Como o mapa de uma ilha

Conta Pierre Kalfon que num certo dia de Abril de 1964, durante uma brevíssima passagem por Paris, Guevara almoçou descontraidamente numa pizzaria do Boulevard Saint-Michel, passeando depois junto da Sorbonne. De repente, na Rue des Écoles, alguém reparou no seu inconfundível aspecto – a barba rala e desalinhada, a boina preta e o dólman de caqui verde-oliva – comentando para a pessoa que ia ao seu lado: «Tu repara no descaramento daquele tipo ali, a tentar imitar o Che Guevara.»

Desde muito cedo que a pessoa de Ernesto de la Serna se viu colada ao ícone que transcendia já o corpo terreno e se definia muito para além do seu lugar objectivo na história. De início, e durante anos, ele ganhou vida e manteve-se no espectro das crenças que definiam as possibilidades de erguer um mundo outro. Esse o vulto que alguns dos nossos contemporâneos, com um certo sentido de missão ou necessidade de reconhecimento tribal, ainda transportam em pins e t-shirts. Depois viu desdobrado o seu nexo de sentidos, que passou a remeter para algo de não objectivamente capturável, reunido no conjunto imenso de sinais dos quais se servem os imaginários de fuga. Um pouco como o logotipo dos cigarros Camel ou o mapa de uma ilha das Caraíbas na publicidade colorida a uma marca de rum. Para os quais olhamos sem grandes conjecturas, pensando apenas na viagem definitiva, libertadora, que sempre desejámos.

    Olhares.