Arquivo de Categorias: Olhares

Não haverá uma guerra civil na América

Tenho encontrado por aí, em alguns artigos de opinião, embora escassos, mas principalmente em apontamentos e comentários das redes sociais, referências à eventualidade de os Estados Unidos da América caminharem a passos largos e muito rápidos para um guerra civil. Por vezes, este padrão de comentário disfarça um certo comprazimento, admito que algo inconsciente, mas presente nas entrelinhas, situado entre um «eles afinal merecem» e um «pode ser que assim o assunto se resolva». Não considerando agora o facto de as guerras civis serem as mais terríveis, mortíferas e traumáticas de todas as guerras, com um nível de destruição material e espiritual que raramente outras produzem, importa salientar que elas deixam nos povos um rastro de medo, pesadelo e sofrimento que, associado a desejos de vingança, se prolonga por gerações.

(mais…)
    Apontamentos, Atualidade, Democracia, Memória, Olhares

    Em defesa do Bloco

    Como democrata e homem de esquerda, parece-me completamente intolerável, além de bastante perigosa, a vaga de depreciação da qual o Bloco de Esquerda está agora a ser objeto. Não apenas pela direita em geral, o que não será grave – seria até um mau sinal se tal não acontecesse –, mas por muitos jornalistas e comentadores com assento cativo nas televisões e nos jornais. Alguns fazem-lhe até uma espécie de funeral antecipado, equiparando o seu eventual desaparecimento à morte de toda a esquerda como ideal, como projeto e como solução, falando mesmo do fim de uma época da história das lutas sociais e das democracias.

    (mais…)
      Apontamentos, Atualidade, Democracia, Olhares

      A esquerda não se «apaga»

      As teorias que andam agora a circular a propósito do «apagamento» ou do «fim» do ideal de esquerda, são, como afirmou Mark Twain sobre as notícias que corriam anunciando a sua morte, «manifestamente exageradas». É certo que a esquerda política plural precisa olhar à sua volta e, não seguindo necessariamente o fátuo «ar do tempo», por certo considerar as suas transformações. E adaptar-se a elas, corrigindo erros e recusando descaminhos. Todavia, os grandes ideais de igualdade, de solidariedade, de liberdade e de fraternidade – sim, bem sei, estes possuem a idade da velha Revolução Francesa e foram invocados também por ditadores – esses não desaparecerão, como não desaparecerá que os defenda. O contrário seria a vitória definitiva do neoliberalismo selvagem e a afirmação apocalíptica da desumanidade mais abjeta. O progresso combaterá sempre o retrocesso, como a utopia enfrentará sempre a distopia. Podem crer, está nos livros e anda pelo ar.

        Apontamentos, Atualidade, Democracia, Direitos Humanos, Olhares

        Uma memória do sectarismo

        Sem vontade de escrever uma autobiografia, incluo por vezes, em textos vários, alguns detalhes autobiográficos, tendo desde há anos o projeto de lembrar, sem nomes ou números de porta, momentos vivenciais sobre o sectarismo que dominou boa parte da oposição ao regime durante o período marcelista. Em particular no meio estudantil, onde uma vírgula num manifesto poderia bastar para criar cisões e alimentar inimizades entre pessoas de diferentes grupos maoistas, gente que se agrupava num dos trotskismos, e de todos ele em relação ao PCP. E vice-versa, claro, não sendo por acaso que Cunhal escreveu diatribes contra o «radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista». Existem episódios deste conflito, de certa forma fratricida, que dariam um livro bem curioso, alguns associados a desconfianças ainda não superadas.

        (mais…)
          Apontamentos, Etc., Memória, Olhares

          De mal a pior? As legislativas e os jovens

          A partir de sondagens e estudos sobre o tema, não sendo a observação empírica desdenhável, é clara e consensual a maior tendência dos eleitores portugueses abaixo de 25 anos para votarem na direita ou mesmo na extrema-direita. Aliás, é esta uma disposição que ocorre num grande número de países europeus, possuindo múltiplas e complexas razões. Algumas das mais influentes serão a falta de memória histórica, o recuo das humanidades nos sistemas de ensino, o facilitismo que se instalou nos programas escolares, a prevalência da cultura do individualismo, a sobrevalorização do efémero ou a desresponsabilização familiar. Além do lugar crítico, detido sobretudo nesta faixa etária, das redes sociais e dos seus embustes, bem como o das angústias relativamente ao emprego, à progressão profissional e à estabilidade familiar. 

          (mais…)
            Apontamentos, Atualidade, Democracia, Olhares

            Mais duas notas pós-legislativas

            Antes ainda de um artigo mais extenso e fundamentado, a publicar na semana que vem, duas notas rápidas sobre um par de preocupantes tendências em circulação após as eleições legislativas de 18 de maio.

            1 – Configura-se a fortíssima possibilidade de José Luís Carneiro, candidato derrotado nas eleições internas de 2023, ser o próximo secretário-geral do Partido Socialista. A lógica que parece emergir neste contexto é a de escolher uma personalidade «moderada», supostamente capaz de dialogar com o PSD e de estabelecer algumas pontes com aquela parte do eleitorado socialista que debandou para a AD e mesmo para o Chega. É natural que nas atuais circunstâncias políticas, e em nome da defesa do regime e da Constituição, o PS precise chegar a acordos à sua direita e à sua esquerda, mas não o pode fazer sem mostrar uma mensagem própria, forte, progressista e mobilizadora, que obviamente Carneiro não protagoniza, e sem um rosto carismático, essencial atualmente, por muito que não se goste da ideia, para vencer eleições e segurar governos. Uma solução desta natureza conduzirá o partido a seguir as pisadas dos seus congéneres francês e italiano, rumo à irrelevância e deixando um vasto campo aberto à direita e à extrema-direita.

            (mais…)
              Atualidade, Democracia, Olhares, Opinião

              O pior que se pode fazer

              O pior que podem fazer as pessoas que irão agora, necessariamente, procurar reerguer os partidos da esquerda estrondosamente derrotados nas legislativas, é, em vez de se voltarem para a realidade das pessoas comuns e para os equilíbrios do mundo atual, para uma análise de comportamentos repetidos e para a revisão dos dogmas, para a abordagem crítica de certas escolhas, discursos e comportamentos, preferirem agitar bandeiras enquanto apontam inimigos externos ou dentro do seu próprio campo, preocuparem-se mais com a sua própria justificação do que com os seus erros, refugiando-se na conjuntura como explicação para quase tudo. Em tantos anos de combate político já vivi demasiado para não experimentar este receio. Por isso sei que a capacidade crítica, a humildade e a lucidez serão agora fundamentais. E muita coragem também, obviamente.

                Apontamentos, Democracia, Etc., Olhares

                Notas curtas sobre as legislativas

                Algumas notas curtas (e também críticas) sobre o pesado terramoto das legislativas. Noto aqui que, apesar de ser membro do Livre, elas são totalmente pessoais, só a mim comprometendo. Olho principalmente para os partidos de esquerda (PS, Livre, PCP, BE e PAN), aqueles que verdadeiramente me interessam, e que, reunidos, apenas obtiveram 34% dos votos. Ou seja, a percentagem mais baixa em democracia.

                (mais…)
                  Apontamentos, Atualidade, Democracia, Olhares, Opinião

                  A força do voto perdido

                  Lamento ter de ser cru e objetivo, mas em certos momentos a realidade deve sobrepor-se à fantasia. Para um grande número de eleitores a insistência nas ilegalidades e na ausência de ética do primeiro-ministro são irrelevantes, pois consideram-nas prova de uma «chico-espertice» que encaram como qualidade e gostariam de replicar nas suas vidas. Aliás, é esta atitude que tem eleito e reeleito muitos autarcas, enquadrados na conhecida categoria popular do «rouba, mas faz». Também pouco importa a estas pessoas a baixa qualidade e o perfil rasca, ou mesmo criminoso, de tantos militantes do Chega, pois é por isso mesmo que os encaram como seus representantes.

                  (mais…)
                    Apontamentos, Democracia, Olhares

                    Porque voto no Livre?

                    A vida da democracia de modo algum se esgota no sistema representativo e nas eleições para os seus órgãos. Precisa ser praticada e ampliada todos os dias e em todos os espaços, não se limitando, por isso, ao ato de eleger. Todavia, e apesar das suas imperfeições, este permanece essencial como modo de aferição das escolhas políticas de cidadãos e cidadãs, e forma de escolher os rostos que dão corpo à soberania. Onde não existem eleições, ou onde elas são manipuladas, não existe democracia, mas fraudes que favorecem a tirania. Por este motivo, e também porque não o fazer é abdicar de ter voz própria, é imprescindível votar, ainda que quem o faz possa não se rever plenamente em qualquer das escolhas presentes no boletim de voto.

                    (mais…)
                      Atualidade, Democracia, Olhares, Opinião

                      Combate cultural contra o novo fascismo

                      O fascismo original, a par das sua articulação com o mal mais absoluto, apoiava-se numa proposta filosófica, alimentava uma visão do mundo, idealizava um projeto de sociedade. Daí a importância que atribuía à ideologia e à cultura – fosse a das elites ou a que definia como «popular» – ancoradas num saber clássico e manipuladas em função desses objetivos. Muitos artistas e numerosos intelectuais ajudaram a alimentar esse processo. Daí também o papel que os fascismos conferiam à leitura, ao cinema, ao teatro, às artes, ao pensamento, à arquitetura, à especulação política como experiências coletivas. O contemporâneo abomina e combate tudo isto, pois funda-se apenas na ignorância, no ódio, no egoísmo e na ausência de perspetiva, projetadas pelo poder dos média, pelas redes sociais e pela condescendência das democracias. Por isso, contra ele, contra eles, o combate a travar precisa ser também cultural, não apenas político.

                        Apontamentos, Atualidade, Democracia, Olhares

                        A liberdade não tem dono

                        Mais em umas que em outras, mas em diferentes manifestações de rua do 25 de Abril foi visível a tentativa, por parte de uma força política, de se tentar apropriar dos desfiles, das suas palavras de ordem, das suas canções, até da sua organização, desdobrando-se por lugares vários e diferentes entidades nos desfiles. Também tem procurado apropriar-se da sua história e da sua memória, que muitas vezes se esforça até por reescrever. Acontece há décadas, mas quanto mais essa força se torna realmente mais frágil e perde expressão eleitoral – infelizmente, a meu ver, mas sobretudo por culpa própria -.mais a tendência se acentua. Porém, a liberdade, no seu sentido amplo e plural, não tem dono, é de todos e de todas, salvo dos fascistas, seus inimigos jurados. Por isso, nela cabem também os que continuam a insistir nesse triste papel. Que desaparecerá de cena um dia que há-de chegar.

                          Apontamentos, Democracia, Olhares

                          Neste tempo que vivemos

                          Ao longo de mais de duzentos anos, as consignas da Revolução Francesa no seu combate contra o Antigo Regime, traduzidas na afirmação gradual dos grandes princípios da liberdade, da igualdade e da fraternidade, materializaram, apesar das suas limitações e contradições, apesar também da sabotagem dos seus agressivos inimigos, um horizonte de felicidade terrena para o qual todas as propostas progressistas deveriam apontar. Como aconteceu com as ideias de verdade, de justiça, de compaixão, de honestidade, de confiança, de equilíbrio, de ética ou de paz. Todas de igual modo discutíveis e contraditórias, mas todas identicamente inscritas numa ideia de humanidade tendencialmente voltada para um futuro melhor. Vivemos agora o tempo da sua negação, e nele, salvo para os indiferentes e os tolos, as manhãs são sem sol e de pesadelo. É preciso, todavia, reconstruir a esperança para não regressarmos ao negro estado de barbárie e de opressão. E, a cada dia, para o conseguirmos, importa bater a realidade para reunir forças. 

                            Apontamentos, Democracia, Devaneios, Olhares

                            Um 1º de abril que «já era»

                            Bem sabemos que a mentira, o erro e a deturpação sempre existiram. Pelo menos desde a invenção da escrita, provavelmente até antes dela. Mas atualmente alguns orgãos de comunicação sedentos de atenção, associados à realidade selvagem das redes sociais, estão de tal forma cheios deles que a própria ideia de verdade foi banalizada. Tudo pode ser «verdade», como tudo pode ser «mentira», sejam elas com ou sem aspas. Neste contexto, as patranhas do 1º de abril deixaram de o ser, pois parte da piada consistia em encontrar uma mentira de certo modo única. Não uma «inverdade» entre milhares.

                              Apontamentos, Etc., Olhares

                              A ameaça do Bloco Central

                              Por certo muitos amigos terão reparado já nesta tendência, enquanto outros, mais distraídos ou desinteressados, não se terão apercebido. Está em pleno curso, em alguns jornais e televisões, a divulgação de opiniões, emitidas por vozes situadas na ala mais conservadora do Partido Socialista, no sentido de, em nome de uma vaga e sacralizada noção de «estabilidade» – e, sejamos claros, também de um desejo de partilha de influência -, sugerirem a realização pós-legislativas de um acordo legislativo e de governo entre o PS e o PSD.

                              (mais…)
                                Apontamentos, Democracia, Olhares

                                Redes sociais, imagens e ignorância

                                Uma das marcas do acesso, agora quase universal, ao uso das redes sociais, passa, sabemo-lo bem, pela inclusão de pessoas que, antes de elas existirem, jamais tiveram ou teriam a possibilidade de comunicar de forma pública e rápida. Não dispõem, por esse motivo, dos códigos básicos de civilidade que as formas de comunicação para um público vasto foram desenvolvendo. Têm ainda, em grande parte, um escasso lastro em termos de conhecimento, facilmente acreditando, por este motivo, tanto no que observam ou podem ler – como outrora acontecia com quem julgava certo e sagrado tudo o que estivesse em letra de imprensa -, como no que dão aos demais a ler e a ver. 

                                (mais…)
                                  Apontamentos, Atualidade, Etc., Fotografia, Olhares

                                  Dúvida

                                  Face ao ataque cerrado, feroz e sem precedentes a tudo o que sejam fatores de justiça social e igualdade, paz e entendimento na arena internacional, equilíbrio ambiental, defesa dos direitos humanos ou liberdade de expressão e até de circulação, a que assistimos todos os dias, algumas vezes multiplicado numa só jornada desde que a 20 de janeiro Donald Trump tomou posse como 47º presidente dos Estados Unidos da América, será que quem andava por aí a dizer que a governança republicana e as últimas democratas em pouco ou nada se distinguiam, referindo-se a Obama e a Biden apenas negativamente, ainda continua a dizer a mesma coisa? Conhecendo algumas dessas pessoas, e a sua enorme capacidade para contrariar a realidade diante das convicções, ou sequer para identificar o adversário mais perigoso, temo que sim. Se perante este banho constante de realidade catastrófica algumas reconhecerem o seu erro, já não será mau.

                                    Apontamentos, Atualidade, Democracia, Olhares

                                    Entretanto, na Gronelândia

                                    A visita, programada para a próxima sexta-feira, de uma delegação governamental norte-americana à Gronelândia, não solicitada por Nuuk ou por Copenhaga, nem pedida por Washington, é chefiada pelo vice-presidente J.D. Vance e integra Mike Waltz, conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca, e Chris Wright, secretário de Estado da Energia. Fazendo tábua rasa das mais elementares regras da diplomacia, pela qualidade dos membros e pela oportunidade que estes escolheram trata-se de um gesto ameaçador de óbvia provocação imperial. Algo que não tem precedentes nas relações internacionais pós-Segunda Guerra Mundial. Precisamos habituar-nos a estas exibições de apetite e a estes gestos de agressão sem máscara, preparando e levando a cabo as respostas adequadas, necessariamente fortes e que doam aos prevaricadores.

                                    P.S. – Perante os veementes protestos das autoridades locais e da Dinamarca, foi agora anunciado que a delegação se limitará a visitar Pituffik, uma base espacial militar dos EUA. Seja como for, a intolerável pressão mantém-se.

                                      Apontamentos, Atualidade, Olhares