Tem razão Eduardo Pitta em achar redutora uma tentativa de entender as mudanças dos sixties, principalmente no que elas tiveram de mais profundo e duradouro, sem destacar as transformações no campo artístico e intelectual. Elas foram quase sempre protagonizadas por gestos pioneiros, vidas difíceis, dramas, momentos de felicidade em certas ocasiões, e essa sina, não sendo, como sabemos, exclusiva do tempo em causa, teve nele uma interferência relevante. Isso foi ainda mais evidente num país como Portugal. Tirando à época os «intelectuais de regime» – se é que alguém nos sabe dizer hoje onde estavam eles nos seus anos terminais – e as celebridades locais, a condição de romancista ou de poeta, a de artista plástico, de actor ou a de crítico, era quase sempre associada, fora dos pequenos círculos nos quais cada um deles se incluía, fora do pequeno público que eram quase as mesmas pessoas, a algo de estranho e de perturbador. Mas foi sem dúvida com eles, quase sempre, que as ideias e atitudes, as técnicas e experiências, que definiram a especificidade dos anos 60 portugueses, e aquilo que nos permite identificá-los na nossa história recente, entraram e se puderam reproduzir.
Porém, isso não invalida – e foi este o sentido da minha leitura inevitavelmente parcial – que se tenha constituído, gradualmente, um amplo sector da sociedade, centrado principalmente numa classe média em crescimento e nos ambientes universitários, então mais irrequietos do que nunca, que foi articulando uma crescente desafectação em relação ao regime e aos seus códigos, desenvolvida, muitas vezes, em paralelo aos duros esforços da oposição política. Incorporando, ainda que quase sempre sob forma de vulgata, alguns dos contributos ensaiados no campo artístico e intelectual, treinando e aplicando estilos de vida e leituras do mundo alheios ao modelo fechado e ruralista que fora dominante na fase de formação e de afirmação do Portugal de Salazar. Falava eu, pois, da constituição de uma nova cultura popular autóctone, inseparável da outra, mas que possuía, naturalmente, outros contornos. Apenas desta forma me parece possível explicar o alheamento da maioria dos portugueses, os «da metrópole» sobretudo, em relação à derrocada do império, e a quase unanimidade com a qual, no dia 1 de Maio de 1974, os mesmos portugueses, grande parte dos quais sem nada que os aproximasse da esquerda, e menos ainda das elites de oposição, saíram à rua com esse cravo vermelho ao peito que, como se dizia na canção, «a todos fica bem».
Uma nota um tanto lateral ao post estimulador do Eduardo Pitta: está por fazer a história intelectual das comunidades de origem europeia em Angola e Moçambique durante as guerras coloniais e os tempos que as precederam. Será preciso ultrapassar ainda muitas desconfianças, rancores adormecidos, preconceitos explicáveis e desnecessários. Mas perdendo-se entretanto, até que isso se torne possível, grande parte da memória disponível. Só depois chegaremos a uma compreensão mais completa, e mais complexa, dos sessentas portugueses.
PS – Claro que tudo isto carece de reconhecimentos mais aproximados. As generalizações usam-se, aqui como em outros casos, para contestar outras generalizações (estas, devido à sua provecta idade, com menos razão para existirem). E também, pelo menos no que me toca, como estímulo para um trabalho sistemático.