Perto de 400 mil peregrinos em Fátima, que a RTP arredonda sem problemas para meio milhão (o que serão afinal, perante Ele, a Eternidade e a Salvação, 100 mil e tal almas a mais ou a menos?). É tempo de crise e de instabilidade, a gasolina sobe que nem uma perdida, o poder de compra diminui todos os dias, as reformas apertam, há desemprego a mais, cartas registadas com multas de trânsito para pagar, fumos de um terrorismo global, doenças esquisitas, a crise da agricultura, o escândalo dos selos, guerras em directo, e, entre tanta desgraça, Nossa Senhora de Fátima prefigura-se sempre como um investimento seguro, recurso dos aflitos, padroeira do destino pátrio e, ao mesmo tempo, amável protectora de cada um.
Compreende-se, pois, que um grupo de Lamego tenha declarado encontrar-se no «altar do mundo» para que o governo «não acabe com a Maternidade» lá na sua terra. Ou que jovens a tresandar a feromonas declarem, entre risadas, estarem ali para cantarem «a alegria da fé». Como se entende a quantidade de pessoas saídas de um país profundo, homens de colete, mulheres de lenço à cabeça, desempregados, vultos sem glamour que não aparecem nas novelas, nem se vêem nos centros comerciais ou nas praias da moda, que não viajam em comboios de alta velocidade e se não encontram sequer nas auto-estradas, que não desfilam em manifestações, mas que falam baixinho nas salas de espera dos hospitais, que conduzem carroças aos sábados à tarde por estradas secundárias, que andam de camioneta e a pé, que fazem férias fechadas em casa e não podem prever o que lhes irá acontecer amanhã. É justo, sim, que, solidárias num Ave Maria em uníssono erguido aos céus, se reúnam em Fátima, pés doridos, joelhos em ferida, lágrimas à vista, lenços brancos a acenar. E a certeza na protecção infinita de um sorriso maternal. Pouco importa que ele lhe apareça moldado em porcelana, pairando sobre uma nuvem de pétalas de flores, notas de 10 euros e garrafinhas de água-benta. Tem sido mais ou menos assim desde 1917.