Para que serve a poesia hoje?’, Jean-Claude Pinson tenta responder a uma pergunta atual: «O que pode ainda a poesia, quando as suas ilusões líricas do passado recente (proporcionar uma vista desimpedida para o Absoluto, “mudar a vida”…) foram desacreditadas?» Com uma intensidade ampliada quando na ordem-do-dia se encontra a eliminação por decreto – e por organizado descrédito – do que se revela supérfluo, daquilo que não possui valor de uso nem serve para trocar por papel-moeda ou linha de crédito, não podendo aplicar-se a reduzir défices, a aferir «competências efectivas» ou a cumprir «objectivos estratégicos», importa olhá-la como território da clarividência e de resistência, não meramente onírico ou projetado para a evasão, que jamais deixou de ser, mas deve reassumir.

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            Apontamentos, Artes, Leituras, Memória, Poesia

            O papel do trabalho de revisão

            Como sabe quem escreve com regularidade livros e artigos, o trabalho de revisão de um original realizado por alguém competente e sensível é crucial, podendo salvar a correção e a elegância do texto, embora possa também traduzir-se em alguns desastres. Muitos autores consagrados, certos deles premiados, sentiriam vergonha ao ler os seus originais publicados sem estes terem passado por essa etapa. E os leitores habituais nem os reconheceriam. Erros e gralhas, repetições de frases ou de palavras, parágrafos pouco claros, falhas de concordância, pontuação deficiente, e por aí afora. Basta, para quem preste atenção, ver como alguma dessas pessoas atabalhoadamente escrevem nas redes sociais e depois o modo como os seus originais são publicados impressos ou no digital.

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              Apontamentos, Etc., Leituras, Oficina, Olhares

              Pequena história com Saramago

              Esta semana, o centenário do nascimento de José Saramago deu lugar a um vendaval de artigos e comentários. Para além daqueles produzidos por quem o leu e, gostando ou não de o fazer, tem em conta a sua condição de autor único e dedicado ao seu labor, destacam-se os extremos. Refiro-me às pessoas para as quais qualquer coisa que tenha a ver com o autor ribatejano é inequivocamente positiva e sagrada, e às que do lado oposto, muitas vezes sem o lerem com atenção ou conhecerem a sua biografia, fazem juízos de valor negativos e absolutos sobre a sua escrita e escolhas. Não sou, nunca fui, e sempre o declarei, grande apreciador da sua obra, que no campo da ficção li praticamente na íntegra, mas respeito muito o seu trabalho criador e também, naturalmente, quem o aprecia, distanciando-me apenas por questões de gosto e sensibilidade.

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                Apontamentos, Ficção, História, Leituras

                Contra as abreviaturas

                Na escrita, a abreviatura utiliza um ponto final, algumas vezes um traço oblíquo, para indicar que aquela se trata de uma palavra incompleta, em condições de dispensar parte da original. Nas últimas duas décadas, o veloz processo de simplificação associado ao uso intensivo das comunicações em linha, não só aboliu o uso desse ponto indicativo, como ampliou de um modo avassalador todo esse processo de simplificação, estendendo a hipótese de recurso à abreviatura a praticamente todas as palavras, e chegando até a abreviar abreviaturas consagradas. Para quem ama verdadeiramente a sua língua ou a dos outros, pode, todavia, seja no processo da escrita ou no da leitura, tornar-se um tormento, como ainda há pouco dias, na última entrevista que concedeu, afirmou a poeta Ana Luísa Amaral.

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                  Apontamentos, Leituras, Olhares, Opinião

                  Livros, lixo e crítica no campo da história

                  Tenho desde há anos, como colaborador do Plano Nacional de Leitura, agora destinado a leitores de todas as idades, avaliado parte considerável dos livros publicados em Portugal no campo da história, ou que com esta confluem. Este trabalho tem-me dado uma boa panorâmica da edição neste domínio, seja de autores nacionais ou em tradução. Todavia, o aspeto positivo que representa a elevada quantidade dos títulos é contrariado pela baixa qualidade de uma parte significativa deles, principalmente da responsabilidade de portugueses. Esta é particularmente manifesta entre os que não são academicamente validados ou escritos por historiadores profissionais – o que também não é sempre atestado de qualidade –, dependendo apenas de um acordo entre autor e editor. Vejo três grandes problemas.

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                    História, Leituras, Olhares

                    Esquecimento e desfiguração da memória da democracia

                    Num dos últimos livros que escreveu, La mémoire, l’histoire, l’oubli(2003), Paul Ricoeur falava da possibilidade de a memória permitir aceder, não a uma revisitação ou a uma réplica, mas a uma reapropriação lúcida do passado, mesmo daquele mais afastado ou ao qual se encontrasse ligada uma forte carga traumática.

                    Destacava também o poder do esquecimento, na sua capacidade para soterrar boa parte de tudo o que aconteceu, mas também na intervenção que detém na seleção, sempre parcial e fragmentária, daquilo que se considera ser merecedor de memória. Ao constatar a impossibilidade real de tudo recordar, Ricoeur vincava o caráter seletivo da memória, concluindo ser a capacidade de esquecer um dos fatores que permite reaver parte do vivido.

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                      Democracia, Ensaio, História, Leituras, Memória, Olhares

                      O analfabeto que escreve e sabe ler

                      Em crónica escrita em 2014 para o Público, António Guerreiro identificou o portador de um género de analfabetismo que considerou particularmente daninho e enganador. Qualificou-o de «secundário» e distinguiu-o do outro, o «primário», mais diretamente associado à experiência da iliteracia, elogiada por Hans Magnus Enzensberger como algo que pode até conter uma dimensão positiva, uma vez que gera uma inocência primordial. Justamente por ser fundado na insciência, no poder da página em branco, na potencialidade do olhar ingénuo, ele pode ser terreno para as fundações de todo o conhecimento, em particular o mais essencial, de certo modo mais verdadeiro, que é o obtido de forma desinteressada, fruto natural da curiosidade, da atenção e do labor desenvolvido por cada indivíduo. Já o «analfabetismo secundário», afasta-se de tudo isto.

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                        Democracia, Ensaio, Leituras, Olhares

                        Triste cliché

                        O uso do cliché, também conhecido como chavão, lugar-comum ou estereótipo, corresponde ao uso de fórmulas constantemente repetidas, normalmente retiradas de modelos popularizados pelo que foi um modismo, agora constantemente retomado. Traduz geralmente falta de imaginação ou de capacidade para produzir um discurso próprio e com capacidade de sedução do interlocutor mais exigente. Na criação literária, é um dos piores defeitos, inimigo da originalidade e da atração pelo ritmo e pela dimensão ágil do discurso. Usa-se muito, sob a forma de jargão, no discurso académico mais conservador, levando à produção de textos que podem deter valor como resultado de investigação, mas que como narrativa estão mortos à nascença, assumindo uma forma expectável, quando não litúrgica. São feios e aborrecidos. Já na linguagem política, sob a forma de opinião ou de frase programática, são um sinal de efetivo conservadorismo formal, de ausência de horizontes fora do dogma e de enfraquecimento do «nervo» dinâmico, ainda que envolvam ideias formalmente progressistas. São de uma insipidez imensa, e por isso se tornam irrelevantes à nascença.

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                          Uma ferramenta de liberdade e inovação

                          Foram os filósofos Michel de Montaigne e Francis Bacon, no final do século XVI, a projetar o ensaio como género literário. No livro sobre o humanista francês que publicou quando a guerra iniciada com a agressão nazi arrasara já o mundo de progresso material e pluralismo que conhecera durante a juventude em Viena e Berlim, Stefan Zweig salientou que Montaigne, mergulhado numa sociedade também ela dominada pelo ódio e pela intolerância, escolhera essa forma de escrita como modo de resistência. Para escapar às «exigências tirânicas» impostas pelos grandes poderes, para se proteger «contra a submissão a regras e a medidas ditadas do exterior», começou a escrever de acordo com a sua própria consciência. Tratava-se de «tentativas», de formas de descrever e de interpretar o seu mundo sem delas procurar fazer doutrina.

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                            Orwell, 1984 e a pandemia

                            A obra de George Orwell, desde os ensaios e artigos na imprensa aos romances, manteve sempre, do processo de criação ao impacto da publicação, um vínculo fortíssimo com a atualidade. A que acompanhou a vida do autor, mas também aquela que foi tendo lugar nas décadas que se seguiram e se desdobraram até ao presente. A força deste elo nunca foi, todavia, tão evidente como com os dois romances finais, os mais conhecidos e editados: A Quinta dos Animais (em Portugal traduzido também como O Triunfo dos Porcos), de 1945, e 1984, saído em 1949, poucos meses antes da morte de Orwell. Em particular com o segundo, que superou a conceção alegórica do primeiro, limitado no essencial a um universo não-humano, onde os animais eram «todos iguais, embora alguns mais iguais que os outros». 1984 foi, de facto, construído como uma distopia humana, tendo como referente medos, realidades e conflitos que na época inquietavam o mundo. 

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                              Uma «História» complicada

                              Não costumo escrever sobre livros que não li ao detalhe. Durante perto de dez anos fiz crítica sobre livros de história, de filosofia e de política numa revista, onde tratei mais de três centenas deles, e posso garantir que os li a todos, ao ritmo regular de três por mês. É claro que num caso ou noutro passei algumas páginas com maior rapidez – neste tipo de trabalho tento ser honesto, mas não sou masoquista -, embora não tenha deixado de falar com razoável segurança sobre cada um. Desta vez, todavia, vou abrir uma exceção e comentar um livro do qual apenas li alguns dos seus 91 curtos capítulos.

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                                Consciência crítica e linguagem panfletária

                                O que se designa por panfleto, conceito vulgarizado sobretudo a partir da Guerra Civil Inglesa do século XVII, pode ter diferentes formas. Da página solta ao folheto simples ou desdobrável, do artigo de jornal ao livro, de um certo padrão de discurso público a algumas formas de intervenção artística, possuem em comum participarem na divulgação, de uma forma sempre muito acessível e direta, de opiniões ou de informações destinadas a afetar escolhas coletivas. Os grandes processos de transformação política requerem a intervenção deste instrumento, dado serem as ideias claras e precisas que tomam a sua forma a determiná-los, não os tratados políticos ou filosóficos, que quanto muito os podem influenciar lateralmente. É, pois, na simplicidade que evidenciam que reside a força que detêm, embora seja também nela que podemos encontrar a sua fragilidade e a hipótese da sua perversão.

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                                  Para que servem os livros difíceis

                                  Nunca se leu tanto como hoje. A afirmação poderá parecer estranha a quem da leitura valorize sobretudo a qualidade e a profundidade, mas lê-se de facto muito mais em quantidade e em regularidade. A prática da leitura sistemática aumenta continuamente, se nela incluirmos as necessidades da vida quotidiana, das organizações e do mundo do trabalho, a intervenção da publicidade ou da imprensa light e desportiva, e sobretudo a articulação com a televisão, a comunicação móvel e a Internet, com os seus largos milhões de sites e a omnipresença do email e das redes sociais. Já a leitura mais densa, crítica e reflexiva, apoiada na literatura de ficção e de não-ficção, para além da escrita académica e da produção ensaística, parecem, de facto, enfrentar um bloqueio. O império do zapping, associado à estridência do sensacionalismo e ao destaque dado à informação superficial, por vezes nada fidedigna, determinam um desvio que afeta até espaços onde há poucos anos seriam impensáveis, com ecos no próprio sistema de ensino, inclusive no universitário, onde os hábitos de leitura, se excetuarmos os níveis de formação mais elevados, são cada vez mais escassos e simplistas.

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                                    Do medo de ler

                                    A história da escrita e da leitura é também a história da censura e a da autocensura. Feita de temas proibidos, de lápides e pergaminhos rasurados, de livros queimados ou que não puderam circular livremente, de interpretações silenciadas, de autores atormentados e mortos, e de outros que, pelo temor da perseguição, acabaram por calar-se, por cultivar a arte do enigma, certas vezes, não poucas, por abandonar mesmo a escrita. Existem milhares de estudos, de alcance e valia diversos, sobre o caminho das práticas censórias, sobre os muitos e diferentes regimes que as estimularam, sobre autores que sob o seu peso padeceram ou sucumbiram, ou sobre obras perseguidas, muitas delas, sobretudo entre as publicadas antes da invenção da imprensa, das quais para sempre se perdeu o rastro.

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