Arquivo de Categorias: Olhares

A mentira não tem cor

Um dos fatores de destruição da democracia é hoje, como se sabe, a manipulação ou a invenção de notícias por parte da extrema-direita, ou mesmo do centro-direita, no sentido de gerar condições para a instalação do medo entre setores mais frágeis e menos informados do eleitorado. Ainda que a generalidade assente na pura mentira, isso em nada importa a quem as produz, pois o que para ela conta é o efeito produzido. Infelizmente, sobretudo nas redes sociais, estou a encontrar também, e cada vez mais, apontamentos e falsas informações, ou mesmo pura desinformação e imagens manipuladas, introduzidas por pessoas de esquerda em busca, no seu entendimento, de produzir o efeito contrário e de justificar os seus pontos de vista. O resultado é sempre igualmente péssimo, como o é combater a mentira com a mentira. Apenas se expandem os mal-entendidos e a dimensão da informação tóxica, ajudando a normalizar e a disseminar uma absurda «ética da falsidade».

    Apontamentos, Democracia, Olhares

    O prazer dos arquivos

    Tendo muitas vezes a lembrar as centenas, provavelmente os milhares, de tardes de verão que passei dentro de arquivos históricos. É um prazer antigo, que me acompanhou desde cedo, muito antes ainda de ser parte ativa de um deles. Lidar horas ou dias a fio com «papéis velhos», vindos de outras vidas, de diferentes esperanças, de modos singulares e muito desiguais de estar no mundo e de o representar. Neles, jamais me senti sozinho, ou parte de uma exposição de velharias, mas como um explorador inquieto em viagem pelo tempo. Por estes dias de muito calor, e neste tempo de constante e crescente ruído, recordo mais ainda a sua temperatura amena e o seu silêncio reconfortante. Como os de um caravançarai ou de um oásis para quem atravessa o deserto. 

      Apontamentos, Devaneios, Olhares

      Atacar o SNS é estupidez, ignorância e ingratidão

      À exceção dos que tenho no meu mural do Facebook – e mesmo a estes só consigo seguir em parte – desde há muito que quase deixei de ler comentários em redes sociais e blogues. Tendo sido praticamente pioneiro da Internet em Portugal, mantive páginas que os permitiam entre 1995 e 2003, acabando com eles precisamente porque eram, em boa medida, cada vez mais tóxicos e ofensivos, para nada servindo. Nos jornais online faço a mesma coisa, até porque essa toxidade, como se sabe, tem vindo nos anos mais recentes a piorar exponencialmente.

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        Apontamentos, Democracia, Olhares, Opinião

        Psicopatas há muitos

        Ignorante de tanta coisa que sou, tinha até há pouco uma perceção muitíssimo parcial da psicopatia e do psicopata. Julgava este, como creio que ocorre com a maioria das pessoas, apenas aquela figura antissocial, com formas muito graves de transtorno de personalidade, habitualmente associada à prática compulsiva e prolongada de crimes de sangue, em regra praticados de uma forma sistemática e tantas vezes particularmente horrível. Como o fizeram o londrino Jack, o Estripador, Harold Shipman, o «Dr. Morte», médico britânico que matava os pacientes, ou John Wayne Gacy, que se vestia de palhaço para assassinar ritualmente crianças e jovens.

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          Apontamentos, Atualidade, Democracia, Olhares

          Verão Quente: não foi isto que vivemos

          O Público começa um artigo sobre o Verão Quente de 1975 da seguinte forma: «Foram meses de instabilidade política, de anúncios de golpes e contragolpes de Estado, e também marcados por uma onda de violência ímpar. A História descreve uma realidade de trincheiras e os protagonistas reconhecem que Portugal esteve à beira de uma guerra civil. O país vivia, literalmente, a ferro e fogo. Foi o Verão quente.» Na verdade, a História (com o H maiúsculo que os autores do texto preferem usar) não descreve nada disto, ou apenas isto. O chamado Verão Quente foi um tempo de grande instabilidade política e social, sem dúvida alguma – aliás, revoluções tranquilas, sem instabilidade e hesitações, não existem -, mas também um período de conquistas, de experiências e de construção de utopias que durante décadas pautaram a vida dos portugueses e da democracia. Reduzir o Portugal da época a «um país a ferro e fogo» é um logro análogo àquele imposto pelo Estado Novo, ao longo da sua existência e a sucessivas gerações, para caraterizar a nossa Primeira República.

            Apontamentos, Democracia, História, Olhares

            Ruído na praia

            Gosto de mar e da proximidade do mar, mas não de passar horas na praia, entre grãos de areia, golpes de sol e banhistas ruidosos. Da infância até aos quinze era forçado a viver cada agosto do ano na Figueira (da Foz), suportado por não ter direito de escolha. Salvaram-me os filmes bíblicos e os western spaghetti, os carrinhos de choques e os gelados de cone, as músicas da jukebox e a primeira namorada, mas a praia, a praia em si, esse era um lugar de tédio. Continuei depois a frequentá-la periodicamente, uma vez que o sol me ajuda a diluir alguns problemas de pele, mas o enfado permanece.

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              Apontamentos, Cidades, Olhares

              Entender Putin e a Rússia com um livro perturbante

              A invasão da Ucrânia, iniciando em fevereiro de 2022 uma guerra que analistas militares garantiam não demorar «mais que uma semana», vai já em três anos e meio. A situação continua gravíssima, num cenário diário de morte, sofrimento e destruição, mas a presença do conflito nas notícias tem diminuído. Outros fatores de preocupação têm emergido – em especial os relacionados com o terremoto Trump e com a situação em Gaza – e a Ucrânia passou para segundo plano, enquanto a iniciativa autocrática, belicista e imperial de Putin começa a ser descurada. Vale a pena, por isso, regressar a ela.

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                Atualidade, Democracia, Olhares, Opinião

                Um país seguro, tenham paciência

                Em 2025 Portugal subiu uma posição (7º lugar global, 5º da Europa, em 163) e ultrapassou a Dinamarca na lista dos países mais seguros. Esta é a verdade, reconhecida pelo Institute for Economics and Peace, que contraria a mentira generalizada, construída sobre pequenos episódios, propagada pela extrema-direita e que agora o nosso centro-direita também adotou. Documento completo: https://www.visionofhumanity.org/wp-content/uploads/2025/06/Global-Peace-Index-2025-web.pdf

                  Apontamentos, Atualidade, Democracia, Etc., Olhares

                  O governo e o regresso de Fritz Kahn

                  Parte de uma notícia do Público a propósito de uma medida a ser preparada pelo nosso pudico governo. Seguida de comentário.

                  «A sexualidade poderá começar a escapar dos debates entre professores e alunos já no próximo ano lectivo, pelo menos na disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, tal como indiciam os documentos orientadores da disciplina, que estão em consulta pública até ao dia 1 de Agosto. Mas, abandonando esta disciplina, onde é que a sexualidade pode ser ensinada? Deixará a educação sexual de ter um espaço no percurso escolar dos diferentes alunos? A resposta imediata é não, mas assumindo, como lembra (…) o presidente da Direcção Associação Nacional de Dirigentes Escolares, que, “em termos curriculares, a sexualidade é trabalhada de forma meramente científica, na perspectiva dos órgãos e do funcionamento dos órgãos”, muitas dimensões fundamentais na educação dos jovens para a sexualidade caem por terra. “A sexualidade extravasa em muito a biologia”, lembra o representante dos directores. Sem ela, “os miúdos usam muito menos preservativos e ficam mais desprotegidos”, critica Margarida Gaspar de Matos.»

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                    Democracia, Direitos Humanos, Olhares, Opinião

                    Algumas linhas sobre o ativismo

                    Um útil apontamento publicado no Facebook por António Pais remete para uma declaração de Manuela Carmena, deixada em entrevista ao El País, que me levou até um padrão de leitura do papel do ativismo e dos ativistas na qual tenho pensado bastante e que me parece valer a pena debater. Carmena, nascida em 1944, é uma jurista e juíza espanhola, que foi militante dom PCE entre 1965 e 1981, vindo mais tarde, entre 2015 e 2019, a tornar-se alcaide de Madrid por uma coligação de esquerda. Este ano lançou Imaginar la vida: Cuatro décadas transformando lo público, que é um livro de memórias. 

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                      Apontamentos, Atualidade, Democracia, Olhares

                      O recuo das humanidades como problema coletivo 

                      A partir dos anos noventa passou a falar-se bastante, sobretudo entre quem as tenha no eixo das suas vidas, do recuo, ou da crise, das humanidades. Isto é, de uma rápida e acentuada desconsideração pública dos saberes e das práticas que estudam e transmitem a experiência humana, incluindo-se neles a literatura, as ciências da linguagem, a história, a filosofia, os estudos culturais e as artes. Todos procuram compreender e partilhar as formas usadas pelos seres humanos para se expressarem, interagirem e criarem significados nos planos pessoal e coletivo, combinando diferentes modos de estar no mundo, de o entender, de o representar e de o transformar. 

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                        Uma direita «democrática» sem máscara

                        A direita portuguesa do pós-25 de Abril teve, na sua matriz, algo que faz com que a sua atual aproximação em relação às propostas e ao discurso da extrema-direita não sejam de todo inesperadas. Na verdade, com exceção de escassas e isoladas escolhas pessoais, jamais tivemos uma direita organizada e politicamente fundamentada como aquela que existiu, e ainda existe, na França, na Grã-Bretanha, na Itália, na Alemanha ou nos países escandinavos. Uma direita neoliberal, mas vinculada aos princípios essenciais da democracia cristã, do personalismo, ou mesmo do liberalismo humanista, que foi sempre, sobretudo a partir do pós-Segunda Guerra Mundial, democrática e multilateralista, mesmo quando contestou o estado social e defendeu políticas que puseram em causa direitos adquiridos e formas de igualdade e de solidariedade. 

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                          Atualidade, Democracia, Olhares, Opinião

                          «No prelo»

                          Ao passar por um dos meus artigos académicos iniciais, publicado em 1982, deparei com a referência a um segundo volume de um título cujo primeiro tomo citei, indicando-o como estando «no prelo». Isto é, em fase de impressão tipográfica. Era ainda uma prática muito usual, a de fazer sair obras em dois volumes indicando que o segundo se encontrava nessas condições. Num grande número de vezes, porém, nem isso era verdadeiro: tratava-se apenas de uma intenção jamais cumprida. Costume também era alguém indicar um título seu, fosse de livro ou de artigo, que considerara a hipótese de publicar, como estando no tal inexistente «prelo». Tratava-se de uma forma artificial – talvez melhor: fraudulenta – de ampliar currículos pequenos ou inexistentes.

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                            Apontamentos, Etc., Memória, Olhares

                            Memória, ignorância e inocência do mal

                            Deparei no Facebook, num grupo sobre o passado da cidade de Coimbra, com esta fotografia, tirada em 25 de junho de 1939 no Campo das Salésias, quando ali a Académica venceu o Benfica por 3-1, conquistando pela primeira vez a Taça de Portugal. Todavia, o texto, razoavelmente longo, que acompanhava a imagem, conseguia a proeza de evocar o momento sem referir a bem visível saudação fascista que, no início do jogo, ambas as equipas fizeram de um modo unânime. Pior: quando uma pessoa atenta deixou nos comentários uma referência ao facto, foi sucedida por uma série de contra-comentários agressivos e ignaros, às dezenas, onde se diziam coisas como «era apenas uma saudação habitual na época» ou «naquele tempo as pessoas não se metiam em políticas» (sic).

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                              Apontamentos, Democracia, História, Memória, Olhares

                              Trump e as dificuldades dos analistas

                              Não recordo outro momento da história recente no qual os analistas políticos se mostrem tão claramente incapazes de interpretar os acontecimentos e, sobretudo isso, de lhes antecipar as consequências. Pior ainda que a primeira, a segunda versão da presidência Trump confronta-se com escolhas erráticas, medidas tomadas por impulso, sobreposição afirmativa do ego ao interesse coletivo, incapacidade para promover uma ideia clara e lhe dar sequência, narcisismo doentio, perversão de regras básicas da sociabilidade e da diplomacia por troca com comportamentos sempre inesperados e agressivos, muitos deles a raiar a arruaça. Isto é, atitudes doentias, de um foro cada vez mais claramente patológico, assumidas por quem governa a nação militar e economicamente mais poderosa do planeta. Nesta condições, todo o juízo crítico do analista, que não é um adivinho, é sempre arriscado, com tendência para se concentrar nas meras hipóteses e para se tornar falível cinco minutos depois. Algo novo, particularmente perigoso, dado abordar o rumo de quem tem nas mãos o poder imperial supremo da paz e da guerra.

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                                Ninguém é apenas admirável

                                Pelo que conheço da espécie humana, concordo plenamente com a frase de Franco Basaglia «de perto ninguém é normal», tantas vezes atribuída a Woody Allen ou a Caetano Veloso. O mesmo se aplica às pessoas que, em abstrato, e sobretudo quando desaparecem, consideramos admiráveis. Pelas circunstâncias e pela extensão da minha vida, conheci de perto largas centenas de homens e mulheres notáveis, hoje já fora desta vida, que, quando partiram – e mais agora com a facilidade das redes sociais – foram logo associados apenas ao que de melhor foram fazendo. E, todavia, sabendo o que sei (e vi) de muitas delas, vejo como tantos elogios são por vezes exagerados ou até de todo imerecidos.

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                                  Apontamentos, Etc., Olhares

                                  Subavaliar a violência neonazi

                                  É completamente inaceitável comparar as organizações terroristas de extrema-direita existentes em Portugal com os grupos que, no passado, se serviram da violência armada enquadrados na chamada extrema-esquerda. Em Portugal, só no final do Estado Novo surgiram três grupos dessa natureza – a ARA, a LUAR e as Brigadas Revolucionárias – e que, ainda assim, possuíam como objetivo central danificar o aparelho militar do regime. Depois do 25 de Abril, e na ressaca do PREC, apenas tiveram existência efetiva as FP-25, o que aconteceu entre 1980 e 1987. Isto é, há quase quarenta anos. Ainda que no plano teórico algumas pessoas e pequenos grupos de esquerda possam defender a dimensão fundadora da «violência revolucionária», não existe qualquer um que a procure pôr em prática. Muito menos contra as instituições da democracia e pessoas singulares. Isso fazem, como se pode agora ver com clareza, os neonazis, e equiparar as suas organizações violentas e criminosas às que, do lado oposto, excluem de todo essa vertente, é, mais do que errar o alvo, subavaliar o seu potencial perigo e de algum modo desculpabilizá-las.

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                                    O que fazer com esta espécie de gente?

                                    Com a derrota dos principais fascismos na Segunda Guerra Mundial, começou a instalar-se em grande parte do mundo, e de forma mais rápida e acentuada na Europa e nas Américas, uma experiência de civilidade democrática e cosmopolita que, apesar das desigualdades e dos conflitos, envolveu um setor cada vez mais amplo da população, moldando a sua forma de viver e de olhar o mundo. É verdade que em Portugal e Espanha subsistiam ditaduras, mas estas começavam a recuar face a uma crescente resistência. E a Leste do continente, onde regimes autoritários procuravam impedir qualquer abertura, emergiam também sinais de mudança. A viragem democrática na Península Ibérica, materializada entre 1974 e 1978, e as rápidas mudanças nos países do «socialismo real» que ocorreram após a queda do Muro de Berlim, não emergiram do nada.

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