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21 de Março: Dia Mundial da Poesia

Em ‘Para que serve a poesia hoje?’, Jean-Claude Pinson tenta responder a uma pergunta atual: «O que pode ainda a poesia, quando as suas ilusões líricas do passado recente (proporcionar uma vista desimpedida para o Absoluto, “mudar a vida”…) foram desacreditadas?» Com uma intensidade ampliada quando na ordem-do-dia se encontra a eliminação por decreto – e por organizado descrédito – do que se revela supérfluo, daquilo que não possui valor de uso nem serve para trocar por papel-moeda ou linha de crédito, não podendo aplicar-se a reduzir défices, a aferir «competências efectivas» ou a cumprir «objectivos estratégicos», importa olhá-la como território da clarividência e de resistência, não meramente onírico ou projetado para a evasão, que jamais deixou de ser, mas deve reassumir.

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    Apontamentos, Artes, Leituras, Memória, Poesia

    Seamus Heaney (1939-2013)

    Seamus Heaney

    I thought of walking round and round a space
    Utterly empty, utterly a source
    Where the decked chestnut tree had lost its place
    In our front hedge above the wallflowers.
    The white chips jumped and jumped and skited high.
    I heard the hatchet’s differentiated
    Accurate cut, the crack, the sigh
    And collapse of what luxuriated
    Through the shocked tips and wreckage of it all.
    Deep planted and long gone, my coeval
    Chestnut from a jam jar in a hole,
    Its heft and hush become a bright nowhere,
    A soul ramifying and forever
    Silent, beyond silence listened for.

    Imaginei-me a andar sempre em redor de um espaço
    Totalmente vazio, totalmente origem,
    Onde o castanheiro em flor perdera o seu lugar
    Na sebe em frente à casa, entre os goivos.
    Lascas brancas saltaram, ressaltaram alto.
    Ouvi os golpes certeiros mas diversos
    Do machado, o estalo, o suspiro e o colapso
    De tudo o que fora florescente e belo
    Entre os ramos em choque e a ruína final.
    Plantado num frasco, bem fundo, e há muito
    Abatido, o castanheiro meu coetâneo
    Torna-se, com a sua pujança e quietude,
    Um não-lugar brilhante, alma que ramifica
    P’ra sempre silente, p’ra lá do silêncio que se escute.

    S.H. – De Clearances / Clareiras (Trad. Rui Carvalho Homem)

      Biografias, Leituras, Poesia

      O Inspector das Tempestades

      Henry David Thoreau (1817-1862), o poeta, o naturalista e o filósofo de Concord, Massachussetts – no tempo em que o Massachussetts era o cu do mundo e ainda por ali se mantinham visíveis e transitáveis as antigas pistas índias –, foi professor e explicador, depois fabricante de lápis, preceptor, jardineiro e agrimensor. Gostava porém, de uma forma irónica e profundamente poética, de se apresentar publicamente como «inspector das tempestades».

        Apontamentos, Biografias, Olhares, Poesia

        Falar com os becos

        Paul Celan com Nani e Claus Demus
        Londres,1955

        Falar com os becos sem saída
        ali defronte,
        da sua
        expatriada
        significação –:

        mastigar
        este pão, com
        dentes de escrita.

        Paul Celan – de A parte da neve
        (Trad. de João Barrento e Y. K. Centeno)

          Apontamentos, Poesia

          Estava com o meu povo

          Não, nunca sob a cúpula de um estranho céu,
                 E nunca sob a proteção de asas alheias,
                 Eu estava com o meu povo naquela época,
                 Lá onde infelizmente o meu povo vivia.

          Anna Akhmatova – prólogo à edição de 1961 de Requiem (Trad. RB)

            Apontamentos, Poesia

            Há espelhos

            HÁ ESPELHOS

            – em que de uma forma confiada
            nos vamos olhando
            todos e cada um dos nossos dias –

            que de repente
                           se partem
            e deixam ver
                       nos seus pedaços gelados
            essas facas de que eram feitos.

            Lorenzo Oliván – de Visiones y revisiones
            (Trad. de Joaquim Manuel Magalhães)

             

              Apontamentos, Poesia

              Quase chuva

              No ar a espiral empurra a brisa, leva-a
              quarenta léguas adentro do Mar Oceano.
              Perto, o silêncio simula a tranquilidade,
              o céu esconde-se, as árvores inquietam-se.
              Um vulto passa vadio, quase a adivinhar
              a chuva que vem como vapor de lavandaria.
              O Oldsmobile de 57 parece nascido ali
              e não ao longe, num subúrbio de Detroit.
              Na marginal deserta os rostos vacilam
              certos da presença ameaçadora dos cães.
              O horizonte ignora a tempestade, inábil,
              tão próxima quanto a sombra que a veste.

                Olhares, Poesia

                Subindo, temos

                Paul Celan aos 18

                Estacas com bandeiras
                recrutadas para dar as boas-
                -noites à esquerda
                do leme.

                cardumes de olhos, oceânicos
                por dentro, para sempre
                por sobre
                as baleias
                que nadam até ficar cegas,
                lançam para cima
                os seus últimos males,
                para o que, subindo, temos
                de sondar.

                Paul Celan – De A morte é uma flor. Poemas do espólio
                (Trad. de João Barrento)

                  Olhares, Poesia

                  Les feuilles mortes


                  | Yves Montand em Parigi è sempre Parigi (1951), de Luciano Emmer

                  Elegia e Recordação da Canção Francesa
                  por Jaime Gil de Biedma

                  C’est une chanson
                  que nous ressemble.
                  J. Kosma e J. Prévert: Les feuilles mortes

                  Lembrai-vos: a Europa estava em ruínas.
                  Todo um mundo de imagens me resta desse tempo
                  descoloridas, a ferir-me os olhos
                  com os escombros dos bombardeamentos.
                  Em Espanha, a gente apertava-se nos cinemas
                  e não existia aquecimento.

                  Era a paz – depois de tanto sangue –
                  que chegava andrajosa, como a conhecemos
                  os espanhóis durante cinco anos.
                  E todo um continente empobrecido,
                  carcomido de história e de mercado negro,
                  de repente foi-nos mais familiar. (mais…)

                    Olhares, Poesia

                    Plano de fuga

                    Não define a ausência
                    o conhecimento da terra,
                    a proximidade dos lírios, das
                    estradas sem destino.
                    Não conhecem roteiros a
                    sabedoria do sol e o silvo
                    dos insectos sem asas e cegos
                    que procuram água.
                    Não existe poesia sem
                    conhecimento, saber sem sal,
                    na vida diária feita de passos e
                    de réstias e de perdas.
                    Não sabem os trilhos dos mapas
                    perdidos inventados
                    ou da existência de um norte
                    frio, férreo, inamovível.
                    Não produzem os passos linhas
                    e nós de navegação
                    para que possamos desenhar
                    um ótimo plano de fuga.

                      Olhares, Poesia

                      Um Che imperfeito

                      Ernesto Guevara de la Serna
                      por Hans Magnus Enzensberger

                      Durante uns tempos, milhares usaram o seu pequeno boné
                      e multidões desfilaram com retratos seus
                      em grande formato, gritando bem alto o seu nome.
                      Agora, aqueles cortejos pela City quase parecem irreais,
                      como o país e a classe que o viram nascer.

                      Longe dos matadouros e das barracas e dos bordéis
                      ia-se desfazendo a casa do pai, junto ao rio. O dinheiro fora-se,
                      mas a piscina ficou. Um rapazinho tímido,
                      alérgico, muitas vezes quase a sufocar. Em luta com o seu corpo,
                      fumando charutos, fez-se homem (o que isso seja, não é história para aqui). (mais…)

                        Biografias, Memória, Poesia, Recortes

                        Girassol

                        Nem bancos de lama,
                        nem água negra e lodosa
                        cheia de pinhas de amieiro e folhas corroídas.

                        Nem salsa-brava no inverno
                        canelas e pulsos velhos e esbranquiçados,
                        com a sua sibilância, o seu tremor.

                        Nem mesmo o verde vivo de uma sombra veranil
                        densa com borboletas
                        e cogumelos bojudos como uma sela de couro.

                        Não. Mas antes, na quietude de um canto,
                        agarrado ao seu muro ponteado a seixos,
                        pesado, pendendo para a terra, todo boca e olhos,

                        O girassol, num sonho cor de umbra.

                        Seamus Heaney – fragmento de Trabalho de Campo
                        (Trad. de Rui Carvalho Homem)

                          Olhares, Poesia

                          Ecos

                          T. S. Eliot

                          O tempo presente e o tempo passado
                          Estão ambos talvez presentes no tempo futuro,
                          E o tempo futuro contido no tempo passado.
                          Se todo o tempo é eternamente presente
                          Todo o tempo é irredimível.
                          O que podia ter sido é uma abstracção
                          Permanecendo possibilidade perpétua
                          Apenas num mundo de especulação.
                          O que podia ter sido e o que foi
                          Tendem para um só fim, que é sempre presente.
                          Ecoam passos na memória
                          Ao longo do corredor que não seguimos
                          Em direção à porta que nunca abrimos
                          Para o roseiral. As minhas palavras ecoam
                          Assim, no teu espírito.
                                                          Mas para quê
                          Perturbar a poeira numa taça de folhas de rosa
                          Não sei.
                                                   Outros ecos
                          Habitam o jardim. Vamos segui-los?

                          T. S. Eliot – Fragmento de Burnt Norton (Trad. Maria Amélia Neto)

                            Olhares, Poesia

                            Alquimia do Verbo

                            Rimbaud
                            Rimbaud. Desenho de Laure B.

                            Há cerca de dez anos traduzi um pouco de Rimbaud para uma publicação da qual perdi o único exemplar que me foi enviado. Reencontrei agora parte desse trabalho que julgara perdido.

                            A mim. A história de mais uma das minhas loucuras.
                            De há muito que me vanglorio de
                            possuir todas as paisagens possíveis e que acho ridículas
                            as celebridades da pintura e da poesia moderna.

                            Amei pinturas idiotas, vãos de portas, bugigangas,
                            panos de saltimbancos, estandartes, estampas baratas,
                            literatura fora de moda, latim eclesiástico,
                            livros eróticos sem caligrafia, romances antigos,
                            contos de fadas, contos para crianças, velhas óperas,
                            refrões ingénuos, ritmos simplicíssimos.

                            Sonhei com cruzadas,
                            com viagens de descobrimento das quais não existiam relatos,
                            repúblicas sem histórias, guerras de religião sufocadas,
                            revoluções de costumes, movimentos de raças e de continentes:
                            acreditei pois em todas as magias.

                            Inventei a cor das vogais! – A negro, E branco,
                            I vermelho, O azul, U verde
                            Determinei a forma e o movimento de cada consoante,
                            e, com ritmos instintivos,
                            procurei inventar um verbo poético acessível, custe o que custar,
                            a todos os sentidos. Guardei a tradução.

                            Era acima de tudo um esboço. Escrevi os silêncios,
                            as noites. Anotei o indizível. Fixei vertigens

                            Arthur RimbaudAlchimie du Verbe (Trad. de Rui Bebiano)

                              Artes, Poesia

                              Paraíso sobre os telhados

                              Cesare Pavese
                              Cesare Pavese

                              Será um dia tranquilo, de luz fria
                              como o sol que nasce ou que morre, e o vidro
                              fechará por fora o ar sórdido.

                              Acorda-se uma manhã, de uma vez para sempre,
                              na tepidez do último sono:
                              a sombra será como a tepidez. Encherá o quarto
                              pela grande janela um céu mais vasto.
                              Da escada subida um dia para sempre
                              não virão mais vozes nem rostos mortos.

                              Não será preciso deixar a cama.
                              Só a aurora entrará no quarto vazio.
                              Bastará a janela para vestir cada coisa
                              de uma claridade tranquila, quase uma luz.
                              Pousará uma sombra descarnada no rosto supino.
                              As recordações serão coágulos de sombra
                              calcados quais velhas brasas
                              na chaminé. A recordação será a chama
                              que ainda ontem picava nos olhos apagados.

                              Cesare Pavese – De Paternidade
                              (Trad. de Carlos Leite)

                                Olhares, Poesia

                                Uma gente

                                Wislawa Szymborska
                                Wislawa Szymborska

                                Uma gente em fuga de outra gente,
                                num país debaixo do sol
                                e de algumas nuvens.

                                Deixam para trás um tal seu tudo,
                                campos semeados, umas galinhas, cães,
                                espelhos, nos quais o fogo se mira,

                                levam às costas os cântaros e as trouxas,
                                quanto mais vazios mais pesados com o passar dos dias.

                                É em silêncio que alguém desfalece,
                                é na algazarra que alguém arranca o pão de alguém
                                e alguém sacode o filho morto.

                                Nunca é pela estrada que têm à frente,
                                nem é esta ponte
                                sob a qual passa um rio estranhamente avermelhado.
                                Em redor, disparos, ora longínquos ora próximos,
                                no alto, um avião errante rodopia.

                                Dava jeito ser invisível,
                                pedra de cor parda,
                                ou ainda melhor não existir
                                durante um pouquinho ou por mais tempo.

                                Mais ainda está por acontecer, apenas onde e quando.
                                Alguém lhes sairá ao caminho, apenas quem e quando,
                                de que forma e com que intenções.
                                Se puder escolher,
                                talvez não queira ser inimigo
                                e os deixe com alguma vida.

                                Wislawa Szymborska – de Paisagem com Grão de Areia
                                (trad. Elzbieta Milewska e Sérgio das Neves)

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                                  Wislawa Szymborska

                                  Wislawa Szymborska

                                  Hoje cedo, de manhãzinha, morreu Wislawa Szymborska (1923-2012). Na sua casa de Cracóvia, tranquila, enquanto dormia, se querem saber. Mas isso agora já pouco importa.

                                  Herdamos a esperança –
                                  o dom de esquecer.
                                  E tu verás como damos
                                  à luz no meio de ruínas.
                                  (de «Uma expedição não realizada aos Himalaias»)

                                    Olhares, Poesia

                                    Perfilados de Medo

                                    [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=OzwdYxxhwPc[/youtube]

                                    Sobre uma fotografia de sentido expressivo petrificante, tirada ontem durante a cerimónia oficial de abertura do Guimarães 2012 – Capital Europeia da Cultura, e uma troca de comentários no Facebook a respeito da mesma (e apenas dela, não do evento), recupero uma canção de José Mário Branco com cerca de quarenta anos composta sobre um soneto de Alexandre O’Neill com mais de cinquenta.

                                    Perfilados de medo, agradecemos
                                    o medo que nos salva da loucura.
                                    Decisão e coragem valem menos
                                    e a vida sem viver é mais segura.

                                    Aventureiros já sem aventura,
                                    perfilados de medo combatemos
                                    irónicos fantasmas à procura
                                    do que não fomos, do que não seremos.

                                    Perfilados de medo, sem mais voz,
                                    o coração nos dentes oprimido,
                                    os loucos, os fantasmas somos nós.

                                    Rebanho pelo medo perseguido,
                                    já vivemos tão juntos e tão sós
                                    que da vida perdemos o sentido…

                                      Apontamentos, Música, Olhares, Poesia