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Todas as cores de uma esperança
Rui Bebiano







O curto tempo de vida que leva o Bloco de Esquerda tem servido para comprovar a oportunidade da sua criação e a importância do seu papel neste mesmo país que já foi capaz de passar de forma serena os vinte e cinco anos da "revolução dos cravos". O relativo êxito eleitoral ou a oportunidade de algumas posições públicas, nacionais ou locais, e de diversas iniciativas legislativas, serão porém, nesse contexto, bem menos importantes do que a emergência de uma voz situada à margem da lógica repetitiva, repetitivamente eleitoralista, da política dos chamados partidos tradicionais. Existe algo de novo: um ambiente, uma situação, um conjunto de esperanças, que, veja-se o paradoxo, parcialmente resultaram de um processo de aproximação entre fragmentos daquilo que restava da esquerda mais intransigente que, politicamente bloqueada, sobreviveu ao pós-25 de Novembro.

É provável que tal se deva ao facto de a existência de BE correr ao encontro de um conjunto de necessidades dramaticamente objectivas, e também de algumas nostalgias, cuja dinâmica permanece viva na sociedade portuguesa. No todo, o elemento subjectivo parece no entanto ser o mais importante: não se trata de existirem problemas que os partidos parlamentares não podem ou não querem resolver – coisa que, afinal, se passa desde 74 – mas sim de ter aparecido uma vontade de os equacionar que transcende já o esforço circular dos eternos grupos de "activistas profissionais", no sentido de buscar uma solução nova, corajosa, de alguma forma radical, para esses problemas. Aquilo que o aparecimento do Bloco traduziu foi pois, em primeiro lugar, uma resposta orgânica a essa objectiva necessidade. E daí também a forma relativamente rápida como a sua base de apoio ultrapassou a soma aritmética das militâncias vindas desses cada vez mais reduzidos grupos de enragés saudosistas.

Existem todavia problemas que esta aparentemente pacífica ultrapassagem deixa por resolver. Um deles é o da transferência das motivações essenciais daquelas militâncias para uma atitude que se pretende outra e nova. O Bloco tem procurado resolver este problema através de uma aplicação persistente da "teoria das três cores", ao considerar que, no arco-íris dos horizontes que reune se juntam sem conflito o vermelho do mundo
do trabalho, o negro da dimensão libertária e da irredutibilidade dos direitos individuais e a cor violeta da consagração dos direitos das minorias. Desta maneira se aproximam interesses, propostas, e até maneiras de ver o mundo e a sua mudança que de facto se têm confrontado ao longo de décadas, criando-se a ficção de um espaço no qual, por exemplo, a noção mítica de uma revolução mundial liderada pela "classe operária" possa continuar a conviver sem dificuldade, ao som da Internacional ou de uma batida tecno, com o eterno amor dos intelectuais pela liberdade de expressão ou com a actual luta dos homossexuais pelo direito à dignidade da sua opção.

Não me parece que venha mal ao mundo da materialização pontual desta convergência aparentemente contranatura. Pelo contrário: dela só pode resultar alguma coisa de bom, a qual tem basicamente a ver com a pacífica aproximação de formas divergentes de imaginar as utopias sinceras de um mundo melhor. Mas já me soa mal que dela não resulte, desde o início, uma clara tomada de consciência no sentido de se aceitar que esta "nova esquerda" que se quer não pode senão resultar de uma releitura da experiência de todos estes anos. Traduzível numa atitude cultural, ela sim nova, que seja capaz – em nome de alguma coisa de concreto – de ultrapassar aquilo que, por tanto tempo dividido, podia afinal ter-se mantido próximo.

Por outro lado, e muito mais do que da proximidade conjuntural determinada por "necessidades objectivas", a construção de uma esquerda renovada à margem da lógica dos partidos eleitoralistas apenas pode sobreviver – e ter alguma utilidade – se ela própria se construir como atitude alternativa em relação à matriz que estes têm protagonizado. Não pode, por isso, limitar-se a pautar o seu calendário pelo calendário dos problemas que os outros deixam por resolver. Tem de se erguer como instrumento dinâmico de um movimento de opinião que, em primeiro lugar, retira a sua força daquilo que esta mesma opinião seja intestinamente capaz de produzir. Tem de entender como é do interesse da utopia de felicidade e de bem-estar que persegue que se mobilizem as vontades de um número crescente de cidadãos através da criação de um activismo de tipo novo, assente na promoção de necessidades cívicas e na produção de atitudes culturais ousadas e adaptadas ao tempo. Mesmo quando a sua materialização não seja consensual. Bem sei que dessa forma ficará o BE mais distante dos mecanismos de luta pelo poder: mas não será justamente isso que esperam aqueles, já tantos, que, fora da lógica dos activismos saídos das profundezas do século XX e do cinzentismo das tenebrosas máquinas da partidocracia, nele têm vindo a acreditar? É que, tal como tem sido permanentemente provado, o consenso é inimigo da esperança.


Jan.00

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