Samir Kassir e a desgraça árabe

Fotografia de Ramzi Haidar

Em 2005 Samir Kassir (سمير قصير em árabe) foi assassinado em Beirute aos 45 anos de idade. Professor universitário, jornalista e historiador, filho de um palestiniano-libanês e de uma síria, possuía dupla nacionalidade franco-libanesa e considerava-se essencialmente «um árabe laico», não alienado a uma cultura estrangeira e, estruturalmente, sem qualquer vontade de eliminar aqueles que não pensavam como ele. Enquanto activista de esquerda bateu-se pela independência da Palestina e pela implantação da democracia no Líbano e na Síria, sendo o autor de Considerações Sobre a Desgraça Árabe (Cotovia, 2004), um livro transparente e dramaticamente otimista, radicalmente crítico da deriva totalitária e obscurantista que vem dominando o mundo árabe, e que, tendo provavelmente servido para assinar a sua sentença de morte, acaba de ser editado em Portugal.

Nele se aborda o grande impasse no qual todas as sociedades árabes se encontram, enunciando os seus traços mais dramáticos: uma enorme taxa de analfabetismo, disparidade entre os imensamente ricos e os desesperadamente pobres, sobrepovoamento das cidades, desertificação das províncias, estabelecimento de padrões espúrios de intolerância, um crescente isolamento em relação ao resto do mundo. Aos quais se associa a intervenção coligada dos governos autoritários e dos dignitários religiosos que as dominam, a qual – com o apoio dos novos meios de comunicação, e entre eles o da estação de televisão Al-Jazira – trocou a formulação de políticas no sentido da resolução dos problemas pela aceitação de crenças messiânicas que deles desviam as atenções. E que são frequentes vezes apresentadas como parte de um legado histórico que Kassir, com um grande detalhe, mostra ser inexistente. Lembra, por exemplo, que a visão da jhiad bélica, encarnada na figura do istichhadi – aquele que pede o martírio – «só tem um verdadeiro antecedente na cultura árabo-muçulmana, na seita xiita (mas não árabe) dos Assassinos», fundada em 1090 por Hasan ibn al-Sabbah. Facto que uma grande parte dos muçulmanos, bombardeada pela propaganda radical e pelas prédicas de numerosos imãs, simplesmente desconhece.

Para muitos dos defensores da ordem obscurantista e do milenarismo mórbido que presentemente dominam esse universo múltiplo que querem transformar em uno – e para os seus complexados parceiros ocidentais, que fecham os olhos à barbárie considerando-a um aliado táctico na luta contra a globalização capitalista – falar hoje de modernidade árabe constituiria também uma quase «blasfémia intelectual». Porém, o próprio conceito de modernidade possui, tal como Samir Kassir procurou provar, uma tradição no mundo árabe, não sendo de forma alguma a expressão de um mal, de origem ocidental, diante do qual se impõe apenas a mais violenta das rejeições.

Kassir anotou ainda, finalmente, que apesar do cerco existe uma saída, tal como existem forças capazes de procurá-la. Sublinhou assim a necessidade de «recusar Huntington» e a ideia de uma oposição violenta entre «eles» e «nós», mas também a importância de «não esquecer Lévi-Strauss», afastando a consideração de qualquer «civilização» como «superior» ou como «decadente», e aceitando sempre que «a humanidade é una, pois deriva de um fundo antropológico comum». A forma como o autor fechou o livro é um apelo que resulta particularmente dramático em função daquilo que lhe aconteceu poucos meses depois: «Que os árabes abandonem o fantasma de um passado inigualável para encararem por fim, de frente, a sua história. E, um dia, para lhe virem a ser fiéis.»

PS – Quando do assassinato de Samir Kassir, Alain Gresh transcreveu no Le Monde Diplomatique, onde Samir colaborava desde 1981, as seguintes palavras de Elias Khoury: : «Je voudrais dire à ton assassin que le jour est proche, qu’il ne réussira jamais à tuer la liberté et la parole, sinon en nous tuant tous. Car les mots fabriqueront leurs nouveaux auteurs, la vie fleurira dans les champs, les cimetières se transformeront en portails pour la liberté». Durante o seu funeral cada um dos presentes exibia como arma simbólica uma caneta.

    Opinião.