Quando, em nome de uma «objectividade» asséptica ou de uma lógica de amanuense, a escrita jornalística foge a alta velocidade do compromisso e da emoção – esquecendo, ou ignorando, legados como os de Reed ou de Orwell – apetece-me recomendar, e sem reservas, a leitura de um livro de Ryszard Kapuscinski editado há cerca de dois anos pela Campo das Letras. O volume possui um título, O Império, que o aproxima das estantes áridas da ciência política, e foi precisamente numa delas que o encontrei.
Entre 1989 e 1991, o jornalista polaco-bielorusso fez uma série de viagens por uma União Soviética já moribunda. Recuperando a sua própria memória de textos mais antigos, e associando-lhe a observação arguta e sensível de um mundo a mover-se à sua frente em rápida espiral, Kapuscinski deambulou por territórios muito diversos, cuja efervescência a acção uniformizadora soviética apenas escondera. O resultado final foi uma obra próxima do soberbo, sobre um mundo imenso que desaba, por entre tremores de cólera e vestígios de esperança. Poucos jornalistas são capazes de captar, e de descrevê-lo com arte como Kapuscinski o faz, tantos e tão sucessivos instantes de um realismo intenso e de pura poesia. Como neste instante arménio: «Volto para o hotel. É uma tarde suave e cálida dos princípios de Outono. Multidões de pessoas passeiam. Estas ruas, esta cidade, exalam um ar benévolo. Num dos recantos, na maior escuridão, brilham umas brasas incandescentes. Junto a um forno de ferro está sentado um rapazinho. Prepara shashlik, o churrasco de carneiro. Os seus grandes olhos negros olham fixamente o fogo. O seu olhar fascinado, quase ausente, como que longe do lugar e do tempo.»