A tecnologia do digital permite agora um retorno sistemático à memória do cinema. Pelas mãos de Martin Scorsese, uma pequena caixa com quatro dvd que acaba de ser editada conduz-nos assim através de duas viagens por uma época decisiva da história dos cinemas americano e italiano. Aquela que mais indiscutivelmente marcou, ainda que apenas como um eco, a formação essencial de grande parte dos realizadores contemporâneos, bem como a sensibilidade e a «recordação fílmica» de sucessivas gerações dos amantes da arte.
A possibilidade de uma recuperação dos filmes dos anos cinquenta é, aliás, tanto mais importante quanto a televisão quase deixou de os passar. Hoje, a generalidade dos canais interessa-se mais por filmes dotados de uma visualidade capaz de se impor de maneira imediata a um público nivelado por baixo, e isso significa, desde logo, o recurso incontornável à cor, a argumentos providos de «acção», a um erotismo contemporâneo e a todo o tipo de efeitos especiais. O entretenimento comanda a programação do cinema televisivo, deixando implícito que quem não gostar deverá procurar alternativas por sua própria conta e risco.
Estes filmes apontam, porém, numa outra direcção. Enquanto uma parte do público revê neles imagens e enredos que para si serão matriciais, a outra pode descobrir por seu intermédio um universo que actualmente se encontra quase compulsivamente afastado das salas de projecção. É esse o exercício para o qual nos convida Scorsese, colocado aqui na posição do rapaz italo-americano de classe média-baixa que, pela década de 1950, na sua casa familiar de Little Italy, descobria, através do pequeno monitor de cantos curvos de uma televisão a preto e branco – por vezes em cópias cortadas e de baixa qualidade, inevitavelmente dobradas em inglês – a magia e a veemência dramática do grande cinema.
A caixa transporta dois dvd duplos: o primeiro deles com Uma Viagem com Martin Scorsese pelo Cinema Americano (1995), que ainda não pude ver, e o outro A Minha Viagem a Itália (1999), que me ocupou em duas intensas noites. A partir do fundador Roma città aperta (1945), de Roberto Rossellini, o autor de Taxi Driver percorre ali algumas das referências do cinema italiano do pós-guerra e o seu imediato desenvolvimento, centrado nas diversas fases dessa revolução neorealista que, tanto no domínio dos processos da realização quanto no que respeita ao impacto junto da sensibilidade do espectador, redefiniria para sempre a arte do cinema. Um trajecto de revisitação sentimental, através de filmes-documento, considerados centrais nas obras do mesmo Rossellini, de Vittorio De Sica, de Luchino Visconti, de Federico Fellini ou de Michelangelo Antonioni, que nos ensinam e, ao mesmo tempo, nos deixam algo ébrios de uma beleza antiga mas muito bem conservada. Rendidos, durante 246 minutos, ao puro prazer de ver contar histórias – e de ver correr a história – tendo a câmara por confidente.
Adenda – Como é sabido, o bom conhecimento de uma língua não faz um bom tradutor. Em Portugal, a tradução de livros tem vindo a melhorar nos últimos anos, mas a televisão e o cinema continuam a aceitar tradutores que, por vezes, não possuem um background cultural mínimo para a tarefa que lhes foi destinada. Neste caso, o trabalho executado parece bastante razoável, mas aqui e ali tropeçamos com palavras em relação às quais teria sido conveniente o recurso a algumas leituras. Exemplo: os omnipresentes partigiani (plural de partigiano) repetidamente convertidos em partidários! Além do mais, incomoda.
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