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Terremoto eleitoral, esquerda e resistência 

As últimas legislativas provocaram um terremoto no regime democrático. Jamais, desde as eleições para a Constituinte em Abril de 1975, o conjunto da esquerda obteve uma representação tão escassa no parlamento, tendo, além disso, desaparecido o tendencial bipartidarismo constante nos últimos cinquenta anos. Para além da acentuada perda do apoio eleitoral concedido aos partidos da área plural da esquerda, com a exceção do Livre, o mais significativo e perturbante foi, sem dúvida, o crescimento exponencial de uma extrema-direita fundada na rejeição dos valores essenciais do Portugal nascido com a Revolução dos Cravos. Mais preocupante ainda: o reconhecimento do ambiente que produziu esta situação e o inventário dos seus traços essenciais fazem temer que a nova ordem política não seja passageira.

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    Mais duas notas pós-legislativas

    Antes ainda de um artigo mais extenso e fundamentado, a publicar na semana que vem, duas notas rápidas sobre um par de preocupantes tendências em circulação após as eleições legislativas de 18 de maio.

    1 – Configura-se a fortíssima possibilidade de José Luís Carneiro, candidato derrotado nas eleições internas de 2023, ser o próximo secretário-geral do Partido Socialista. A lógica que parece emergir neste contexto é a de escolher uma personalidade «moderada», supostamente capaz de dialogar com o PSD e de estabelecer algumas pontes com aquela parte do eleitorado socialista que debandou para a AD e mesmo para o Chega. É natural que nas atuais circunstâncias políticas, e em nome da defesa do regime e da Constituição, o PS precise chegar a acordos à sua direita e à sua esquerda, mas não o pode fazer sem mostrar uma mensagem própria, forte, progressista e mobilizadora, que obviamente Carneiro não protagoniza, e sem um rosto carismático, essencial atualmente, por muito que não se goste da ideia, para vencer eleições e segurar governos. Uma solução desta natureza conduzirá o partido a seguir as pisadas dos seus congéneres francês e italiano, rumo à irrelevância e deixando um vasto campo aberto à direita e à extrema-direita.

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      Evitar o suicídio da esquerda nas autárquicas

      Rui Tavares defendeu que «a reflexão à esquerda sobre os resultados destas eleições deve ser uma reflexão grande, mas não pode ser uma reflexão longa». A ideia de que pode ser longa «é errada e perigosa» porque as autárquicas estão próximas e o Chega pode ficar em primeiro lugar em dezenas de concelhos. A esquerda tem, pois, que «acordar, abrir os olhos e despertar», propondo listas progressistas onde os eleitores possam votar.

      Não poderia estar mais de acordo com esta ideia. Devem ser urgentemente preparadas listas unitárias, equilibradas e capazes às autárquicas, mesmo onde já tinham sido decididas escolhas em sentido contrário. Julgo ser difícil ter dúvidas de que, neste momento, o partidarismo sectário será inevitavelmente suicidário para a esquerda. Para toda ela. E quem o não rejeitar com clareza será política e historicamente responsabilizado por isso.

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        Notas curtas sobre as legislativas

        Algumas notas curtas (e também críticas) sobre o pesado terramoto das legislativas. Noto aqui que, apesar de ser membro do Livre, elas são totalmente pessoais, só a mim comprometendo. Olho principalmente para os partidos de esquerda (PS, Livre, PCP, BE e PAN), aqueles que verdadeiramente me interessam, e que, reunidos, apenas obtiveram 34% dos votos. Ou seja, a percentagem mais baixa em democracia.

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          A história não se repete, mas precisa ser lembrada

          Ao contrário do que no século de Oitocentos defendiam os historiadores positivistas, e que foi mantido depois pelos seus imitadores, a história – tomada aqui como forma de conhecimento do passado, guardando-se a História com maiúscula para aludir à sucessão do tempo – jamais é inteiramente objetiva. Depende sempre, em larga medida, de quem a escreve, do momento em que é escrita, das condições em que isto acontece, da perspetiva escolhida em cada abordagem, das múltiplas fontes documentais utilizadas, da perspetiva temática que persegue, e ainda da forma como é ou não sujeita ao confronto da prova e ao crivo da crítica, também estas em constante renovação. Depende ainda dos seus diferentes usos, podendo manipular e ser manipulada, ou então, bem diversamente, ser fator de compreensão do mundo e de emancipação.

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            Porque voto no Livre?

            A vida da democracia de modo algum se esgota no sistema representativo e nas eleições para os seus órgãos. Precisa ser praticada e ampliada todos os dias e em todos os espaços, não se limitando, por isso, ao ato de eleger. Todavia, e apesar das suas imperfeições, este permanece essencial como modo de aferição das escolhas políticas de cidadãos e cidadãs, e forma de escolher os rostos que dão corpo à soberania. Onde não existem eleições, ou onde elas são manipuladas, não existe democracia, mas fraudes que favorecem a tirania. Por este motivo, e também porque não o fazer é abdicar de ter voz própria, é imprescindível votar, ainda que quem o faz possa não se rever plenamente em qualquer das escolhas presentes no boletim de voto.

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              Contra o abuso do «voto útil»

              Em tempo de campanha para as eleições legislativas, escutamos de novo apelos ao «voto útil», normalmente realizados pelos partidos que sabem poder vir a governar e entendem que precisam de uma maioria exclusiva para o poderem fazer. Na verdade, este apelo, assente na lógica do «mal menor», desfigura a democracia, tendendo a enfraquecer os restantes partidos, no nosso sistema eleitoral já muitíssimo prejudicados pela inexistência de um círculo nacional a juntar aos demais. Sem este, aliás, ocorre sempre uma perda muito significativa de votos de eleitores, deste modo não representados no parlamento.

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                Apagão, boatos, medos e coragem

                A falha elétrica de 28 de abril, que afetou toda a Península Ibérica, produziu ondas de choque de grande impacto. Motivos, detalhes, responsabilidades e dimensões do incidente encontram-se por esclarecer de forma completa, mas os efeitos práticos foram percetíveis no imediato. Começou por desaparecer o sinal das redes de telemóvel e da Internet, e logo de seguida tudo sucedeu em catadupa: iluminação desligada, aparelhos elétricos inoperantes, elevadores bloqueados, semáforos sem funcionarem, transportes caóticos, caixas multibanco inativas, cafés e restaurantes a menos de meio gás, com tudo o que isto implica na alteração radical das formas de vida, da atividade produtiva, dos sistemas de segurança, dos cuidados de saúde e das necessidades humanas básicas.

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                  A extrema-direita entre o mantra e a lengalenga

                  O mantra é uma fala monocórdica e repetitiva, em regra recitada ou cantada de forma ritual por seguidores do budismo e do hinduísmo. A sua harmonia pode incluir qualquer som, sílaba, palavra ou frase, desde que estes detenham um poder próprio, visando estimular o propósito sagrado de quem o pronuncia. O termo vem do sânscrito, significando «controlo da mente», sendo isto obtido num processo de concentração da consciência que essa repetição em boa parte impulsiona. Do seu lado, a dimensão ritualizada do mantra confere-lhe uma aura de sagrado, enquanto retira a quem o pronuncia a necessidade de procurar palavras próprias, usando então, de um modo mecânico, apenas aquelas que sucedem de geração em geração. Em português usamos um termo, lengalenga, com significado parcialmente análogo. Aplica-se a narrativas ou falas extensas, fastidiosas e expectáveis, de diferentes géneros, que se movem em círculo, numa cantilena que nada contém de novo e se faz ecoar a si própria.

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                    A «paz podre» e a desfiguração do drama ucraniano

                    Ao conversar com quem conhece bem a realidade da Ucrânia e do leste europeu, tenho sido confrontado com a sua surpresa sobre a contradição entre a forma como setores da esquerda portuguesa encaram o regime de Kiev, a guerra e o caminho para a paz, e o modo como o faz a maioria da esquerda ucraniana. Não consideram na comparação os grupos e indivíduos nostálgicos da União Soviética e da Europa pré-1989 – desde logo o Partido Comunista, banido logo em 1991 e de novo em 2015, o Partido Progressista Socialista, proibido em 2022, após a invasão de fevereiro, e pequenas forças interditas em 2024 –, colaborantes da agressão russa e separatistas, mas numerosas personalidades de orientação socialista, libertária, feminista e verde, e, na mesma área, organizações como o Movimento Social e a Ação Direta, defensoras da resistência ativa a Moscovo. 

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                      As legislativas de Maio e a Europa

                      Escreve a dado passo da sua crónica deste domingo, saída no diário Público, a jornalista Teresa de Sousa:

                      «(…) Em dois meses, a Europa viu desfazerem-se diante dos seus olhos as condições geopolíticas que lhe permitiram viver e prosperar em paz e alargar a democracia em direcção às fronteiras do continente, caminhando paulatinamente para uma união cada vez mais integrada. Está a viver hoje a maior crise existencial desde a sua fundação. O que é mais extraordinário é que conseguiu afastar o cenário provável da fragmentação e da autodestruição, antecipado em Washington e em Moscovo. Dois meses depois, perdeu todas as ilusões sobre a possibilidade de reparação da aliança transatlântica, colocou a sua própria defesa no topo da agenda política, abriu-se a novos aliados, manteve-se no apoio à Ucrânia em caso do abandono americano (“26 mais um não são uma divisão”, como disse António Costa). O pânico inicial transformou-se em maior claridade política. Descobriu que era mais forte do que se habituara a pensar. (…)»

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                        A alternativa ao wokismo não é o antiwokismo

                        É do senso comum que devemos avaliar o efeito das palavras, mas no mundo que hoje habitamos este é um esforço prioritário. Muitas delas, além de convocarem, como sempre, significados complexos e contraditórios, tendem agora a ver rapidamente alterados os sentidos estáveis que por largas décadas respeitaram. Isto acontece também com aquelas que envolvem a afirmação ou a contestação do fenómeno woke. Como sabe quem não anda distraído, o conceito associa-se a práticas reivindicativas que, ao ultrapassarem as formas de protesto social tradicionais – ou mesmo institucionalizadas, como os partidos e os sindicatos – enfrentam de modo vigoroso o racismo, a discriminação de género e outros fatores de injustiça e de desigualdade, defendendo uma tomada de consciência ativa e uma intervenção combativa que lhes faça frente. 

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                          Boicotar ou não produtos «made in USA»

                          É fácil cairmos na tentação de reagir ao que de hediondo, agressivo, contagiante e muito perigoso está a acontecer nos Estados Unidos e com a política interna e externa centrada nos corredores da Casa Branca e do Pentágono, procurando, na medida do que cada um de nós poderá isoladamente fazer, entrar pela via do boicote cego a produtos e instrumentos «made in USA». Na realidade, é tão grande a sua dimensão e influência que, se fossemos inteiramente coerentes – ou coerentes mesmo a apenas 25% –, até muitos alimentos, medicamentos, tecnologia essencial, produtos de natureza cultural, serviços de «streaming» e da Internet teríamos de abandonar e apagar das nossas vidas.

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                            Eleições, o mundo em redor e o que aí vem

                            Entramos agora num ambiente político pré-eleitoral, no qual a preparação das propostas programáticas e a escolha dos rostos que lhes irão dar corpo ocupará a generalidade dos partidos políticos. É um processo natural que as nossas práticas democráticas consagram. Todavia, desta vez existe uma conjuntura internacional muito peculiar, de uma natureza verdadeiramente dramática, que tornará a definição de atitudes em relação à autonomização da União Europeia, incluindo a sua política de defesa, a sua sobrevivência económica e o Estado social, e à atividade das potência imperiais, sobretudo dos EUA de Trump e da Rússia de Putin, um fator determinante e da maior importância. Vamos ver como as forças políticas em presença irão, a esse respeito, gerir as suas escolhas. Algumas delas, também os seus ruidosos silêncios.

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                              Vergonha no país de Abril

                              De forma simplificada, são dois os motivos principais que levaram à rejeição da moção de confiança e à próxima saída de Luís Montenegro do cargo de primeiro-ministro. O primeiro, mais invocado, tem a ver com práticas profissionais que colidem com o dever de exclusividade de quem detém cargos de responsabilidade no governo, por motivos acrescidos quem dele seja a figura principal. O segundo motivo, menos mencionado apesar de também importantíssimo, prende-se com o facto de a empresa envolvida, a Spinumviva, ser apenas familiar, não tendo sequer sede própria e corpos gerentes, dedicando-se basicamente ao tráfico de influências realizado sob a capa de «aconselhamento» em negócios privados.

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                                Três atitudes face ao episódio da Sala Oval

                                O historiadores conhecem bem o papel do acaso, do incidental e do comportamento individual na mudança das sociedades. Devido ao seu imediato impacto, esses fatores podem impor viragens de forma muito mais rápida e intensa que as alterações de natureza política, social ou cultural produzidas num tempo longo e vagaroso. O que aconteceu a 28 de fevereiro em Washington, na Sala Oval da Casa Branca, durante o encontro de Donald Trump e J.D. Vance com Volodymyr Zelensky, pela sua singularidade – na realidade, tratou-se de uma emboscada de «bullying» destinada a diminuir a Ucrânia e o seu presidente – e pelo eco global que logo teve, representa um exemplo consumado desse efeito. As suas ondas de choque distribuíram-se por três diferentes atitudes, duas de peso e outra ruidosa.

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                                  A coragem de Zelensky

                                  O que aconteceu no dia 28 de fevereiro de 2025, quando do encontro público em Washington entre o presidente da Ucrânia, Vlodymyr Zelensky, e, do lado norte-americano, Donald Trump e J.D. Vance, ficará bem marcado nos anais da diplomacia mundial, pautando um novo tempo no qual as conversas entre governos ao mais alto nível podem ser condicionadas pela ameaça, pela coação e pela falta absoluta da mais elementar urbanidade no trato pessoal. O que aconteceu com a ignóbil armadilha colocada ao presidente ucraniano na Casa Branca foi uma despudorada exibição em horário nobre, perante o povo norte-americano e o mundo, de arrogância imperial, de autoritarismo de «patrão», e de ausência da educação cívica mais elementar, na linha do que se sabe que o presidente norte-americano faz com todas as pessoas que considera suas subalternas.

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                                    As eleições na Alemanha e a Europa

                                    Os resultados das eleições gerais na Alemanha e do processo de composição de um governo estável que se seguirá apontam para três evidências, aplicáveis à generalidade da Europa. Primeiro, que a par das diferenças políticas por vezes substanciais, é imprescindível ampliar políticas de consenso justas e credíveis, capazes de mobilizar a maioria dos cidadão contra o confronto e o ódio propostos pela extrema-direita populista. Segundo, que esta aproximação passa pela construção de uma frente comum capaz de fazer frente à agressividade contra a Europa, o ambiente, a liberdade e a humanidade posta em prática por Donald Trump. Terceiro, que do lado leste do continente existe um inimigo jurado da democracia e da liberdade, Vladimir Putin, pronto a esmagar o continente e a partilhá-lo com o seu novo amigo americano. O que sair do processo de formação do novo governo alemão não pode deixar de considerar estes três aspetos e de ter impacto sobre eles.

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